Sobre o conflito entre regras e princípios
Dentro das discussões sobre regras e princípios, ainda causa muita discussão o tópico sobre como deve se solucionar um conflito entre as duas espécies normativas. Alguns defendem que os princípios devem sempre prevalecer, outros, as regras. Quero desafiar ambas proposições, mas primeiramente devemos entender quais as principais justificativas para elas. Quem defende a primazia dos princípios sobre as regras geralmente alega que os princípios, por serem hierarquicamente superiores, uma vez que informam a construção das regras e se irradiam por todo o ordenamento jurídico, nunca podem ser rejeitados em nome de uma regra. Já quem defende a primazia das regras sobre princípios, argumenta tanto que elas, por serem, na verdade, a instanciação de princípios, são orientações claras e diretas do que os princípios querem dizer, como que por serem a expressão da vontade do povo (diretamente ou através dos seus representantes) devem ser sempre respeitadas caso queiramos levar a democracia a sério.
O problema da primeira posição é que, em primeiro lugar, ela confunde princípios com os valores que informam um ordenamento jurídico (geralmente expressos na sua Constituição). Se assim fosse, seriam muito poucos os princípios que poderiam figurar na argumentação jurídica, e de pouca utilidade, pois devido à sua generalidade e imprecisão eles não seriam capazes de fornecer inequivocamente uma única resposta correta. Em segundo lugar, tal teoria imagina que o sistema jurídico como um todo se assemelha ao esquema de validade das normas tal como exposto por Kelsen, com regras na base da pirâmide, princípios acima e, acima de todos, um princípio maior que infundiria todo o ordenamento (o princípio citado aqui geralmente é o da dignidade da pessoa humana). Que tal esquema possa ser verdadeiro e útil para a explicação da validade das normas, no entanto, não implica que ele seja um bom modelo explicativo e normativo para o modo como as regras e princípios se articulam, pois ele supõe que tanto princípios como regras têm um peso específico independentemente do caso concreto e que esse pode ser aferido. De fato, caso isso fosse de fato assim, poderíamos simplesmente estabelecer uma régua com o peso atribuído a cada princípio e, a partir daí, qualquer conflito poderia ser resolvido quase que matematicamente. Essa proposta, no entanto, não tem condições de prosperar: os princípios não têm peso específico, e muito menos ele pode ser aferido independentemente do caso concreto.
O erro da segunda posição é assumir que regras são sempre claras e diretas e que apenas elas são legisladas. Isso, como já foi visto, é um erro: tanto regras podem ser vagas e imprecisas como princípios podem ser legislados.
Minha posição é que a prevalência de um princípio ou de uma regra num determinado caso deve ser sempre verificada no caso concreto, sendo que o que determinará a prevalência de um sobre o outro serão os argumentos utilizados pelo intérprete, a “história” que ele conta em favor da sua solução, procurando mostrar de que forma ela é a melhor solução para o caso e a que melhor se harmoniza com os diversos valores, normas e precedentes que informam um ordenamento jurídico. Minha solução é pouco confortadora, pois demanda um enorme conhecimento (jurídico, político e filosófico) por parte do intérprete e um grande esforço de reconstrução do ordenamento jurídico, mostrando como sua interpretação se conforma a ele. O corolário dessa tese é que, contrariamente ao que Alexy defende, a argumentação jurídica pode ser às vezes extremamente mais complexa que o que ele chama de argumentação prática geral. Sua tese é de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral, pois é exercido sob pressão de condições limitadoras (como legislação e precedentes), e que tais condições limitadoras tornam a argumentação jurídica mais simples, pois certos elementos que têm livre trânsito numa argumentação prática geral deixam de ser considerados numa argumentação jurídica. Mas ele esquece de mencionar um aspecto que torna a argumentação jurídica, e só ela, especialmente complexa: a necessidade de harmonizar os argumentos práticos gerais e os argumentos jurídicos dentro de uma estrutura institucional, e articulá-los numa narrativa coerente.
Ainda que a prevalência de um princípio ou de uma regra num determinado caso deva ser sempre verificada no caso concreto, pode-se aventar uma justificativa para uma primazia ao menos prima facie de regras sobre princípios. Pois uma regra quase sempre tem dois tipos de princípios que as fundamentam, um formal e outro material. Os princípios formais que fundamentam uma regra são os princípios da supremacia e autoridade legislativas e separação dos poderes (presentes mesmo na mais comezinha das regras),[14] e o material é qualquer princípio substantivo que embase a existência e necessidadeda regra. Princípios possuem uma justificação material e nem sempre uma formal (há mais princípios não legislados do que regras não legisladas). No confronto entre regras e princípios, deve-se verificar se o princípio em questão possui também justificação formal, ou apenas material. Contudo, não é porque num caso há dois princípios em questão e noutro um que os primeiros sempre irão prevalecer, pois conta aqui a intensidade de cada um deles. Meu ponto é que o ônus argumentativo do intérprete que quer afastar a incidência da regra é muito maior quando o princípio que ele contrapõe à regra não tem justificação formal, apenas material. Pois ele terá que argumentar tanto que as razões materiais que fundamentam o princípio são superiores àquelas que fundamentam a regra, como que elas são fortes o suficiente para igualmente afastar a justificativa de se obedecer, em geral, às regras, ou seja, que elas são fortes o suficiente para afastar as justificativas ligadas à segurança jurídica, proteção de expectativas, estabilidade social, separação dos poderes e autoridade legislativa.
