4. A QUESTÃO DO DECORO PARLAMENTAR
Dentre as hipóteses previstas no artigo 55 da Constituição Federal para perda do mandato, merece destaque a atitude do parlamentar federal “cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar”.
A discussão acerca do conteúdo da expressão depende do conhecimento dos respectivos regimentos internos. No entanto, de forma genérica e nos termos do artigo 55, §1º, CF, Mendes, Branco e Coelho afirmam que a quebra de decoro parlamentar “consiste no abuso das prerrogativas do membro do Congresso Nacional, bem como na percepção de vantagens indevidas e outros casos definidos em regimentos internos”[52].
Ressaltam, todavia, que o ato releva “grande discricionarismo político à Casa Legislativa a que pertence o parlamentar”[53]. Por essa razão, o Supremo tem se recusado a entrar no mérito das Casas Legislativa, atendo-se a questões meramente formais[54].
Tratando da cassação por quebra de decoro, Pontes de Miranda ressalta: “É o impeachment. Ato político, não sujeito a controle judicial, salvo se não houve os dois terços acordes na destituição do deputado ou do senador ou se houve desrespeito ao Regimento Interno”[55].
A quebra do decoro parlamentar é, nos dizeres do professor José Afonso da Silva, citando Hely Lopes Meirelles, situação que enseja a cassação do mandato, eis que se trata de incorrência em falta funcional, normativamente definida, com a previsão de tal sanção e dependente de apreciação da Casa Legislativa[56].
Na Câmara dos Deputados, a Resolução 25/2001, que instituiu o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, traz 16 (dezesseis) procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar (artigos 4º e 5º), além da previsão de Conselho para tratar do tema, procedimento e sanção. Seis destes procedimentos conduzem à perda do mandato. De se ver, no entanto, que algumas previsões são demasiado genéricas, o que, ainda sim, atribui enorme discricionariedade para a Casa Legislativa.
De uma forma geral, no entanto, é certo que condutas que abusam das prerrogativas funcionais, percebem vantagem indevidas, dizem respeito à malversação de recursos públicos, fraudam os trabalhos, omitem ou fraudam informações relevantes ou ofendam a dignidade da representação popular conduzem à perda do mandato, por ofenderem o decoro parlamentar.
No Senado Federal, a Resolução 20 de 1993, institui o respectivo Código de Ética e Decoro Parlamentar. Menos extenso, traz vedações e condutas incompatíveis com o decoro, não menos genéricas, no entanto (artigos 4º e 5º).
Basicamente, para a Resolução, atenta contra o decoro parlamentar: o abuso das prerrogativas dos membros do Congresso Nacional, a percepção de vantagens indevidas e a prática de irregularidades graves, sendo que o parágrafo único do artigo 5º traz dois exemplos do que seriam irregularidades graves.
O grande risco de tais previsões é que, a despeito de se tratar de assuntos interna corporis, podem servir de subsídio tanto para cassar quanto para manter determinados parlamentares. Não que deva o Judiciário se imiscuir nesse mérito, eis que haveria real afronta à separação de poderes, até porque, em se tratando de atos ilícitos, caberá ao Judiciário a análise jurisdicional da questão.
Em verdade, é uma situação cujo risco é inerente ao próprio constitucionalismo, deixando que o próprio Parlamento decida sobre o que seja decoro parlamentar e quando sua quebra resta configurada. O jogo democrático exige que a Casa Legislativa trate de suas questões interna corporis, de forma exclusiva. Salvo quando extrapolarem os seus limites, como numa hipotética situação de pagamento de propina, ainda que o Legislativo se negue à cassação do parlamentar, não poderá evitar que o Judiciário o faça, com fundamento legal, em ação própria.
De acordo com a Constituição, o processo por quebra de decoro deve ser provocado pela Mesa da Casa ou partido político com representação no Congresso Nacional. Durante seu trâmite, deve ser assegurada a ampla defesa. O §1º do artigo 55 da Carta Maior ainda assevera que a perda do mandato nos casos de procedimento incompatível com o decoro parlamentar dar-se-á por decisão da Casa Legislativa, mediante voto secreto e maioria absoluta.
Esse procedimento, mormente a previsão do voto secreto, por estar expressamente consignado no texto constitucional, não admite modificação pelo Regimento Interno, por exemplo, prevendo votação aberta, nem mesmo pelas Constituições Estaduais, por se tratar de norma simétrica.
Nas ADIs 2.461 e 3.208, o Ministro Gilmar Mendes, relator, reconhecendo a jurisprudência pacífica acerca da aplicação das regras constitucionais acerca da perda de mandato aos deputados estaduais[57], reconheceu a inconstitucionalidade das disposições. Há de se destacar, todavia, os votos dos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, no sentido de que a publicidade de votação conferida pelo constituinte estadual homenageia o princípio democrático, o que é, por certo, respeitável, abrindo espaço para uma maior reflexão[58].
