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Considerações jurídicas acerca do início da vida humana

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É importante que adotemos algum conceito para o início da vida, pois, caso contrário, não teremos nunca a certeza jurídica necessária para se decidir sobre certas questões do Biodireito e da Bioética.

Até os dias de hoje, filósofos e cientistas ainda não chegaram a um consenso quanto à definição do momento exato em que a vida humana tem início. Recentemente, essa intrigante pergunta foi colocada em maior evidência devido às discussões sobre o aborto de fetos anencéfalos e a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia. A resposta à pergunta de quando se inicia a vida é de fundamental importância para o posicionamento do Direito perante essas questões polêmicas.

Apesar de difícil e controversa a questão, pode-se dizer que existem cinco maiores correntes que tentam responder em que momento exato se inicia a vida humana.

A primeira linha de pensamento defende que a vida começa a partir da fecundação, ou seja, no momento em que o óvulo é fertilizado pelo espermatozóide. Essa é a tese defendida fervorosamente pela Igreja Católica e por algumas Igrejas Protestantes. É uma das teses que possui o maior número de adeptos.

Em defesa dessa teoria, o professor Dernival da Silva Brandão, especialista em Ginecologia e membro emérito da Academia Fluminense de Medicina, afirma que:

“A ciência demonstra insofismavelmente – com os recursos mais modernos – que o ser humano, recém-fecundado, tem já o seu próprio patrimônio genético e o seu próprio sistema imunológico diferente da mãe. É o mesmo ser humano – e não outro – que depois se converterá em bebê, criança, jovem, adulto e ancião. O processo vai-se desenvolvendo suavemente, sem saltos, sem nenhuma mudança qualitativa. Não é cientificamente admissível que o produto da fecundação seja nos primeiros momentos somente uma matéria germinante. Aceitar, portanto, que depois da fecundação existe um novo ser humano, independente, não é uma hipótese metafísica, mas uma evidência experimental. Nunca se poderá falar de embrião como de uma pessoa em potencial que está em processo de personalização e que nas primeiras semanas pode ser abortada. Por quê? Poderíamos perguntar-nos: em que momento, em que dia, em que semana começa a ter a qualidade de um ser humano? Hoje não é, amanhã já é. Isto, obviamente, é cientificamente absurdo”.[1]

Há também quem afirme, numa segunda corrente, que a vida se inicia com a ocorrência da nidação, ou seja, quando o óvulo fecundado se fixa à parede do útero, já preparado para alimentá-lo. É a partir desse momento que o embrião passa a ter reais chances de se desenvolver. Essa etapa ocorre por volta da segunda semana após a fecundação.

A terceira corrente afirma que a vida humana tem início na terceira semana de gestação, quando o embrião não pode mais se dividir. É quando a individualidade do novo ser se torna definitiva.

A quarta teoria é de que a vida começa a partir da 24ª semana de gestação, quando os pulmões estão formados e o feto tem condições de sobreviver fora da barriga da mãe, já possuindo autonomia. É uma das teorias mais polêmicas, pois, como sua conseqüência, poderíamos concluir que seria permitida a realização de um aborto, mesmo numa fase adiantada da gravidez. [2]

Já a quinta teoria defende que a vida humana só começa com o início da formação das primeiras terminações nervosas, a partir da segunda semana de gestação.[3] Trata-se de uma teoria bastante lógica, já que se a morte é definida pelo fim da atividade cerebral, a vida seria definida pelo início dessa atividade. De acordo com essa teoria, a definição sobre a vida seria buscada pelo seu reverso – a morte.

Até meados do século XX, a medicina informava que a morte acontecia quando uma pessoa parava de respirar ou quando seu coração parava de bater. Estabelecer critérios para caracterizar a morte se tornou necessário a partir do aparecimento dos primeiros aparelhos de ventilação mecânica, que permitiram manter vivas pessoas incapazes de respirar por conta própria. Essa necessidade se tornou mais premente com o advento dos transplantes de órgãos, na década de 1960. Hoje, com os avanços científicos, a medicina criou o conceito de "morte encefálica", assim definido o momento em que o cérebro deixa de funcionar.

Sob esse conceito de morte encefálica, a morte pode ser decretada quando o coração ainda bate e, assim, é possível retirar os órgãos da pessoa para fins de realização de transplante. Diante disso, se a vida acaba quando o cérebro para, é lícito supor que ela só começa quando se inicia a formação do cérebro. É o pensamento de um grupo expressivo de cientistas, principalmente especialistas em neurociência, para os quais a vida começa junto com a formação das primeiras terminações nervosas.

