5 O REGIME JURÍDICO E OS SERVIÇOS PÚBLICOS
Preparando o debate para logo mais, quando serão avaliadas, entre outras coisas, as teorias aplicáveis à posição jurídica dos usuários do serviço público no contexto contemporâneo, cumpre estudar e fixar os principais pontos a respeito do regime jurídico ocorrente na prestação de serviços públicos, quer esta se dê de forma direta, pelo Estado, quer por terceiros especialmente habilitados e fiscalizados.
E para a compreensão exata do tema, importante previamente observar a reflexão realizada por Marçal Justen Filho:
O serviço público apresenta natureza institucional. Isso significa que a concessão de serviço público é um instrumento de agregação de sujeitos para ampliar os esforços necessários à concretização de um fim de grande relevância. O fim a ser obtido é a prestação das utilidades necessárias à satisfação de um direito fundamental. Essa ideia – satisfação de um direito fundamental – norteia a atuação de todos os sujeitos públicos. A concessão propicia que um particular se comprometa com a promoção desse fim[21].
Com efeito, vê-se que a atividade de serviço público é um meio de realizar fins indisponíveis para a comunidade. Os direitos fundamentais não podem deixar de ser realizados. Por isso, conclui-se que as atividades necessárias à sua satisfação direta e imediata devem estar subordinadas ao regime de direito público[22]. A atividade de serviço público é subordinada a este regime como consequência de sua natureza funcional.
Pode-se vincular, quando se estuda o regime jurídico de direito público, este à concepção de “relação de administração”, que Ruy Cirne Lima o conceitua como sendo “a relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente”[23].
De fato, tem-se a relação de administração quando o poder que emana de uma relação jurídica for caracterizado também como um concomitante “dever” (aspecto teleológico), visto que o seu objeto apresenta o elemento da indisponibilidade. Em outras palavras, por haver uma finalidade cogente, ou seja, um objetivo de atingir interesse alheio (leia-se, público), a relação não se resume ao atendimento de um direito subjetivo.
Frise-se, no entanto, que é possível a simultaneidade de relações jurídicas (relação de administração e relação do direito subjetivo). É o que se percebe nesta passagem do texto de Ruy Cirne Lima:
Podem, no Direito Administrativo, como no direito privado, nascer simultaneamente, do mesmo negócio jurídico, a relação do direito subjetivo e a relação de administração. No direito Administrativo, assim se desata, por exemplo, a controvérsia acerca da natureza jurídica da concessão de serviço público, da qual defluem simultaneamente, além da relação de administração, direitos subjetivos, recíprocos do concedente e do concessionário[24].
Tal entendimento reforça, como se vê, a natureza jurídica mista que Celso Antonio Bandeira de Mello visualiza no instituto da concessão de serviços públicos. Ao lado das cláusulas exorbitantes, que possibilitam ao poder concedente, por exemplo, a alteração unilateral de disposições da relação jurídica, existem as cláusulas econômicas, que buscam ao equilíbrio da avença e ao resguardo dos direitos subjetivos do concessionário.
Não obstante essa observação, prevalece, como se viu, na prestação dos serviços públicos, a natureza pública que emana do seu objeto indisponível. É, portanto, a relação de administração que domina o enfoque a ser dado quando se estuda o regime jurídico aplicável ao instituto da concessão de serviços públicos.
Com efeito, conforme acentua Marçal Justen Filho, “serviço público sob regime de direito privado é uma contradição em termos. A aplicação do regime de direito privado desnatura o serviço público”[25].
Assim, defende-se que a definição do regime jurídico aplicável encontra-se diretamente vinculada a presença ou ausência de relação com os direitos fundamentais.
A estruturação de entes e sujeitos, a vinculação de bens e o desenvolvimento de atividades para a satisfação dos direitos fundamentais exigem a aplicação de um regime jurídico diferenciado. Esse regime se caracteriza pelo afastamento de algumas características próprias da satisfação de interesses privados egoísticos.
Relacionado a esta concepção, encontra-se o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que Celso Antônio Bandeira de Mello[26] o considera, ao lado do princípio da indisponibilidade, como sendo “pedra de toque” do regime jurídico-administrativo.
