3 Reflexos para o sistema político
Nesse elenco de circunstâncias e de possibilidades, várias reflexões se voltam à análise do impacto da coligação sobre o sistema político. Um dos efeitos esperados é o aumento do número de partidos com representação nos órgãos legislativos, o que tem sido averiguado por indicadores de fragmentação parlamentar (fracionamento e Número Efetivo de partidos, em especial).[21]
Os estudos voltados ao período mais recente da política brasileira atestam este efeito. Schmitt (1999, p.115-116) simulou como ficaria a distribuição de cadeiras nas eleições para deputado federal de 1986, 1990 e 1994 se não houvesse coligação e comparou com o resultado oficial. Em 1986, ao invés de 12 partidos parlamentares, haveria 8. Em 1990, o número cairia de 19 para 16 e, em 1994, de 18 para 11. Dalmoro e Fleischer (2005, p.102) fizeram o mesmo para 1994, 1998 e 2002. Na soma dos 3 pleitos, o número de partidos representados passaria de 55 para 43 (redução de 21%).[22] Machado (2012, p.99) afirma que em 1990 não haveria redução (continuariam a ser 19 partidos) e que em 1994 em 1998 a queda seria de 18 para 14, em 2002 de 19 para 15 e, em 2006, de 21 para 18.
Quanto ao Número Efetivo de partidos, Nicolau (1996, p.77) o calculou para as eleições de 1994, atestando que ele se reduziria em todos os estados, com exceção de Santa Catarina, e que, no agregado nacional, cairia de 8,2 (no resultado oficial) para 6,7, uma redução de 18,5%. Schmitt (1999, p.117) fez o mesmo cálculo para 1986 e 1990, tendo observado o mesmo fenômeno: no primeiro pleito analisado, ele cairia de 2,8 para 2,7, e no segundo, de 8,7 para 7,6. Na abordagem de Dalmoro e Fleischer (2005, p.103), no período 1994-2002, ele passaria de uma variação de 7,14-8,49 para 6,00-7,16, ou seja, o índice mais alto sem coligações equivaleria ao mais baixo com coligações. O cálculo apresentado por Machado (2012, p.99), relativo ao período 1990-2006, atesta a redução, mas diverge quanto aos novos índices em relação aos anteriores: em 1990, passaria de 8,69 para 8,09; em 1994, de 8,15 para 7,10; em 1998, de 7,14 para 6,00; em 2002, de 8,49 para 7,16; e em 2002, de 9,29 para 7,51.
Freitas e Mesquita (2010) fizeram o mesmo teste para o período 1994-2006 e confirmaram a manutenção do cenário: as coligações aumentam significativamente o número de partidos que conseguem ao menos uma cadeira em comparação a uma simulação em que esta alternativa não existe. Na média dessas eleições, o número de partidos diminuiria de 19 para aproximadamente 14. Já a média do Número Efetivo de partidos cairia de 8,3 para 7,0.
Então, se a adoção das coligações diminui o número de listas concorrentes, pois transforma 2 ou mais possíveis competidores em um único; não necessariamente ela diminui o de partidos que conseguem eleger representantes. Ao inverso: a coligação é um meio utilizado pelas pequenas legendas para ampliar as chances de elegerem um representante e, assim, superarem o efeito mecânico produzido pelos sistemas eleitorais (privilegiar os partidos maiores).
Nicolau (1996) destaca que as peculiaridades do sistema eleitoral brasileiro geram efeitos contraditórios. As magnitudes elevadas, por exemplo, favorecem os pequenos partidos e produzem resultados desconcentradores. Contudo, a fórmula eleitoral e o quociente eleitoral equivalente à cláusula de exclusão atuam em sentido contrário, isto é, beneficiam os grandes partidos e reduzem o número de partidos parlamentares. Do modo como está estruturado no país, o recurso da coligação consegue não só neutralizar esse efeito, como aumentar o número de legendas com representação parlamentar. Há espaço até mesmo para o que ele chamou de “partidos de coligação”, aqueles que não têm votos para atingir o quociente eleitoral, mas garantem representação devido ao uso desse recurso e ao aproveitamento da votação de outras legendas.
Dos 513 deputados eleitos em 1994 nada menos que 54 deles, ou seja, mais de 10%, foram eleitos por partidos que não ultrapassaram o QE. O mesmo patamar foi registrado em 1998 e em 2002, e sofreu um aumento acentuado na eleição de 2006. Nesta contenda foram 111 deputados, o equivalente a 21,6% dos parlamentares, foram eleitos por partidos que não ultrapassaram o QE e que, portanto, caso as coligações fossem proibidas, não teriam eleito ninguém (FREITAS; MESQUITA, 2010, p.10).
