3. AS TUTELAS DE URGÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO.
Ponto medular da presente exposição, a tutela de urgência no direito brasileiro inseriu-se, como em grande parte de países, pela necessidade de se dar uma resposta satisfatória a determinadas demandas jurídicas que não encontravam no procedimento ordinário um meio idôneo para suas consecuções. Como observou Ada Grinover, o procedimento ordinário de cognição, tomado, via de regra, como ponto central do ordenamento jurídico, foi corroído por novas posturas, que postulavam a efetividade do processo e um processo de resultados[31].
Foi nessa contextura que surgiu a necessidade de um tipo de procedimento que viabilizasse a persecução desses novos ideais, com um novo arcabouço procedimental mais consentâneo com o material a ser tutelado e apto a fazer frente a situações de urgência. Tutela de urgência, tutela sumária lato sensu, tutela jurisdicional diferenciada: são todos termos para designar o mesmo fenômeno que se tem em mira. A partir de agora, passa-se à análise da que talvez seja a maior controvérsia sobre a matéria em nosso direito: aquela acerca da natureza das tutelas ditas cautelares e das tutelas ditas antecipatórias. Há, neste ponto, grave disceptação doutrinária: a maioria dos doutrinadores (com eles a jurisprudência) entende que cautelar e antecipada são tutelas substancialmente distintas; corrente minoritária, entende, por seu turno, que ambas têm a mesma natureza.
3.1 Os critérios para diferençar tutela cautelar e tutela antecipada (satisfatividade e grau de cognição). Exposição da atual doutrina dominante no Brasil.
Para a doutrina dominante, é clara a distinção entre medida cautelar e medida antecipatória. As primeiras seriam aquelas que “objetivam apenas garantir a ´justiça` e a eficiência prática da futura (provável sentença)”, enquanto estas “antecipam, integrando-o no patrimônio jurídico do autor (no todo ou em parte), exatamente aquele bem da vida postulado pelo demandante”[32]. Assim, a tutela cautelar somente serviria para a manutenção da possibilidade de o processo principal resultar em um proveito efetivo para a parte vencedora, donde já se ter dito que ele detém uma “instrumentalidade ao quadrado”[33], e a tutela antecipada adiantaria, de logo, um direito que somente poderia ser fruído ao fim do procedimento, com o pronunciamento judicial definitivo e a conseqüente formação da coisa julgada material.
Conseqüentemente, essa doutrina não admite a possibilidade de uma tutela cautelar “satisfativa”, é dizer: uma tutela cautelar que conceda uma situação fática idêntica à que será (ou poderá ser) proporcionada à parte vencedora ao término do procedimento. Isso é uma contradição, fato tão “desarrazoado e inaceitável quanto a idéia de gelo quente”[34]. A grita dessa corrente doutrinária culminou na reforma do Código de Processo Civil, que, com a lei de número 8952/94, incluiu o inc. I e deu nova redação ao caput do art. 273, além do § 4º do art. 461, a fornecer todo o aparato legislativo para, pretensamente, corroborar a tese da distinção entre as tutelas de urgência.
A partir de então, fixou-se critério para a concessão de cada uma delas, que difeririam entre si, especificamente acerca do grau de cognição necessário para tanto. Com a dicção do art. 273, fixou-se no imaginário dessa doutrina um conceito de “prova inequívoca”, que conferiria a “verossimilhança” das alegações do autor a que alude o texto normativo[35]. Segundo tal entendimento, a verossimilhança em que se deve basear a alegação do autor nestes casos seria totalmente diferente do fumus boni iuris requisito da concessão da tutela cautelar concedida com base no art. 798, do mesmo diploma legislativo.
Assim, a possibilidade de admitir-se a “cautelar satisfativa”, que durante muito tempo teve lugar na jurisprudência, pelo fato de não haver precisão da tutela antecipada, teria ruído com a reforma que fez os acréscimos já mencionados. Entretanto, desde esta reforma, vozes há que se insurgem contra esse entendimento, encampado por muitas das mais abalizadas doutrinas brasileiras. Dedicar-se-á, agora, à análise breve dessa “dissidência”.