Tal princípio, assevera Maria Sylvia Zanella Di Pietro[27], vem sendo fortemente atacado na atualidade. Defendem os seus opositores que a existência de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos é incompatível com a sua presença. Assim, fala-se em ponderação de interesses para substituir a ideia de supremacia do interesse público.
No entanto, a mesma autora expõe que o que há é uma equivocada interpretação do seu significado. Segundo ela:
O principio da supremacia do interesse público não coloca em risco os direitos individuais, porque tem que ser aplicado em consonância com os princípios todos que informam o direito administrativo, como os da legalidade, impessoalidade, razoabilidade, segurança jurídica e tantos outros consagrados no ordenamento jurídico. Ele protege os direitos fundamentais.
À evidência, não se discute as transformações por que passou o Direito Administrativo nas últimas décadas, em especial no que diz com a crise de diferença entre este e o direito comum, com o seu aperfeiçoamento por meio de formas privatísticas. Tal acontecimento vem resumido de forma brilhante por Sabino Cassese[28]:
O fenômeno indicado se dá sob a pressão de duas forças: a dos interesses e a das ideologias. Os primeiros estimulam o direito administrativo a assumir vestes privatísticas a fim de agilizar a ação administrativa, obstaculizada pelos vínculos publicísticos. As segundas operam do mesmo modo que as correntes liberais de 1800, em favor da limitação do domínio do direito especial e da subtração da administração ao direito privado, mantido aquele mais conforme ao regime da liberdade.
No entanto, o mesmo autor, em seguida, assinala a limitação desse fenômeno evolutivo: “Esta atenuação das diferenças não reduz o dualismo dos direitos, tornando o real o impossível sonho daqueles que o desaprovam, em nome do monismo: o dualismo permanece, ainda quando por formas diversas” [29].
Assim, o que se procura defender é que, malgrado a evidente evolução da concepção de Estado e, por efeito, da noção de serviços públicos, com as consequências aqui apresentadas, importante se faz manter a necessária presença de um regime jurídico diferenciado no trato do instituto das concessões de serviços públicos, tendo em vista a indisponibilidade de seu objeto e a vinculação à satisfação dos direitos fundamentais dos cidadãos.
6 A APLICAÇÃO DO DIREITO DO CONSUMIDOR AOS SERVIÇOS PÚBLICOS COMO EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO
A mutação parcial do conceito de serviço público, no decorrer do tempo, como foi possível verificar nos primeiros momentos deste trabalho, só pôde ser realizada em razão da mudança na concepção de interesse público. Com efeito, vê-se não mais um interesse público mítico, ligado ao Estado ou à sociedade abstratamente considerada, mas um interesse público traduzido como a maior satisfação concreta na vida dos indivíduos.
Referida mudança de concepção encontra-se sustentada com a inserção da concorrência na prestação de serviços públicos, que fez com que estes passassem a ser atividades total ou parcialmente regidas pelo mercado, sendo necessária, consequentemente, a aplicação, pelo menos em parte, do Direito do Consumidor, que constitui um dos pilares da disciplina jurídica do mercado.
À evidência, tal evolução é demonstrada nas palavras de Sandie Chillon:
O usuário foi por muito tempo percebido como uma pessoa abstrata, não claramente individualizada, submetida à boa vontade do gestor do serviço público. Todavia, aos poucos a figura de cliente foi se substituindo àquela de usuário. A exigência de um serviço individualizado é a principal consequência da abertura à concorrência e da comparação entre o setor público e o setor privado. Essa exigência traduz a rejeição da imagem de um usuário submetido ao serviço público[30].
A evolução da noção de interesse público é melhor entendida quando analisada a distinção existente no conceito no Direito Anglo-saxão e no Direito Europeu. Enquanto nos Estados Unidos e no Reino Unido o interesse público é considerado como intrinsecamente ligado aos interesses individuais (satisfação dos indivíduos equivale à satisfação do interesse público), nos Estados de raiz germânico-latina o interesse público é considerado superior à mera soma dos interesses individuais, sendo superior e mais perene que eles, razão pela qual é protegido e perseguido pelo Estado e constitui o fundamento de um regime jurídico próprio distinto do que rege as relações entre os particulares[31].