Pode-se alegar que, num óvulo recém-fecundado, o cérebro ainda não começou a se formar, e que, no caso da morte encefálica, o cérebro não funciona mais. Ou seja: num caso a vida está por vir, no outro a vida se foi. Num caso ela é futuro, no outro ela é passado. Ainda assim, em ambos os casos, a vida efetivamente não existiria. O filósofo francês René Descartes, no século XVII, já proclamava: "Penso, logo existo" – a vida, pensada assim, passa a ter uma íntima conexão com o raciocínio, com a consciência. Entretanto, há uma forte resistência em aceitar essa quinta teoria. Para muitos, o que ela afirma é que só nos tornamos seres humanos devido a um emaranhado de neurônios que conectados por impulsos elétricos, respondem por nossas festas e lutos, alegrias e tristezas.[4]

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Há, também, quem critique a utilização do caráter apenas biológico na definição de quando começa a vida humana. Argumenta-se que o critério biológico não se revelou menos obscuro, sendo utilizado num amplo debate. Assim, a depender do posicionamento defendido, atrasa-se ou adianta-se o momento em que a vida humana inicia-se. Para os adeptos desse posicionamento, deve-se estabelecer um critério de valoração das diferentes situações biológicas para se determinar em quais situações há projeção de valores determinando, dessa forma, a existência de bens jurídicos a serem protegidos pelo Direito.

Existe, ainda, um grupo de pessoas que defende que é impossível se definir quando a vida começa. Se for aceita essa teoria, provavelmente não evoluiremos em nada na resposta para diversas questões bioéticas.

Percebe-se que muitas são as teorias sobre o início da vida humana, cada uma delas baseada num parâmetro diferente. Porém, preferimos adotar o mais lógico e coerente dos parâmetros, que é aquele que adota como referência o momento em que a vida humana se finda. Como se considera que a vida humana termina com o fim das atividades cerebrais, deve-se considerar que ela se inicia a partir do instante em que começam a ser formadas as primeiras terminações nervosas do embrião, o que ocorre por volta da segunda semana de gestação, próximo ao momento em há a nidação. Se adotarmos qualquer outra teoria, estaremos nos contradizendo.

Não seria justo querer equiparar um embrião com mais ou menos oito células com um ser humano já nascido e desenvolvido. Um embrião fora do útero materno não possui chances de se desenvolver plenamente, somente depois de localizado no ventre materno e começar a formar suas primeiras terminações nervosas é que ele passa a poder ser equiparado a um ser humano moral.

Sabemos que nunca iremos chegar a uma definição exata do momento em que se inicia a vida humana, sempre haverá aqueles que irão divergir, qualquer que seja o critério adotado. É importante, no entanto, que adotemos algum conceito para o início da vida, pois, caso contrário, não teremos nunca a certeza jurídica necessária para se decidir sobre certas questões do Biodireito e da Bioética.


REFERÊNCIAS

BRITO, Ricardo; ESCOSTEGUY, Diego. Quando começa a vida? Veja on-line. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/250407/p_054.shtml>. Acesso em: 12 de abril de 2012.

FONTELES, Cláudio. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510. Petição inicial. Supremo Tribunal Federal. 16 de maio de 2005.

GAGLIANO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010.

QUANDO a vida começa? Fantástico. Rede Globo. 15 de abril de 2007. Disponível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1517321-4005-665344-0-15042007,00.html> Acesso em: 12 de abril de 2012.

WIDER, Roberto. Reprodução Assistida: Aspectos do biodireito e da bioética. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Iuris, 2007.


Notas

[1] FONTELES, Cláudio. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510. Petição inicial. Supremo Tribunal Federal. 16 de maio de 2005.

[2] QUANDO a vida começa? Fantástico. Rede Globo. 15 de abril de 2007. Disponível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1517321-4005-665344-0-15042007,00.html> Acesso em: 12 de abril de 2012.

[3] BRITO, Ricardo; ESCOSTEGUY, Diego. Quando começa a vida? Veja on-line. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/250407/p_054.shtml>. Acesso em: 12 de abril de 2012.

[4] BRITO, Ricardo; ESCOSTEGUY, Diego. Quando começa a vida? Veja on-line. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/250407/p_054.shtml>. Acesso em: 12 de abril de 2012.

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Sobre a autora
Ana Marisa Carvalho de Andrade

Advogada. Graduada pela Universidade Federal de Viçosa. Pós-graduada em Direito Privado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Ana Marisa Carvalho. Considerações jurídicas acerca do início da vida humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3221, 26 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21637. Acesso em: 19 abr. 2024.

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