Não se furta à obrigação de manter o decoro o parlamentar licenciado, podendo ser submetido ao procedimento por quebra de decorro. Enquanto houver mandato, ainda que seu titular esteja em licença, deve haver decoro. Assim entendeu o STF no MS 25.579:
O membro do Congresso Nacional que se licencia do mandato para investir-se no cargo de Ministro de Estado não perde os laços que o unem, organicamente, ao Parlamento (CF, art.56, I). Consequentemente, continua a subsistir em seu favor a garantia constitucional da prerrogativa de foro em matéria penal (...), bem como a faculdade de optar pela remuneração do mandato (...) Da mesma forma, ainda que licenciado, cumpre-lhe guardar estrita observância às vedações e incompatibilidades inerentes ao estatuto constitucional do congressista, assim como às exigências ético-jurídicas que a Constituição (CF, art.55, §1º) e os regimentos internos das casas legislativas estabelecem como elementos caracterizadores do decoro parlamentar[59].
Em outro ponto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Segurança 26.900, entendeu que Deputados Federais possuem legítimo interesse, resguardado pela Constituição, de assistirem a Sessão que delibera sobre cassação de Senador, “visto que, somados, compõem o Poder Legislativo, que é exercido pelo Congresso Nacional”[60].
O Ministro Ayres Britto foi além no referido MS, para afirmar que nem em “situação extrema instabilidade profunda da vida institucional do País, nem assim a Constituição voltou a falar de sessão secreta. E há uma lógica nisso, é que o Parlamento é onde se parla, onde se fala para a Nação”.
Por fim, em relação à possibilidade de renúncia do parlamentar que responda a processo por quebra de decoro parlamentar ou por qualquer outra situação de perda de mandato, nos termos da Emenda Constitucional de Revisão 6, que deu nova redação ao §4º do artigo 55, haverá verdadeira condição suspensiva. Isto é, a renúncia somente se operará se, após o término do procedimento, o parlamentar não perder o mandato.
Isso significa que, caso a Casa decida pela perda do mandato, a renúncia não terá produzido efeito algum. Também traz a conclusão de que a renúncia apenas poderá ser considera livre e produtora de integrais efeitos se realizada antes da instauração do procedimento referido[61].
O professor José Afonso da Silva destaca que na ocasião da CPI do Orçamento houve sérias dúvidas acerca do efeito da renúncia de parlamentar que respondesse a processo para perda do mandato. Para alguns, inclusive o ínsigne jurista, diante do silêncio eloquente constitucional, a renúncia implicaria apenas a perda do mandato, por suas próprias forças, mas não a suspensão da elegibilidade pelo prazo de oito anos. Para outros, a renúncia não poderia evitar tal consequência.
Nos idos do processo de reforma revisional da Constituição, o professor preparou proposta, apresentada pelo Senador Mário Covas, no sentido de que o congressista que pretendesse fugir dos efeitos da cassação mediante a renúncia ficaria inelegível por oito anos. A solução, no entanto, acabou sendo no sentido da já referida suspensão dos efeitos, a qual o professor aplaudiu[62]. O efeito prático, a nosso ver, era o mesmo.
Recentemente, a conhecida Lei da Ficha Limpa inovou a temática. A Lei Complementar 135/2010, previu, por proposta de emenda apresentada pelo ilustre Deputado José Eduardo Cardozo, que também serão inelegíveis por oito anos os membros do Executivo e do Legislativo que renunciarem a seus mandatos “desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município”[63].
Nota-se que a supracitada lei criou um novo espaço temporal, entre o oferecimento da representação e a instauração do procedimento, e asseverou que nesse ínterim a renúncia corresponderá à inelegibilidade. A alteração advoga em prol da moralidade e da ética, mas seu futuro, como se sabe, ainda é incerto.
5. DESOBRIGAÇÃO DE TESTEMUNHAR, INCORPORAÇÃO ÀS FORÇAS ARMADAS E REMUNERAÇÃO
Por derradeiro, cumpre transcorrer rapidamente sobre duas questões atinentes ao exercício do parlamentar.
Em primeiro lugar, estatui o artigo 53, §6º, CF que “os Deputados e Senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhe confiaram ou deles receberam informações”.
A garantia, nesse sentido, em muito se aproxima daquela conferida aos advogados e, até mesmo, aos médicos, que, por conta do exercício das peculiares profissões, acabam tomando conhecimento de informações muitas vezes sigilosas ou estratégicas para o exercício da função.
A ocultação das informações que o parlamentar recebe está intrinsicamente presa ao livre desempenho de suas atribuições, em prol do interesse público. Evidente que, neste caso em específico, o parlamentar possui a opção de não testemunhar, mas se desejar fazê-lo poderá revelar as referidas informações.
Essa garantia não se estende às informações que o parlamentar obtiver na qualidade de cidadão, fora da sua atuação, ou até mesmo em decorrência da função, como congressista[64].
Em segundo lugar, consoante disposição do artigo 53, §7º, os Deputados e Senadores, ainda que militares e em tempo de guerra, apenas poderão ser incorporados às Forças Armadas mediante prévia licença da Casa respectiva.