De fato, a evolução do Estado está provocando com que a noção européia de interesse público, inspiração para o Direito Pátrio, esteja se aproximando daquela anglo-saxônica, com consequências diretas sobre a aplicação do Direito do Consumidor aos usuários de serviço público, sobre os quais, junto com os concessionários, a incidência de uma série de prerrogativas de Direito Público exercidas pelo Estado sempre foi considerada natural.
Em tal medida, Marçal Justen Filho assinala: “O Direito do Consumidor foi concebido como instrumento de defesa daquele que se encontra subordinado ao explorador de atividades econômicas, organizadas empresarialmente para a produção e apropriação do lucro”[32]. Assim, com a mudança de paradigma e a cada vez mais crescente desestatização dos serviços públicos, realizáveis em regime de concorrência, visualiza-se a possível aplicação do Direito do Consumidor ao instituto.
Com a ciência dos acontecimentos e mutações conceituais, não é por acaso que o art. 7º da Lei Geral das Concessões, no seu “caput”, prevê a aplicação subsidiária do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos serviços públicos concedidos[33].
O próprio Código de Defesa do Consumidor, em alguns de seus dispositivos, inclui o serviço público no âmbito de sua abrangência. É o que se verifica nos arts. 4º, VII, 6º, X, e 22.
Outrossim, a lei consumerista ao definir o conceito de fornecedor[34], nele incluiu as pessoas jurídicas de direito público, o que possibilita a interpretação de ser aplicável ao instituto dos serviços públicos o Direito do Consumidor.
A transformação de perspectiva, portanto, faz com que uma disciplina de autoridade, que pressupunha uma relação vertical entre Estado e cidadão (administrado), e orientada à persecução de objetivos macroeconômicos, passa agora a formas de controle e de regulação voltadas a garantir em prol dos cidadãos a transparência e a prestação do serviço pelos melhores preços e condições possíveis, adaptados, na medida do possível, às necessidades individuais de cada um[35].
Outro fator relevante para a modificação na relação entre o usuário do serviço público e o seu titular é a expansiva eficácia que os direitos fundamentais possuem no Estado contemporâneo.
Com efeito, Ingo Wolfgang Sarlet assim leciona sobre os direitos fundamentais:
A dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de deveres e direitos fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos[36].
Vê-se, assim, que, atualmente, a maior satisfação possível dos usuários como meio de atendimento aos seus direitos fundamentais é o importante marco regulatório dos serviços públicos. Tal finalidade é alcançada, defendem alguns, não pela potencialização das prerrogativas do Estado, mas sim pela sua retirada, tanto como agente econômico ou como regulador, deixando como principal instrumento de satisfação dos interesses dos usuários a concorrência[37].
Ocorre, contudo, que tal solução é digna de crítica, já que aplicar indistintamente o Código de Defesa do Consumidor às relações que envolvam a prestação de serviços públicos pode acarretar na violação de conceitos básicos relacionados ao conceito de Estado e a princípios da Administração Pública.
De fato, apesar da tendência de identificação dos usuários de serviços públicos como consumidores comuns e da aplicação a eles da legislação consumerista, há peculiaridades inerentes ao próprio conceito de serviço público que fazem com que seja mantido um grau de critérios de direito público aplicáveis à relações entre o usuário/consumidor e o prestador do serviço público[38].
Frise-se, portanto, e como será melhor abordado nos tópicos seguintes, que tal aplicação merece ser melhor analisada, sob o ponto de vista de verificar quais os limites e possibilidades de sua realização.
7 OS LIMITES À APLICAÇÃO DO CDC AOS SERVIÇOS PÚBLICOS
O Direito do Consumidor teve a sua origem na cultura anglo-saxã, mormente na experiência norte-americana. Importante assinalar que, nos EUA, não se adota a noção de serviço público vigente nos países de cultura europeia. Todas as atividades econômicas se subordinam aos princípios fundamentais da livre iniciativa, com algumas ressalvas e limitações. Naquela cultura, ignora-se a concepção da titularidade estatal de certas atividades e inexiste figura exatamente idêntica à da concessão de serviço público[39].
