A Lei de Tortura (Lei 9.455/97) estabelece em seu artigo 1º., § 4º., inciso III, um aumento de pena da ordem de 1/6 até 1/3 quando “o crime é cometido mediante sequestro”.
Em primeiro lugar é preciso ter em mente que o legislador certamente abarca com sua dicção tanto o “sequestro” como o “cárcere privado”. [1] Embora alguns entendam as expressões como sinônimas, a realidade é que a doutrina costuma distinguir entre uma e outra.
Magalhães Noronha, por exemplo, explica que o sequestro e o cárcere privado são ambos maneiras pelas quais se dá efetividade à “supressão ou restrição da liberdade do ofendido”. Não obstante, distinguem-se
“porque no último há clausura ou confinamento (v.g., encarcerar alguém em um quarto ou numa casa), ao passo que no sequestro tal não se dá: a restrição à liberdade não se opera dentro de limites tão estreitos; assim, pode seqüestrar-se uma pessoa numa ilha, num sítio etc., desde que seja impossível afastar-se deles”. [2]
Percebe-se claramente que embora se trate de norma restritiva (aumento de pena), pretendeu o legislador dar ao termo “sequestro” significado amplo, abrangendo obviamente o “cárcere privado”. Isso porque não teria cabimento aumentar a pena em caso de menor restrição e não o fazer em caso de supressão total da liberdade deambulatória da vítima. Isso feriria de morte qualquer pretensa interpretação lógica da norma, sendo oportuno lembrar com Maximiliano o aforismo atribuído a São Paulo segundo o qual “a letra mata e o espírito vivifica”. [3] É ainda indispensável assimilar o ensinamento do mesmo autor sobredito quando afirma que
“o processo lógico propriamente dito consiste em procurar descobrir o sentido e o alcance de expressões do Direito sem o auxílio de nenhum elemento exterior, com aplicar ao dispositivo em apreço um conjunto de regras tradicionais e precisas, tomadas de empréstimo à Lógica Geral”. [4]
Esclarecido esse ponto quanto ao alcance da norma restritiva é necessário adentrar ao âmago da questão a ser discutida neste trabalho, qual seja: a previsão legal de aumento de pena para o crime de tortura em caso de sequestro ou cárcere privado é viável ou incide em “bis in idem”?
O problema surge porque é praticamente inimaginável a aplicação de técnicas de tortura a alguém sem que essa pessoa se ache coartada em seu direito de ir e vir por sequestro ou, mais comumente ainda, por meio de cárcere privado. É natural da conduta da tortura que o sequestro ou cárcere privado seja utilizado como “meio”, razão pela qual o caminho natural seria o da aplicação do Princípio da Consunção, em que o crime – fim absorve ou consome o crime – meio. [5]
Ainda que superficialmente, Borges aponta a problemática de que nesse caso o sequestro é “um crime – meio funcionando como causa de aumento de pena”. [6]
Tem sido apontada a solução para esse obstáculo à aplicação do aumento de pena, tentando contornar o visível “bis in idem”, já que o autor do crime de tortura teria sua pena majorada por um elemento natural da conduta por ele perpetrada, mediante o recurso à distinção do sequestro como meio para a tortura e do sequestro independente ou por lapso de tempo consideravelmente acima do estritamente necessário para a aplicação das técnicas de tortura. Então, se o sequestro fosse apenas um meio estritamente necessário para o crime de tortura não se aplicaria o aumento. Já se o lapso temporal do sequestro excedesse o necessário para a tortura, seria o caso de aplicar o aumento, pois que já não se trataria de mero crime – meio, afastando-se consequentemente o “bis in idem”.
Este é o posicionamento de Gonçalves ao asseverar:
“Sequestro é a privação da liberdade da vítima mediante violência ou grave ameaça. Veja-se, entretanto, que a privação da liberdade por curto espaço de tempo é decorrência quase sempre necessária à prática da tortura, uma vez que esta pressupõe, na maioria das vezes, uma ação lenta e repetitiva no sentido de causar sofrimento físico ou mental à vítima, de forma a permitir que o agente alcance a finalidade para a qual está empregando a violência ou grave ameaça. Nesses casos, não se aplica a causa de aumento de pena. Percebe-se, pois, que o dispositivo só será aplicado quando houver privação de liberdade por tempo prolongado, absolutamente desnecessário, ou quando houver deslocamento da vítima para local distante”. [7]
No mesmo diapasão manifesta-se Bechara:
“O sequestro aqui considerado envolve a privação de liberdade de locomoção por um período razoável, uma vez que o crime de tortura traz implícita no seu conteúdo a restrição ao jus libertatis, ainda que por breve espaço de tempo, como providência indispensável para o cometimento da infração. Exige-se, portanto, reconhecer o sequestro como uma medida que gera um sofrimento à vítima além do indispensável à consumação do crime”. [8]
Finalmente vale transcrever o escólio de Capez:
“A lei se refere ao sequestro prolongado, uma vez que aquele que tiver a duração estritamente necessária para a realização da tortura restará por esta absorvido. Assim, essa causa de aumento somente será aplicável quando houver privação de liberdade por tempo prolongado, absolutamente desnecessário, ou com deslocamento da vítima para local distante etc.”. [9]
Embora louvável o esforço da doutrina em dar alguma concreção à previsão legislativa sob comento, fato é que normalmente, na avassaladora maioria dos casos, o sequestro não passará de crime – meio para a tortura, o que tornará inaplicável a majorante para evitar dupla apenação pelo mesmo fato (“bis in idem”). A hipótese aventada do sequestro sem a característica de crime – meio na tortura é praticamente inexistente no mundo da vida. Ademais, a dicção da lei faz referência ao crime de tortura perpetrado “mediante” sequestro, ou seja, sendo este um “meio” ou “caminho” para a tortura. Ao que parece o legislador teve por escopo uma missão impossível e antagônica aos princípios mais basilares do Direito Penal. Pretendeu sim formular uma norma que produzisse dupla apenação pelo mesmo fato ao afirmar que o aumento se aplicaria à tortura praticada “mediante” sequestro. Com isso erigiu uma norma praticamente inaplicável como sói acontecer sempre que não se atenta para a técnica e para os princípios que norteiam a ciência criminal.
REFERÊNCIAS
BECHARA, Fábio Ramazzini. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2005.
BORGES, José Ribeiro. Tortura. Campinas: Romana Jurídica, 2004.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 4. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. Volume 2. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
Notas
[1] BECHARA, Fábio Ramazzini. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 113. “A expressão abrange igualmente o cárcere privado”.
[2] NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. Volume 2. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 162.
[3] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 111.
[4] Op. Cit., p. 123.
[5] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 52 – 53.
[6] BORGES, José Ribeiro. Tortura. Campinas: Romana Jurídica, 2004, p. 187.
[7] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 98 – 99.
[8] BECHARA, Fábio Ramazzini. Op. Cit., p. 113.
[9] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 4. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 747.