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Inconstitucionalidade da extinção da Estação Ecológica de Iquê (MT)

20/05/2012 às 17:30
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Considerando a natureza de ato administrativo em sentido material da LEI que, nos termos da legislação vigente, possui a força de extinguir uma unidade de conservação, finda-se por viciar os elementos competência e forma do Decreto de homologação da Terra Indígena Enawenê-Newê, que também é um ato administrativo.

Sumário: 1. Introdução. 2. Inconstitucionalidade do Art. 2º do Decreto S/Nº, de 02 de Outubro de 1996. 3. Conclusão. 4. Referências.


1. Introdução

Trata de artigo jurídico visando analisar os efeitos da extinção da Estação Ecológica de Iquê –MT, criada pelo art. 1º, inciso III, do Decreto nº 86.061, de 02 de junho de 1981.

 A mencionada extinção decorreria do Decreto s/nº, de 02 de outubro de 1996, que homologou a demarcação administrativa da Terra Indígena Enawenê-Newê, localizada nos municípios de Juína, Comodoro e Campo Novo do Parecis, Estado de Mato Grosso, haja vista que o mesmo, em seu art. 2º, teria revogado expressamente inciso III, art. 1º, do Decreto nº 86.061, de 02 de junho de 1981, extinguindo a Esec de Iquê – MT.


2. Inconstitucionalidade do Art. 2º do Decreto S/Nº, de 02 de Outubro de 1996

Disciplina a Constituição Federal em seu art. 225, § 1º, inciso III, que:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:”

“III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;” (original sem grifos)

Na mesma linha do comando constitucional, o art. 22, § 7º, da Lei nº 9.985/2000 (SNUC), dispõe que:

“Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público, sendo que:”

“§ 7º A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica.” (original sem grifos)

Como se percebe, as unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público, após estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade (art. 22, § 2º, da Lei nº 9.985/2000). Esse ato pode ser lei ou decreto, sendo o último mais comum.

Em contrapartida, o art. 225, § 1º, inciso III, da Constituição Federal, estabelece que a alteração e a supressão são permitidas somente através de lei. Em harmonia com a Carta Magna, o art. 22, § 7º, do SNUC, dispõe que “a desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica.[1] Portanto, mesmo que seja criada por decreto, para desafetar ou deduzir os limites de uma unidade de conservação é necessária a edição de lei com esse objetivo específico.

A previsão de lei para a extinção de uma unidade de conservação não é à toa. Nunca é demais lembrar que uma unidade de conservação só é criada quando, frente às suas características naturais relevantes, reconhece-se a necessidade de uma proteção diferenciada por parte do Poder Público e da coletividade. Nas palavras de Édis Milaré:

“Espaços territoriais especialmente protegidos são espaços geográficos, públicos ou privados, dotados de atributos ambientais relevantes, que, por desempenharem papel estratégico na proteção da diversidade biológica existente no território nacional, requerem sua sujeição, pela lei, a um regime de interesse público, através da limitação ou vedação do uso dos recursos ambientais da natureza pelas atividades econômicas.”[2]

Ocorre que essas características naturais relevantes e a respectiva necessidade de proteção não desaparecem de um dia para o outro. Muito pelo contrário, quando uma unidade de conservação é criada traz entranhada na sua razão de existir a idéia de definitividade, tudo em harmonia com a necessidade de guardar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

Portanto, não é razoável que, repita-se, após já reconhecida a necessidade de uma proteção especial, a administração pública, por simples ato administrativo, desafete ou reduza os limites de uma unidade de conservação.

Se para a criação se exige um prévio processo administrativo (com estudos técnicos e consulta pública), é importante que, ao menos, haja um debate parlamentar prévio à extinção de uma unidade de conservação, cuja importância para a preservação da biodiversidade já tenha sido reconhecida pela sociedade, através de seus representantes legais.

Ademais, perceba-se que por possuir efeitos concretos (despindo-se da generalidade comum às leis ordinárias), a lei que extingue uma unidade de conservação, apesar de ser lei em sentido formal, tem natureza de ato administrativo em sentido material - consoante entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).[3] O que garante, no plano prático-jurídico, uma simetria com o ato administrativo de criação, mesmo sendo ele um decreto.

Acontece que no caso sob análise, contrariando a Lei nº 9.985/2000 (SNUC) e, principalmente, a Constituição Federal de 1988, o art. 2º do Decreto s/nº, de 02 de outubro de 1996 revogou expressamente o inciso III, art. 1º, do Decreto nº 86.061, de 02 de junho de 1981, extinguindo a Estação Ecológica de Iquê-MT, conforme, inclusive, observado no Acórdão nº 51/2007 do TCU – Plenário, prolatado nos autos do processo TC-003.925/2004-5, que determina à Presidência do IBAMA:

“9.3 cientificar o Ministério do Meio Ambiente – MMA sobre a inconstitucionalidade do art. 2º do Decreto s/nº, de 2/10/1996, que extinguiu a Estação Ecológica de Iquê, orientando-o no sentido de que sejam adotadas as medidas necessárias ante o impedimento legal de supressão de áreas protegidas via Decreto, ex vi do art. 225, inciso III, da Constituição Federal de 1988.”