3.2 A crítica à doutrina dominante. O pensamento de José Roberto Bedaque e de Marcelo Lima Guerra.
Desde a reforma do Código de Processo Civil de 1994, há quem sustente que a tutela antecipada prevista pelo artigo 273, inc. I, é apenas uma modalidade da tutela cautelar. Leia-se o que escreveu Marcelo Lima Guerra à época:
De fato [...] a antecipação, ali referida, é, sem dúvida, prestação de tutela cautelar (sob a forma de liminar) no próprio processo principal. É que, nessa hipótese, a antecipação dos efeitos da decisão final tem função idêntica à de todas as medidas cautelares, a saber, a garantia do resultado útil (efetividade) da decisão final.[36]
Prosseguiu o professor cearense para dizer que os requisitos dessa medida eram exatamente os mesmos necessários para a concessão da tutela cautelar baseada no art. 798, do Código de Processo Civil. Ou seja: entendeu o processualista citado que o “fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação” e a “verossimilhança da alegação do autor” corresponderiam, exata e respectivamente, ao periculum in mora e ao fumus boni iuris[37]. Esta interpretação diverge, como se pode facilmente perceber, da orientação da doutrina dominante. Fundamentalmente, traz para o bojo dos provimentos cautelares a tutela dita antecipada, algo impensável para a doutrina majoritária[38].
Para esta corrente, o fundamento da tutela cautelar, sua justificação mesma, é a necessidade de se efetuar uma composição parcial de um litígio, quando a demora para que isso ocorra ao fim do procedimento ordinário possa custar a própria existência do direito em discussão. Nesse espírito é que o processo cautelar é dito consistente em um conjunto de atividades complexas através das quais se procura a eliminação do periculum in mora[39], com a colocação da natureza cautelar de uma medida cautelar no intento de preservar ao máximo a efetividade do processo, através do afastamento do mal causado pela sua demora, por si mesmo fator de risco para a utilidade do resultado final[40]. Por ser o periculum in mora o elemento fundamental a ser debelado por uma tutela de urgência, a “tarifação” maior da cognição no bojo da tutela antecipada não se justifica, uma vez que o juízo de verossimilhança sobre alguma alegação das partes não deve ser encarado como um elemento principal para a concessão de um provimento jurisdicional de urgência. Mais: tal “tarifação” exacerbada, enquanto pode afetar a própria efetividade do processo por constituir um óbice à concessão de uma tutela antecipatória, deve ser considerada inconstitucional. Assim, Marcelo Guerra propõe a seguinte relação entre o periculum in mora e o fumus boni iuris: quanto maior for o primeiro, menor poderá ser o segundo, uma vez que aquele é o grande “inimigo” a ser enfrentado em provimentos de urgência.
A crítica mais forte que é feita por esta corrente diz respeito ao caráter satisfativo da tutela antecipada. Já se disse que os doutrinadores que separam as tutelas de urgência fazem-no, muitas vezes, aferrados ao critério da satisfatividade, que seria exclusividade da tutela antecipada. Entretanto, José Bedaque retruca no sentido de que há de ser feita a distinção entre a “satisfatividade fática” proporcionada pela tutela antecipada e a “satisfatividade jurídica”, proporcionável apenas pela sentença final, quando se dá a composição definitiva da lide, embora ambas sejam, em termos fáticos, situações idênticas, pois somente com a “satisfatividade jurídica” viria a aptidão do provimento jurisdicional para dar a solução da controvérsia com a emissão de um regra para o caso concreto[41]. Na mesma vereda se encontra a crítica de Marcelo Guerra, que, pela clareza e pela precisão – além do fato de a obra em que está gravada ser inédita, – merece transcrição:
É errado considerar que a “satisfatividade” das providências antecipatórias ex art. 273 do CPC seja idêntica àquela da tutela executiva e da tutela constitutiva. Ou antes, não são idênticas as situações que seriam “satisfeitas”, como se verá. Com efeito, aquilo que pode existir de comum entre as providências autorizaas pelo art. 273 e uma sentença constitutiva ou executiva é uma mera situação fática, desprovida de qualquer valor jurídico. O denominador comum entre essas providências [...] se reduz a isso: cada uma dessas providências (uma vez efetivadas) criam uma situação de fato na qual um sujeito goza de um “bem da vida”, ou seja, o resultado prático do cumprimento de uma prestação (de fazer, não fazer, dar coisa ou soma em dinheiro) por parte de um outro sujeito, ou do órgão jurisdicional (substituindo-se à parte adversa daquela beneficiária da providência em questão). Contudo, enquanto o cumprimento da prestação no caso das providências constitutivas e das executivas, corresponde ao cumprimento de uma norma individual (direito subjetivo) cuja existência já é reconhecida, no caso das providências antecipatórias, o resultado prático produzido corresponde ao cumprimento de uma norma individual (direito subjetivo) cuja existência ou pertinência ao ordenamento jurídico é uma mera hipótese.[42]
Na seqüência, o professor da Faculdade de Direito da UFC diz que a satisfatividade das providências antecipatórias é provisória, o que é reconhecido pela doutrina majoritária, provisoriedade definida pelos atributos revogabilidade e modificabilidade, comuns a todos os provimentos cautelares. Destarte, ainda que haja uma identidade empírica entre providências antecipatórias fundadas no art. 273 e os provimentos constitutivos ou executivos, eles divergem em seu valor jurídico. E fulmina: igualar essas situações seria como igualar o furto o roubo e a posse, pelo fato de estas três situações poderem ser descritas, no plano fático, como uma situação em que um sujeito está numa relação de mero contato físico com um bem[43].