Assim, destaca-se que o modelo norte-americano resultava na ausência de poderes estatais para disciplinar atividades econômicas de interesse coletivo, intervindo em favor do interesse do usuário.
Sobre o tema, assevera Marçal Justen Filho:
O Direito do Consumidor desempenha, no ordenamento jurídico norte-americano, a função assumida entre nós pelo instituto do serviço público. São alternativas diversas para a tutela dos mesmos princípios e valores. Vale dizer, o sistema anglo-saxão remeteu a satisfação das necessidades essenciais à iniciativa privada, mas reservou a aplicação de um regime próprio e peculiar, destinado a tutelar o usuário. A mesma necessidade conduziu outros ordenamentos a atribuir a titularidade do exercício das mesmas atividades ao Estado, subordinando seu desempenho ao regime de Direito Público[40].
Com efeito, viu-se já neste trabalho que o instituto do serviço público encontra-se moldado sobre a concepção da necessidade de restrição e limitação do poder econômico e de mercado de certos agentes econômicos. Para assegurar a satisfação dos interesses coletivos, determinou-se sua integração no patrimônio e no regime de direito público.
Percebe-se, portanto, que o acolhimento entre nós do Direito do Consumidor provoca dificuldades no âmbito do serviço público, especialmente porque o regime de serviço público assegura ao poder concedente algumas faculdades e prerrogativas anômalas, não conhecidas no ambiente anglo-saxão. Tais competências estatais derivam da concepção de incumbir ao Estado promover a tutela e a defesa dos usuários do serviço público.
De fato, o instituto do serviço público, tal como foi impregnado na nossa cultura, é um instrumento de satisfação dos direitos fundamentais, em que as condições unilateralmente fixadas pelo Estado refletem o modo de satisfazer o maior número de sujeitos, com o menor custo possível.
O regime de direito público, portanto, que se traduz em competências estatais anômalas, é indispensável para assegurar a continuidade, a generalidade, a adequação do serviço público. Se cada usuário pretendesse invocar o maior benefício individual possível, por meio das regras do direito do consumidor, os efeitos maléficos recairiam sobre outros consumidores[41].
Ciente dessa particularidade que envolve os serviços públicos, quando de sua relação com o Direito do Consumidor, tem-se o seguinte posicionamento:
O regime, porém, dos contratos concluídos com a administração é especial: mesmo se regido por leis civis, não perde a relação seu caráter dito de “verticalidade”, reservando-se a administração faculdades que quebram o equilíbrio do contrato. Se poderão as normas do CDC reequilibrar, na prática, esta relação é uma pergunta difícil. Certo é que cabe à administração cumprir as leis, e, em realidade, o CDC impõe a ela e a seus concessionários, enquanto fornecedores de serviços e eventualmente de produtos, deveres específicos, muitos deles relacionados ao equilíbrio do contrato. A nova disciplina dos contratos de fornecimento de serviços públicos deverá conciliar as imposições do direito constitucional, com a proteção do consumidor e as prerrogativas administrativas[42].
Aliás, não é por acaso que o art. 27 da Emenda Constitucional nº 19/98 previra que seria elaborada, no prazo de 120 dias, uma lei de defesa do usuário de serviços públicos. A regra acaba por reconhecer, então, a inviabilidade de aplicação automática e indiferenciada do Código de Defesa do Consumidor ao âmbito dos serviços públicos.
Outro aspecto importante nesta relação é o significado que o termo “adequação” precisa possuir no que tange aos serviços públicos. Deve-se ter em mente que a exigência de um serviço absolutamente perfeito equivale a produzir elevação do valor pago pelos usuários. Isso poderia provocar a existência de um serviço da mais alta qualidade, de que não poderiam usufruir grande parte dos usuários por carências de condições econômicas.
Assim, um serviço de caráter qualitativo suficiente, de alto custo, poderia, no âmbito do serviço público, ser considerado inadequado, já que não atenderia às necessidades dos cidadãos, de forma generalizada.