Nicolau (1996, p.76) também lembra que a estrutura federativa brasileira contribui para o aumento do número de partidos representados na Câmara, ou melhor, a distribuição desigual da força dos partidos entre os estados, o que faz com que um partido grande nacionalmente possa não sê-lo em vários distritos. O índice calculado pelo agregado nacional das bancadas pode esconder fragmentações ainda mais elevadas, pois
as coligações favorecem os partidos menores no âmbito distrital (estados), mas esses partidos podem não ser os mesmos, ou seja, é razoável supor que a coligação parlamentar aumenta a fragmentação partidário-parlamentar no âmbito estadual, mas não necessariamente no âmbito nacional (Idem).[23]
Para uma corrente interpretativa, essa situação produz um parlamento fragmentado, com excessivo número de partidos representados, ao qual se somam interesses regionais que dividem as bancadas, legendas pouco coesas, deputados indisciplinados e que não valorizam a organização partidária. A coligação não é a única causadora desse cenário, mas contribui decisivamente para a formação dele, afirma tal versão. Os resultados para o sistema político são a extrema dificuldade para a composição da maioria estável que o executivo necessita para implantar sua agenda e uma permanente crise de governabilidade (PALERMO, 2000; LAMOUNIER, 1994; MAINWARING, 1993; AMES, 2003; MAINWARING; SHUGART, 2002).
Além de constituir a base de uma interpretação sobre as dificuldades do presidencialismo multipartidário, no qual se inclui o Brasil, considerado um modelo de “difícil combinação” (MAINWARING, 1991, 1993, 2001), a raiz dessa interpretação está na desconfiança ou na clara rejeição que muitos analistas têm do pluripartidarismo.[24]
Braga (2006) não concorda com essa visão, pois considera que a coligação não fragmenta o sistema partidário mais do que ele já o é. Após simular a distribuição de cadeiras na Câmara dos Deputados em 1998 sem a coligação, ela contabilizou quantos partidos seriam necessários para formar uma coalizão mínima vencedora – ou seja, com mais de 50% dos votos. O resultado indica que, com ou sem coligação, seriam necessários os mesmos 3 partidos (PFL, PMDB e PSDB). A comparação também mostra que 5 partidos (os 3 citados mais PPB e PT) controlam a ampla maioria dos votos (79% com coligação e 87% sem coligação). Ou seja, a aliança entre partidos produz efeitos, altera a distribuição de cadeiras entre partidos e aumenta a fragmentação, mas não afeta a concentração parlamentar e a estabilidade que o sistema já apresenta. Esta interpretação é contrária a dos adeptos da ideia de um arranjo institucional ineficaz no Brasil, desenhada mais acima, ou seja, ela afirma que o elevado número de partidos com representação e a fragmentação parlamentar não impedem a formação de coalizões estáveis e o estabelecimento da governabilidade.[25]
Se até então os efeitos atribuídos à coligação são vistos pela maioria dos estudiosos como perversos para o sistema político, outra perspectiva analítica destaca um aspecto positivo: a redução na desproporcionalidade dos resultados eleitorais. Lijphart (2003, p.182) argumenta que, como o apparentement ajuda os menores partidos, e como são eles os principais atingidos pela exclusão, pode-se esperar que este recurso produza menos desproporcionalidade. Na mesma linha, Farrell (2001, p.78) afirma que o apparentement pode ser usado para reduzir a desproporcionalidade, principalmente em sistemas que adotam a fórmula eleitoral D’Hondt, que produz mais exclusão.
Com vistas a testar essa hipótese, Schmitt (1999, p.117) desagregou a votação dos partidos na disputa para deputado federal de 1986 a 1994 e constatou que, sem a coligação, a desproporcionalidade seria mais elevada. Ele a calculou a partir da fórmula elaborada por Loosemore e Hanby, tendo verificado que, em 1986, o índice passaria de 11, 8 para 14,6; em 1990, de 10,6 para 15,3; e em 1994, de 8,4 para 12,5. Dalmoro e Fleischer (2005) adotaram idêntico procedimento para os pleitos de 1994 a 2006 e chegaram ao mesmo diagnóstico. A diferença em relação a Schmitt é que eles se serviram do índice de desproporcionalidade de Gallagher.[26] Com a utilização da coligação, ele variou de 4,3 a 3,06 nos pleitos analisados, enquanto, sem ela, variaria de 6,36 a 4,42, ou seja, o patamar mais alto com a aliança é mais baixo do que o mais baixo sem o uso desse recurso.
Braga (2006, p.234-235) argumenta que, sem as coligações, mas com a manutenção das demais regras, haveria uma elevação na desproporcionalidade sistêmica gerada pela fórmula eleitoral, bem como na esterilização dos votos. Na mesma medida, afirma que o instrumento da coligação ajudou aqueles partidos que surgiram pequenos, com uma estrutura organizacional limitada aos principais estados e às grandes cidades a ganharem espaço e a nacionalizarem-se (entendido como a expansão para as diversas unidades da federação e, dentro dos estados, aos pequenos municípios) (Idem, p.237-242).[27] Ela também pondera que, como os partidos grandes no agregado não se apresentam uniformemente no país, também eles foram ajudados pelas coligações, especialmente nos estados em que eram ou são pequenos. Logo, “as coligações desempenharam e continuam desempenhando papel importante no sentido de termos um sistema partidário mais representativo, competitivo e nacional” (Idem, p.242).