3.3 Síntese conclusiva.
Expostas, tanto quanto basta para o trabalho, as doutrinas acerca da natureza da tutela de urgência no Brasil, importa tomar partido sobre as correntes trazidas. Há motivos fortes para concordar com o setor minoritário da doutrina na ênfase que deve recair sobre o periculum in mora, uma vez que as tutelas de urgência devem visar à conservação dos bens para os quais se busca proteção com o processo. Por tal razão, o fumus boni iuris pode ocupar um lugar secundário no juízo sobre a concessão das tutelas de urgência – aliás, a própria denominação destas denota que o combate se deve dar, sobretudo, contra a demora, não algo que se dê em favor de quem, acima de qualquer coisa, aparenta ter um bom direito. Se não houver qualquer previsão de dano ao longo da relação processual, dificilmente a probabilidade da existência de um direito alegado, por mais alta que seja, será suficiente para justificar a concessão de uma tutela antecipatória.
Este entendimento realiza, em maior medida, os direitos que são discutidos nas relações processuais, ao protegê-los em um número maior de situações, pois também abrange aquelas nas quais não há a alta probabilidade, deduzida em uma cognição mais profunda, como pretende a doutrina majoritária sobre as tutelas de urgência. Desse modo, o entendimento minoritário se adéqua melhor ao modelo constitucional de processo brasileiro, de maneira mais específica no imperativo da efetividade processual, uma das grandes (possivelmente a maior) bandeiras da processualística atual. Nem se diga que a satisfatividade promovida pela tutela antecipatória é a razão pela qual a cognição deve ser mais profunda nesta espécie de provimento jurisdicional, já que, como salientado na exposição das duas correntes doutrinárias, a satisfatividade é meramente fática e sem cunho definitivo. A eventual irreversibilidade dos efeitos provocados por algumas decisões antecipatórias é um preço a se pagar pelo valor “efetividade” que elas realizam; além disso, o magistrado deverá reunir poderes para, na medida do possível fática e juridicamente, tomar certas precauções para evitar tal irreversibilidade.
O reconhecimento da necessidade de respostas jurisdicionais que possam dar resposta condigna a situações mais ou menos extremas de risco na demora da resposta dos juízes é algo da ordem do irreversível na atual situação do processo brasileiro. Não é demais lembrar que esse reconhecimento não pode ser ilimitado, nem inconseqüente, nos casos concretos; outras são as garantias constitucionais que devem balizar a concessão dessas medidas. É importante lembrar que também o legislador, ao manejar a normatividade relativa a tais medidas, está condicionado às normas constitucionais e tem o dever de a elas se conformar – esta nota é de suma importância, quando se lembra que o país está com um projeto de Código de Processo Civil em trâmite. Em todos os casos, os poderes constituídos devem ter em mente que essas tutelas são ferramentas de trabalho com que os operadores do direito poderão trabalhar, a fim de afastar certos riscos da atividade processual (e promover valores constitucionalmente consagrados). Qualquer tentativa de se promover uma distinção entre as medidas que um ordenamento prevê para tanto poderá simplesmente obstar a consecução destes objetivos, com o que se reafirma a adesão às correntes minoritárias sobre as tutelas de urgência no direito brasileiro.
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