Com isso, o conflito entre essas duas lógicas acaba por criar várias correntes de pensamento sobre a categorização jurídica dos usuários de serviços públicos, as quais serão objeto de análise a seguir.
7.1 Teorias aplicáveis sobre a posição jurídica dos usuários de serviços públicos
a) Teorias Privatistas
Por esta teoria, sustenta-se que o nexo entre o concessionário e o particular é de natureza civil (consumerista/privatista), já que o contrário seria admitir-se a existência de relações jurídicas de Direito Público entre particulares. Mas a afirmação da natureza privada da relação não ilidiria a existência de uma série de normas de Direito Público sobre elas incidente, o que, aliás, é uma expressão do fenômeno intervencionista de administrativização das relações jurídicas privadas[43].
Dessa forma, essa corrente entende que não é pelo fato de haver normas de direito público incidentes sobre as relações contratuais que elas passam a ser relações de direito público.
Ela encontra maior amparo nos serviços públicos classificados como industriais ou comerciais, financiados por remuneração paga pelo particular que dele usufrui, principalmente nos casos em que tiverem sido delegados à iniciativa privada.
b) Teorias Publicistas
Esta teoria defende que é o Direito Público que rege a relação entre o particular e o prestador do serviço público, seja este industrial ou não (concepção solidarista/publicista). Tal relação seria de Direito Público por se referir a uma tarefa da Administração Pública e repousar sobre um direito de natureza jurídica pública, qual seja, o direito do administrado à prestação do serviço.
Assim, seria o procedimento regulamentar, mais que o contratual, que melhor se adequaria a essa relação, considerando o grande número de pessoas que usufruem do serviço público em condições semelhantes, o que permite uma regulação uniforme.
Com efeito, na esteira de tal teoria, Gabino Fraga argumenta:
Na verdade, usuário e concessionário de serviços públicos não têm qualquer liberdade minimamente significativa para discutir o contrato que entre eles será celebrado, estando as suas cláusulas já previamente estabelecidas estatutariamente, seja em normas legais ou regulamentares, constantes de atos normativos ou da própria concessão[44].
Para essa corrente, o termo usuário estaria mais de acordo com a identificação à cidadania política do que o termo “cliente” ou “consumidor”. Ele retrataria o particular que usufrui de um serviço como parte integrante do corpo social que constituiu o Estado como instrumento de proteção e fortalecimento dos valores transcendentes da pessoa humana.
A margem de autonomia contratual para criar cláusulas não previstas previamente na lei ou nos regulamentos, possivelmente existente entre o usuário e o prestador de serviço público, não invalida os argumentos defendidos por essa doutrina. Isso porque a referida autonomia e a possibilidade de aplicação de normas de Direito Privado nunca poderão contrariar as condições do serviço, haja vista que a Administração Pública possui a prerrogativa de alterá-las, visando ao interesse público.
Segundo Alexandre Santos de Aragão[45], o grande erro da teoria publicista é partir de uma concepção exacerbada da autonomia da vontade como sendo o único e particular modelo explicativo dos mecanismos contratuais. Ou seja, ela desconsidera que o próprio Direito Privado contemporâneo incorpora uma série de figuras contratuais com forte ingerência publicista, tais como os contratos coativos, autorizados, de adesão, entre outros. Desse modo, defender que os usuários de serviços públicos têm uma relação puramente estatutária com o seu prestador seria igualá-la às relações jurídicas estatutárias existentes no Direito Administrativo com a dos servidores públicos.
E nesse último ponto, portanto, estar-se-ia confundindo a clássica lição que distingue a sujeição geral, que ocorre entre a Administração Pública e seus administrados, de uma maneira indeterminada, da sujeição especial, que relaciona o indivíduo ao Poder Público mediante uma particularidade (especificidade).
c) Teorias Mistas
Conforme o próprio nome demonstra, esta teoria busca conciliar as anteriores, já que visualiza uma relação híbrida entre o usuário do serviço público e o seu prestador.
Com efeito, para ela, não existe teoria privatista pura quanto à caracterização jurídica dos usuários, já que, como visto, mesmo os que defendem a natureza privada do vínculo admitem o forte influxo de normas de Direito Público concernentes ao serviço.