O professor Alexandre de Moraes explica:
Observe-se que a finalidade dessa previsão constitucional é impedir a indevida ingerência do Poder Executivo – por parte do Presidente da República que é o Chefe Supremo das Forças Armadas – no Poder Legislativo, com incorporações e, consequentemente, afastamento das funções parlamentares, de parlamentares oposicionistas e desafetos dos Governos[65].
Consubstancia, assim, uma garantia para o livre exercício do Legislativo, protegendo-o de intromissões do Executivo que tendam a desequilibrar o balanceamento das funções.
Por fim, no tocante à remuneração, cumpre afirmar que a Constituição Federal estabeleceu limites entrelaçados entre os poderes, de modo que a conduta alheia à eticidade não pudesse conduzir os subsídios a valores astronômicos e distantes da realidade econômica do país.
Nos termos do artigo 49, VII, compete exclusivamente ao Congresso Nacional a fixação de subsídios para deputados federais e senadores, desde que: 1) o subsídio não poderá ser superior ao subsídio, mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; 2) o subsídio será fixado em parcela única, vedado acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória; 3) não tenham tratamento tributário privilegiado em relação aos demais contribuintes; 4) sofram normalmente a incidência de imposto de renda, com observância dos critérios da generalidade, universalidade e progressividade; 5) os subsídios para deputados federais e senadores sejam idênticos e fixados por decreto legislativo aprovado em ambas as Casas, consoante decidiu o STF na ADI 3.833/DF (rel. Min. Ayres Britto).
O subsídio, assim rompe com a ideia de parcelas variáveis, correspondendo a um valor fixo, determinado em lei, sem quaisquer “surpresas” que confiram verdadeiro aumento salarial sob o pretexto de constituirem gratificações genéricas.
O professor José Afonso da Silva, ainda, ressalta não está impossibilitada a revisão anual do subsídio prevista no artigo 37, X, CF, mesmo não tendo havido expressa menção, por analogia[66].
Assim, nota-se que a remuneração do congressista também está em consonância com as garantias de sua autonomia, sem perder de vista os limites que impedem o seu abuso. Para os parlamentares estaduais e municipais, a Constituição estabelece outros limites, considerando as outras pessoas federativas[67].
CONCLUSÃO
O ideal do Estado Constitucional sempre vem acompanhado de bases que possam assegurar que uma Constituição realmente solidifique as estruturas do Estado. E para tanto, fruto das lições mais básicas do constitucionalismo, edificou-se a teoria da separação de poderes como resposta hábil para garantir que cada uma das funções do Estado sejam autonomamente exercidas, sem atropelos alheios e sem ingerências que subvertam a própria finalidade do instituto.
Em relação ao Legislativo, a separação de poderes deve permitir que exerça suas funções típicas de legislar e fiscalizar, além daquelas consideradas atípicas, sem que o Executivo e o Judiciário interfiram nesse míster. É nessa toada, por exemplo, que a declaração da lei inconstitucional não impede que, no dia seguinte, o Legislativo aprove novamente o texto dado por inconstitucional.
Também, a fim de garantir que a função legislativa seja exercida sem maiores percalços, a Constituição, desde há muito, traz garantias e responsabilidades aos exercentes dos mandatos parlamentares, de forma com quem atuem de acordo com o interesse público e protegidos por uma barreira funcional dos arrochos dos demais poderes eventualmente descontentes.
As imunidades material e formal – freedom of speech e freedom from arrest – perfazem o núcleo essencial justamente por serem decorrência do constitucionalismo inglês dos séculos XV e XVI, escoradas em casos práticos de ingerências, possuindo valor histórico inestimável.
Mas não se olvide que nossa Carta foi além para criar outras garantias institucionais, como o foro por prerrogativa de função que, longe de privilégios, traduzem verdadeiras prerrogativas, eis que voltadas exclusivamente para a proteção do exercício parlamentar.
É como ressalta o professor Alexandre de Moraes:
Para o exercício de tão importante função, os diversos ordenamentos jurídicos consagram regras sobre imunidades parlamentares, ora menos abrangentes, ora mais abrangentes, mas sempre visando de forma imediata à defesa do parlamento e mediatamente a manutenção do primado da legalidade e da própria existência e sobrevivência da democracia[68].
Claro que, a depender do caso concreto, a garantia pode esconder verdadeiro privilégio, o que exige da interpretação constitucional um apego à finalidade do instituto, de forma a afastar interpretações que verdadeiramente construam categorias diferentes de cidadãos ou se traduzam em nítido abuso de direito, como no relatado episódio da “ciranda dos processos”.
Assim, o Estatuto coaduna com a necessidade de proteção da função, e, no caso pátrio, as prerrogativas são bastante amplas, o que, sem dúvida, presta enorme serviço para a democracia. Mas isso não significa que o abuso da prerrogativa possa inverter a lógica do sistema e conduzir a privilégios. Da mesma forma como não podem os demais poderes fazer sucumbir as garantias, não deve o Legislativo erguer verdadeira parede a proteger escancaradas inconstitucionalidades. Sobreleva-se mais uma vez o papel do Supremo Tribunal Federal nas correções dos desvios.