Se as coligações são um instrumento importante para reduzir a desproporcionalidade, assim como uma forma de os partidos pequenos superarem o efeito mecânico gerado pelo sistema eleitoral brasileiro, elas produzem tais resultados a partir de uma expressiva transferência de votos. Por conta do sistema de lista aberta, de as cadeiras serem distribuídas aos candidatos mais votados e de a coligação formar um “partido virtual”, tal transferência ocorre entre membros do mesmo partido, mas também entre membros de partidos diferentes. Em outras palavras: a transferência de votos intrapartidária é inerente ao sistema eleitoral brasileiro e não é provocada pelas coligações, pois ocorre ainda que um partido não esteja coligado e continuaria a ocorrer se as coligações fossem proibidas ou regulamentadas com o cálculo intralista; no entanto, do modo como elas existem atualmente surge também a possibilidade da transferência interpartidária.
A esse risco se pode somar o fato de as coligações obedecerem à busca pela maximização de resultados eleitorais, logo, a princípio, todos os partidos estão dispostos a coligar, independentemente da orientação programática dos aliados. Ao não impedir que partidos de espectros políticos distintos e até mesmo opostos se aliem, a coligação transfere a preferência do eleitor e este, ao escolher um candidato, pode ajudar a eleger outro, de partido e de orientação política diferente (SCHMITT, 2005). Tal fenômeno atinge, inclusive, aquele que vota na legenda partidária e que supostamente manifestou a vontade pelo partido mais do que por um candidato, já que existe a possibilidade de, ao votar em determinada legenda, acabar por eleger candidato de outra.
Em termos de representação, essa transferência possibilitada pela coligação em eleições proporcionais torna-se crítica, pois distorce a vontade dos eleitores ao conferir destino distinto do desejado por estes, justamente quando o procedimento eleitoral em si visa a assegurar a vontade deles.[28] Na opinião de Desposato,
O vote-pooling [a transferência] é problemático, e esse defeito é magnificado pela frequência de coalizões [coligações] eleitorais [...] As transferências ocorrem entre localidades geográficas e ideológicas, dificultando a representação. O problema é exacerbado por coalizões [coligações] eleitorais heterogêneas, que permitem que os votos sejam transferidos entre todos os tipos de políticos, tanto da extrema esquerda como da extrema direita (DESPOSATO, 2007, p.144).
Além dos problemas para o eleitor, Tavares reforça o impacto da transferência para os partidos:
atuando separadamente, cada um dos dois mecanismos – o voto uninominal e a coligação interpartidária sem a previsão de um mecanismo que distribua entre os partidos, proporcionalmente à contribuição em votos de cada um, as cadeiras obtidas pela coligação – descaracteriza o partido político. Associados, como ocorre no Brasil, esses mecanismos produzem carência de identidade e de mediação partidárias no comportamento legislativo, introduzem o sincretismo partidário parlamentar e desfiguram não só a proporcionalidade da representação de cada partido, mas a identidade e o alinhamento dos partidos no parlamento e, logo, fora dele (TAVARES, 1999, p.93).
Por conta desse efeito – e de outros vistos anteriormente – o mesmo autor formula enfática crítica ao mecanismo da coligação. Ele argumenta que
são inconsistentes com a representação parlamentar porque ela busca a integração e o consenso precisamente por meio da diferenciação, da especificidade e da nitidez na expressão parlamentar de cada um dos partidos, e não do seu sincretismo, de sua confusão, ambiguidade e equivocidade. E nela são desnecessárias porque ela otimiza as condições para que cada partido concorra sozinho às eleições (TAVARES, 1994, p.251-252).
4 Conclusão
O texto se propôs a rascunhar as principais análises acerca das características e das consequências produzidas pelo modo como as coligações estão regulamentadas e vêm sendo praticadas pelos partidos nas eleições proporcionais brasileiras. Ao seguir a corrente investigativa vinculada à “teoria da economia de esforços”, que aborda o fenômeno a partir da maximização de votos e de espaço político perseguido pelos partidos, ele se centrou em um primeiro momento na apresentação dos princípios gerais que norteiam a decisão dos partidos de concorrer coligado. Tais princípios vinculam a decisão ao tamanho da magnitude, às peculiaridades da fórmula eleitoral e da lista aberta, ao tamanho do partido no distrito e à existência ou não de candidatos individuais capazes de acumular votação.
Na sequência, o artigo discutiu os efeitos que a coligação produz no sistema eleitoral como um todo, os quais são bastante contraditórios, isto porque, ao mesmo tempo, em que ela amplia o número de partidos com representação parlamentar e reduz o índice de votos desperdiçados e da desproporcionalidade entre votos e cadeiras, amplia a transferência de votos intracoligação, seja entre candidatos, seja entre partidos, transferência essa que ocorre sem que o eleitor possa ter efetivo controle sobre o voto.