Por isso que regras que já perderam sua fundamentação material, pois o princípio substantivo que lhe dava suporte não tem mais apelo para a sociedade (como foi o caso, no Brasil, dos crimes de adultério e bigamia, cujos princípios que os fundamentavam, manutenção dos bons costumes e santidade do matrimônio, já não tinham peso numa sociedade secular e de casamentos efêmeros, o que fez com que, embora ainda presentes na legislação penal, fossem solenemente ignorados), são mais facilmente derrubadas por outros princípios materiais.
Fazer essa divisão entre os princípios (como formais e materiais) dá fundamento para que mesmo regras comezinhas, como prazos processuais ou até a cor da caneta para assinar um documento, não sejam simplesmente descartadas, pois mesmo essas têm fundamento num princípio formal – e ainda que por isso possam ser facilmente derrubadas, elas não devem ser encaradas como absolutamente descartáveis, em primeiro lugar pela função de orientação à ação e ordenação do processo que exercem, e em segundo lugar porque o respeito à elas demonstra nosso respeito pelos princípios formais, e que estamos dispostos a manter mesmo aquelas regras que não julgamos as mais adequadas, pois assim demonstramos nosso zelo pela manutenção e respeito a esses princípios, já que sem eles algumas das funções mais essenciais do Direito, como proteger expectativas legítimas, garantir estabilidade social e institucional para o desenvolvimento de negócios jurídicos e a proteção da igualdade formal sairiam gravemente prejudicadas.
O segundo ponto que quero marcar, ligado a essa questão, é que não há nenhuma espécie de moeda que possa mensurar se o princípio ou a regra deve prevalecer no caso concreto,[15] quaisquer que sejam eles (nenhum princípio possui, em abstrato, uma superioridade frente aos demais).[16] Nesse caso, a superioridade e prevalência de um sobre outro devem ser estabelecidas pela força das razões lançadas pelo intérprete, que deverá socorrer-se dos mais diversos tipos de argumentos para justificar sua posição (Alexy chama tais argumentos de “argumentos práticos gerais”, uma mistura de questões pragmáticas, éticas e morais).[17] Argumentos morais, históricos, políticos, econômicos, sociais etc, mesclam-se com argumentos especificamente jurídicos, numa tentativa de mostrar que o afastamento da regra naquele caso é o que não apenas é o correto a se fazer, mas o juridicamente correto, como a decisão que melhor se harmoniza com o espírito do ordenamento jurídico e a reverência ao Direito.
Outra maneira de lidar com o conflito entre regras e princípios é levar a discussão para um plano onde somente princípios são considerados, ou seja, analisando o princípio que se pretende opor à regra com os princípios que fundamentam a regra (mesmo que sejam apenas os princípios formais, no caso de uma regra que não possui nenhuma fundamentação substantiva relevante). A disputa, assim, seria entre os dois princípios, e não entre um princípio e uma regra. Assim, podemos descrever o caso Riggs como um conflito em que o que estava em jogo eram a liberdade de testar x ninguém pode se valer da sua torpeza; o caso Henningsen, a liberdade de contratar x o judiciário não pode aceitar barganhas em que uma das partes se valeu de sua superioridade para se beneficiar da outra. A vantagem desse tratamento é que ele oferece um contra-argumento para quem, num conflito entre regras e princípios, rápida e decididamente sempre toma a posição pelo princípio, como se outros princípios não estivessem subjacentes à própria regra que ele critica.
Conclusão
Este foi, como anunciei no início, um trabalho com modestas pretensões. Minha intenção foi apenas marcar alguns pontos que, na imensa discussão sobre a distinção entre regras e princípios, creio que não foram tratados, ou apenas superficialmente, bem como enfatizar alguns pontos que, embora inclusive presentes nos artigos originais de Dworkin e Alexy, não ganharam a devida atenção na discussão subsequente. A humildade do presente trabalho anda junto com o reconhecimento de que o problema que ele tratou é de enorme complexidade, e que não pode ser enfrentado através de fórmulas prontas aceitas acriticamente, um fenômeno que marca a maior parte da discussão doutrinária sobre o tema.
Bibliografia citada
ALEXY, Robert. La tesis del caso especial. Isegoría, n°21, p. 23-35, 1999.
______. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 2.ed. São Paulo: Landy, 2001.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1978.
HABERMAS, Jürgen. A short reply. Ratio Juris, v.12, n°4, p. 445-453, 1999.
POHLMANN, Eduardo Augusto. O discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral: uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy. (2007a) In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Vol. 27, Dez/2007, p. 59-99.