Defensor desta teoria, Roberto Dromi assim estabelece a relação:
O usuário (ou cliente ou consumidor) se encontra unido à prestadora do serviço por um contrato [...]. Deste modo, a relação jurídica que mantém com a empresa que gere o serviço é contratual. Todavia, a necessidade ou o interesse público que deve ser satisfeito através do serviço público justificam que o seu regime jurídico (marco regulatório, ordenação e organização, fiscalização e regime sancionatório) seja estabelecido pelo Estado. Na relação jurídica contratual que se produz entre os usuários ou clientes e as empresas prestadoras privadas, o regime jurídico apresenta características mistas, correspondendo à aplicação do Direito Privado, sem prejuízo dos aspectos de Direito Administrativo, e do marco regulatório especial que rege justamente por se tratar de serviço público[46].
É notório, portanto, para essa teoria, que se devam incidir especificidades publicistas na relação contratual existente entre o usuário e o prestador do serviço público, já que esta envolve uma forte dimensão política.
À evidência, a prestação de serviços públicos, especificamente quando delegados à iniciativa privada, é regida parcialmente pelo estatuto de regulamentação pública. Porém, segundo esta doutrina, só se entra sob a incidência desse estatuto mediante a celebração de um contrato de prestação de serviços entre dois particulares – usuário e concessionário –, que, como tal, é de natureza civil em todos os aspectos que não contrariem a situação estatutária.
Esta relação mista se fortalece, ademais, quando se tem a ciência de que o serviço público se apresenta como um exercício de aplicabilidade e satisfação dos direitos fundamentais do cidadão. Logo, necessário se faz incrementar na essencialidade do instituto instrumentos do regime jurídico de direito público.
7.2 As prestações “uti universi” e “uti singuli”: distinção como critério de aplicação do CDC aos Serviços Públicos
Os serviços públicos, quanto aos seus destinatários e forma de expressão, podem ser classificados em gerais (ou “uti universi”) e individuais (ou “uti singuli”). Tal classificação é um importante parâmetro para se verificar a incidência ou não do Direito do Consumidor aos serviços públicos, e sua extensão.
Os serviços públicos “uti universi” são aqueles prestados de forma indiscriminada, sem usuários predeterminados. O Estado oferece o serviço independentemente de remuneração específica. Assim, é ele custeado mediante a cobrança de impostos.
Os serviços “uti singuli”, por sua vez, são os mensuráveis e divisíveis, custeados mediante taxa ou tarifa (preço público), conforme sua compulsoriedade ou facultatividade, respectivamente.
A doutrina divide-se, no ponto, quanto à extensão de aplicação do CDC, alguns se posicionando pela aplicação indiscriminada e ampliativa da lei consumerista, abrangendo tanto os serviços gerais quanto os individuais, e outros pela restrição de aplicação, para alcançar somente os serviços “uti singuli”, prestados direta ou indiretamente pelo Estado, mediante remuneração específica do usuário. Para esta última corrente, portanto, os serviços “uti universi” não sofreriam a incidência do CDC.
A diferenciação de posicionamento encontra-se na distinta interpretação que se faz do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, que prevê, entre outras normas, que o serviço público deve ser remunerado para a incidência da lei.
Com efeito, Luiz Rizzato Nunes[47], defensor da primeira corrente, interpreta que, quer o usuário pague, quer não, pelo serviço público, não é esse o fator que irá afastar a incidência da norma. Essa afirmação se sustenta no raciocínio de que, mesmo na hipótese de ausência de pagamento direto e imediato, o serviço será custeado pelo particular de alguma forma, mesmo que de forma indireta. Ademais, afirma-se que o Código não exige remuneração específica, podendo o serviço ser custeado mediante impostos.
Outro fundamento da corrente extensiva encontra-se em buscar a intenção do legislador, que foi a de incutir, no âmbito do serviço público, a mesma dinâmica proposta pra o setor privado, de harmonização das relações de consumo. Excluindo-se os serviços “uti” universi”, uma parcela considerável da sociedade, que vive em condições precárias, não estaria albergada pela legislação protetiva do consumidor, desatendendo-se, assim, o princípio da universalidade da tutela.