Aqui é importante perceber que não houve declaração de inconstitucionalidade por parte do TCU. Determinou-se apenas que a Presidência do IBAMA cientificasse o Ministério do Meio Ambiente – MMA sobre o vício de inconstitucionalidade do art. 2º do Decreto s/nº, de 02 de outubro de 1996. Até porque, não cabe ao TCU declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, competência afeta ao Poder Judiciário, seja em controle difuso pelos seus diversos tribunais ou em sede de controle concentrado pelo STF.

Como se vê, é inconstitucional e ilegal a extinção da Esec de Iquê-MT por decreto. Nesse sentido, considerando ainda a natureza de ato administrativo em sentido material da LEI que, nos termos da legislação vigente, possui a força de extinguir uma unidade de conservação, finda-se por viciar os elementos competência e forma do Decreto de homologação da Terra Indígena Enawenê-Newê, que, como visto, também é um ato administrativo. Em relação aos referidos vícios, o art. 2º, parágrafo único, alíneas “a” e “b”, da Lei nº 4.717/65, disciplina que:

“a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou”.

“b) vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis á existência ou seriedade do ato”.

No concernente ao vício de competência, forçoso lembrar que, por previsão expressa do art. 225, § 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 e do art. 22, § 7º, da Lei nº 9.985/2000 (SNUC), as unidades de conservação apenas podem ser desafetadas ou terem seus limites reduzidos por lei. Conseqüentemente, tendo em vista a competência do Poder Legislativo para a edição leis em sentido formal, o Poder Executivo, ao editar o art. 2º do Decreto s/nº, de 02 de outubro de 1996, extrapolou sua competência constitucional, invadindo a competência do Poder Legislativo. Resta ferido, portanto, o princípio da separação dos poderes (art. 2º da Constituição Federal de 1988).

Já no tocante ao vício de forma, esclarece Lucas Rocha Furtado, referindo-se aos requisitos dos atos administrativos, que “A forma diz respeito a cada ato e é materialização destes atos. Saber como o ato deve-se exteriorizar ou manifestar é questão que decorre do exame da forma do ato administrativo”. Em seguida, destaca o autor que “A lei impõe forma aos atos administrativos tendo em vista, dentre outros aspectos, a necessidade de controle. Se os atos não observam as formas legais impostas, o ato deve ser anulado”.[4]

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Portanto, ao editar um decreto em lugar de lei, o Poder Executivo, além de editar um ato administrativo para o qual não tinha competência, posto ser esta afeta ao Poder Legislativo, também editou esse mesmo ato sob uma forma distinta da prevista na legislação, eivando-o novamente de nulidade.

Por fim, atrele-se ao narrado que, frente à gravidade dos vícios apontados, essa nulidade é de natureza absoluta e não relativa, não podendo, por óbvio, ser convalidado pelo Poder Executivo ou mesmo pelo Poder Legislativo. Ou seja, o ato é nulo, não anulável.


4. Conclusão

Ante tudo o exposto, o art. 2º do Decreto s/nº, de 02 de outubro de 1996, é inconstitucional e ilegal, posto que contraria expressamente a imposição de lei específica para a desafetação de unidades de conservação, consoante disposto no art. 225, § 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 e no art. 22, § 7º, da Lei nº 9.985/2000.


5. Referências

- CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006;

- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo – 15. ed. – São Paulo: Atlas, 2003;

- FURTADO, Lucas Rocha, Curso de Direito Administrativo, Belo Horizonte: Fórum, 2007;

- MILARÉ, Édis, DIREITO DO AMBIENTE doutrina – jurisprudência – glossário, 4. ed. Rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005;

- MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional, - 21. ed. - São Paulo: Atlas, 2007.


Notas

[1] “A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica, consoante dispõe o § 7.º do citado art. 22, em harmonia, aliás, com o estatuto no art. 225, § 1.º, III, da Constituição Federal. Vale recordar que a desafetação exprime 'o ato pelo qual o poder público desclassifica a a qualidade de coisa pública, para permiti-la apropriável'. A desafetação implica que a unidade de conservação já esteja no domínio público.” (MILARÉ, Édis, DIREITO DO AMBIENTE doutrina – jurisprudência – glossário, 4. ed. Rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 387.)

[2] MILARÉ, Édis, DIREITO DO AMBIENTE doutrina – jurisprudência – glossário, 4. ed. Rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 358.

[3]“CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COM EFEITO CONCRETO. LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS: Lei 10.266, de 2001. I. - Leis com efeitos concretos, assim atos administrativos em sentido material: não se admite o seu controle em abstrato, ou no controle concentrado de constitucionalidade. II. - Lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata, é lei de efeitos concretos, que não está sujeita à fiscalização jurisdicional no controle concentrado. III. - Precedentes do Supremo Tribunal Federal. IV. - Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.” (ADI-MC 2484 / DF - DISTRITO FEDERAL;  MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE; Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO; Julgamento: 19/12/2001 Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Publicação DJ 14-11-2003 PP-00011; EMENT VOL-02132-13 PP-02452) (original sem grifos).

[4] FURTADO, Lucas Rocha, Curso de Direito Administrativo, Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 263 e 303.

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Sobre o autor
Bruno Rocha Machado

Ex-Procurador Federal, com atuação junto às Procuradorias Federais Especializadas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Atualmente é Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Bruno Rocha. Inconstitucionalidade da extinção da Estação Ecológica de Iquê (MT). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3245, 20 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21787. Acesso em: 2 nov. 2024.

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