______. O discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral. Uma análise da teoria discursiva do Direito de Robert Alexy. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1613, 1 dez. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10723>. Acesso em: 14 ago. 2012.
Notas
[1] O que deve ser inicialmente marcado, no entanto, é que o artigo de Dworkin onde a discussão iniciou – “Is law a system of rules?”, posteriormente revisado e inserido como o capítulo “The model of rules I” no seu livro “Taking rights seriously” – não tinha a pretensão de diferenciar regras e princípios para a partir dali construir uma teoria da argumentação jurídica. Dworkin constata a existência de princípios no Direito como um fato incontestável, e utiliza-os para criticar o modelo hartiano de conceito de direito como um sistema de união entre regras primárias e secundárias. Seus objetivos é mostrar que a teoria de Hart, em especial a regra de reconhecimento, ao não dar espaço para o importante papel que princípios jurídicos exercem na prática do Direito, falha em ser uma boa explicação do Direito.
[2] Dworkin (1978), p. 23.
[3] Idem, p. 24.
[4] Cf. Dworkin (1978), p. 28.
[5] Idem, p. 27.
[6] Idem, p. 28.
[7] Idem, p. 27.
[8] Idem, p. 27.
[9] Que não se confunda minha crítica com uma rejeição da inegável contribuição que o trabalho de Ávila prestou à dogmática brasileira. Embora com falhas, seu livro é bem articulado e trouxe um importante sopro de renovação sobre um tema que já estava esgotado e que girava em torno de si mesmo, com a maioria dos nossos juristas aceitando acriticamente o mantra da distinção entre regras e princípios, sem sequer entendê-la adequadamente. Outro mérito do livro de Ávila está no constante uso de exemplos para ilustrar suas posições, um expediente que nem sempre é utilizado pelos nossos teóricos, e que muito contribui para o esclarecimento dos termos de uma discussão eminentemente abstrata. Creio, no entanto, que a relação que a doutrina deve ter com exemplos na construção dos seus argumentos teóricos deve ser melhor explorada, utilizando-os não apenas para ilustrar um ponto, mas como ponto de partida para a reflexão, que deve ser construída em torno dos problemas que um caso particular traz à tona. Pretendo voltar, um dia, a esse tema.
[10] Ávila (2004), p. 40.
[11] Idem, p. 41.
[12] Idem, p. 41.
[13] Idem, p. 42.
[14] Que os princípios da supremacia legislativa e separação dos poderes devem ser levados em conta fica evidente num caso em que a norma emanada não é absolutamente perfeita, mas também não é gritantemente injusta ou muito importante (digamos: um certo prazo deveria ser maior, ou quando o ordenamento veda a apresentação de recursos intempestivos mesmo quando o atraso foi ocasionado por caso fortuito ou força maior, como uma enchente). Nesses casos, é prudente manter a norma, pois caso contrário corre-se o risco dos princípios da supremacia e separação dos poderes serem tão amesquinhados que eles podem passar a ser vistos como descartáveis.
[15] Embora não tenham sido poucas as tentativas de criá-las, sendo a mais famosa a teoria do “Law and economics”, que propunha que a decisão deveria ser guiada por critério de eficiência na alocação de recursos. Não à toa, uma das principais influência dessa teoria é o Utilitarismo, teoria moral que igualmente propõe um critério para mensurar a correção de uma ação, tendo como objetivo a maximização da felicidade.
[16] Mesmo a dignidade da pessoa humana. O fato de no Brasil ser obrigatório o regime de separação de bens para idosos casados com jovens é encarado por muitos como uma violação da dignidade da pessoa humana (tal justificativa estaria em confronto com a proteção patrimonial de sujeitos vulneráveis e psicologicamente indefesos – ao que poderia se responder que é exatamente tal justificação que viola a dignidade da pessoa humana, por ser paternalista). Mas é ainda mais certo que os presos dos presídios brasileiros tem sua dignidade violada de modo muito mais intenso. Não é possível igualar as duas situações, embora seja o mesmo princípio que esteja em questão.
[17] Argumentos práticos gerais, segundo Alexy, devem ser entendidos como “dogmas práticos”, necessários sempre que são feitos julgamentos de valor que não podem ser derivados do material normativo. Mas eles, segundo o jusfilósofo alemão, igualmente são necessários mesmo onde há material normativo anterior. Isso fica mais evidente, por exemplo, na análise e crítica de conceitos da dogmática jurídica, como legítima defesa, terceiro, dever de informar, boa-fé... A abertura para argumentos práticos gerais é constitutiva de tais conceitos e, em todos esses casos, somente (ou principalmente) através desses argumentos é que é possível esclarecê-los, criticá-los e reformulá-los (veja-se Alexy, 2001, p. 250). Sobre o tema, veja-se também seu artigo “La tesis del caso especial,” (1999), bem como as críticas de Habermas (1999). Examinei a plausibilidade da chamada “tese do caso especial” em Pohlmann (2007a), disponível também em Pohlmann (2007b).