Por outro lado, defendendo a aplicação restritiva, a maior parte da doutrina argumenta que o vínculo existente entre o usuário de serviço público “uti universi” e o Poder Público é tão somente de caráter cívico, não havendo caracteres de relação consumerista nesta prestação. Assim, estender a aplicação do Código a estes casos seria desvirtuar o conceito de consumidor e fornecedor dado pelo legislador, já que o artigo 3º é expresso ao utilizar o termo “mediante remuneração”. Além disso, o imposto, por força de lei, não pode ser vinculado, de modo que a sua exigência não gera dever jurídico de contraprestação para o Estado.
Com efeito, Adalberto Pasqualotto, em artigo a respeito do tema, assim pondera:
A disciplina correta dos serviços públicos protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor deve considerar a inter-relação existente com a disciplina desses mesmos serviços no Direito Constitucional e no Direito Administrativo. Segundo esses parâmetros, não são abrangidos no Código de Defesa do Consumidor os serviços públicos próprios, prestados uti universi diretamente pelo Estado, mantido pelos tributos gerais, porque falta-lhes, sob a ótica do Código do Consumidor, o requisito da remuneração específica[48].
Para rebater a primeira corrente, deve-se lembrar que no sistema tributário vige o princípio da capacidade contributiva, segundo o qual a contribuição é proporcional à renda da pessoa, tudo com vistas à redistribuição, em tese, de riquezas. Sob esse ângulo, verifica-se que não é necessariamente quem paga mais tributo que usufruirá mais dos serviços, dado que usufrui dele quem dele precisa, independentemente do quanto foi pago, ou se houve pagamento. Logo, não há como se falar em “remuneração”, uma vez que é potencial usuário inclusive aquele que nunca tenha recolhido tributos.
Portanto, para esta corrente, os serviços gerais ou “uti universi” não sofreriam a incidência do CDC, já que custeados mediante impostos.
Há, por fim, quem defenda ainda a não aplicação da lei consumerista, quer para os serviços “uti universi”, quer para os “uti singuli”. Defende-se que o liame estabelecido entre o usuário de serviço público e a concessionária não equivale ao que se forma numa transação consumerista, de modo que não resta caracterizada a presença de consumidor e fornecedor nos polos opostos da relação contratual.
Antônio Carlos Cintra do Amaral[49], posicionando-se neste último sentido, assim estabelece:
Considerar o usuário como consumidor do serviço público a ele prestado pela concessionária talvez seja possível sob a ótica econômica. Mas sob a ótica jurídica o usuário de serviço público e o consumidor estão em situações distintas. Uma coisa é a relação jurídica de serviço público. Outra a de consumo.
Com efeito, para ele, a relação jurídica entre a concessionária e o usuário não pode ser equiparada à existente entre duas pessoas privadas, que atuam na defesa de seus interesses específicos. O serviço público, cujo exercício é atribuído à concessionária, continua na titularidade e sob a responsabilidade do poder concedente. Perante a relação de consumo, diversamente, o Poder Público atua como “protetor” da parte considerada hipossuficiente, que, em regra, é o consumidor[50].
Pois bem, estabelecida estas variações de pensamento, resta ainda aferir a questão atinente à diferenciação, no toca aos serviços “uti singuli”, dos remunerados por meio de taxa dos mediante tarifa ou preço público.
7.3 A incidência do CDC aos serviços públicos remunerados por taxa e tarifa
No item anterior, verificou-se que, a despeito de existirem algumas posições divergentes, grande parte da doutrina entende que somente haverá incidência do Código de Defesa do Consumidor quando o serviço público prestado caracterizar-se por ser mensurável individualmente e provier de remuneração específica.
Ocorre, contudo, que tal modalidade de serviço pode apresentar como remuneração tanto a taxa, espécie tributária que se particulariza pela sua compulsoriedade, quanto à tarifa, receita originária equiparável ao preço público e que possui caráter facultativo.
Marçal Justen Filho[51], tratando do tema, apresenta três critérios distintivos entre os dois elementos: 1º) o regime jurídico; 2º) o princípio da legalidade, e; 3º) o princípio da anterioridade.
Com efeito, segundo o primeiro critério, a diferença entre taxa e tarifa se relaciona com a cobrança por serviços potenciais, colocados à disposição do usuário. O regime jurídico da taxa se caracteriza pela possibilidade de exigência do pagamento da prestação tributária mesmo quando não tiver ocorrido a fruição efetiva do serviço público. Já o regime jurídico da tarifa não comporta solução exatamente idêntica, ainda que se possível a existência de tarifas mínimas. Não é permitido que o usuário seja constrangido, contra a sua própria vontade, a usufruir o serviço e pagar a tarifa.
O segundo elemento diferenciador consiste no princípio da estrita legalidade, característico do direito tributário. Insculpido no art. 150, inciso I, traduz-se na necessidade de todos os aspectos do tributo serem definidos por lei, eliminando-se a discricionariedade administrativa. Assim, uma taxa de serviço público apenas pode ser cobrada se tiver sido instituída em lei, e é necessário que seu montante conste de um mandamento normativo legal. A tarifa, por sua vez, tem regime jurídico distinto, sendo fixada na via administrativa. Não se sujeita ao princípio da estrita legalidade, seja no tocante à sua instituição, seja no relativo à sua modificação.
Por fim, a terceira diferença reside no princípio da anterioridade, pelo qual nenhum tributo será exigido no mesmo exercício em que tiver sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou (art. 150, inciso III, “b”, da Constituição Federal). Tal princípio se aplica às taxas, espécie tributária, e não às tarifas[52].
Conclui-se, portanto, ao se analisar as respectivas distinções, que somente é possível atribuir ao particular o desempenho dos serviços por conta e risco próprios se a remuneração a ele atribuída estiver sujeita a um regime jurídico específico. Esse regime jurídico específico funda-se na intangibilidade da equação econômico-financeira.
Com efeito, como a recomposição da equação econômico-financeira faz-se na via administrativa, a variação da remuneração do concessionário independe de previsão em lei. Pode-se fazer-se a qualquer tempo, e não está sujeita ao princípio da legalidade.
Quanto ao tema, relevante a posição de José Geraldo Brito Filomeno[53]:
Importante salientar-se, desde logo, que aí [conceito de serviço no CDC] não se inserem os “tributos”, em geral, ou “taxas” e “contribuições de melhoria”, especialmente, que se inserem no âmbito das relações de natureza tributária.
Não se há de confundir, por outro lado, referidos tributos com as “tarifas”, estas, sim, inseridas no contexto dos “serviços” ou, mais particularmente, “preço público”, pelos “serviços” prestados diretamente pelo Poder Público, ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa privada.
O que se pretende dizer é que o “contribuinte” não se confunde com “consumidor”, já que no primeiro caso o que subsiste é uma relação de Direito Tributário, inserida a prestação de serviços públicos, genérica e universalmente considerada, na atividade precípua do Estado, ou seja, a persecução do bem comum.
À evidência, não há relação contratual entre o Poder Público, arrecadador de tributos, e o particular, visto que não há consensualidade na relação jurídica. Frise-se que, quando o Estado exerce a competência tributária, está atuando com “ius imperii”. A relação não é de coordenação, mas sim de subordinação.
No mesmo sentido, assevera o professor Cláudio Bonatto:
Quanto aos serviços denominados uti singuli, somente estarão diretamente abrangidos pelas regras do CDC, na medida em que esteja completa a relação jurídica de consumo, com a participação efetiva de um consumidor, pelo que, afastados desta condição estariam os serviços públicos remunerados por taxas, eis que nestes está presente a figura do contribuinte[54].
Vê-se, com tudo isso, que a controvérsia sobre a incidência do Código de Defesa do Consumidor se fundamenta na forma de remuneração dos serviços prestados, bem como na relação existente entre as pessoas envolvidas. Tal discussão é relevante, já que orienta a forma de aplicação do regime jurídico adequado à situação fática apresentada.