Ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB foi atribuída a competência para instaurar processo sobre fato ou matéria que configurar infração a princípio ou norma de ética profissional, vejamos:
“Art. 50. Compete também ao Tribunal de Ética e Disciplina:
I – instaurar, de ofício, processo competente sobre ato ou matéria que considere passível de configurar, em tese, infração a princípio ou norma de ética profissional;”
Nesse sentido, a representação, ou a instauração de ofício, deve ser recebida:
“Art. 51. O processo disciplinar instaura-se de ofício ou mediante representação dos interessados, que não pode ser anônima.
§ 1º Recebida a representação, o Presidente do Conselho Seccional ou da Subseção, quando esta dispuser de Conselho, designa relator um de seus integrantes, para presidir a instrução processual.”(Grifo e negrito meu)
O objetivo do legislador com o termo “RECEBIDA A REPRESENTAÇÃO” importa dizer que deve-se, precipuamente, se atribuir uma tipificação à representação ou à instauração ex oficio do processo disciplinar.
Nessa orientação, podemos calmamente afirmar que: “a tipicidade é utilizada, no campo do Direito Penal e Tributário, com mais frequência, em sentido oposto, como sinônimo de legalidade material rígida da hipótese da norma, do pressuposto ou fato gerador. Nessa acepção, o princípio ganha conotação de previsibilidade, certeza e segurança. Foi introduzido, originariamente, em nosso Direito, por meio da acolhida que lhe deram os juristas do Direito Penal, e ganhou divulgação em sentido impróprio, inverso ao sentido que lhe atribui a metodologia. No Direito alemão, após longos estudos desenvolvidos em décadas, firmou-se o entendimento de que os tipos são um pensamento de ordem, fluidos e transitivos. O próprio Larenz[1] até a segunda edição de sua obra, Methodenlehre der Rechtswissenchaft, admitia os tipos fechados. A partir da terceira edição, refez o seu ponto de vista, aliás mantido na quarta, de 1979, afirmando que os tipos, por definição, são sempre abertos. Aliás, tipos abertos são uma tautologia. Nos países latino-americanos, graças à tradução livre para o espanhol da obra germânica de Ernst von Beling,[2] difundiu-se como sinônimo de Tatbestand, para designar a utilização de conceitos legais descritivos do delito penal, determinados e especificantes, voltados a garantir a confiança e a esperançar a insegurança jurídica.”[3]
Mesmo em se tratando de “fase preliminar” do processo disciplinar, se faz necessária a devida tipificação e motivação da sua instauração, como é utilizado na sindicância, introduzida pela Lei 8.112/90, em seus artigos 153 e seguintes.
Esse princípio serve, antes de mais nada, para impedir que se instaure procedimentos inócuos, perseguitórios, aviltantes, os quais somente prestam para devassar a vida de alguém, muitas vezes, por motivação política e imbuída de cunho pessoal.
A instauração de procedimento disciplinar atrai a TEORIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES, plenamente conceituada pelo doutrinador Hely Lopes Meirelles, na obra intitulada “Direito Administrativo Brasileiro”, 31ª edição, Malheiros, São Paulo, p. 101, vejamos:
“Em outros atos administrativos, porém, que afetam o interesse individual do administrado, a motivação é obrigatória, pra o exame de sua legalidade, finalidade e moralidade administrativa. A motivação é ainda obrigatória para assegurar a garantia da ampla defesa e do contraditório prevista no art. 5º, LV, da CF de 1988. Assim, sempre que for indispensável pera o exercício da ampla defesa e do contraditório, a motivação será constitucionalmente obrigatória.
A motivação, portanto, deve apontar a causa e os elementos determinantes da prática do ato administrativo, bem como o dispositivo legal em que se funda. Esses motivos afetam de tal maneira a eficácia do ato que sobre eles se edificou a denominada teoria dos motivos determinantes, delineada pelas decisões do Conselho de Estado da França e sistematizada por Jéze.”
Nesse mesmo sentido é a Lei 9.784/99, a qual determina, especificamente no seu artigo 50, I, §1º, que os atos administrativos deverão ser motivados, ad verbo:
“Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
(...)
§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.”
(Grifo e negrito meu)
A tipificação da instauração de processo disciplinar, mesmo anterior da manifestação da Comissão de Admissibilidade, tem o objetivo de identificar, com precisão, os integrantes da comissão, além do procedimento adotado, o prazo concedido pela autoridade e indicação dos fatos que desencadearam os trabalhos da comissão dos trabalhos, descrevendo as irregularidades a serem apuradas, justamente para quem vai se defender, possa saber do que está se defendendo.
A história e cultura literária já nos mostrou o exemplar “PROCESSO KAFKIANO”.
O douto Ministro Gilmar Mendes, no HC n.º 84.409/SP, 2ª T., do STF, [4] deixou bem explícito que: “Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. (...) quando se fazem imputações vagas, dando ensejo à persecução criminal injusta, está a se violar, também, o princípio da dignidade da pessoa humana que, entre nós, tem base positiva no art. 1º, III, da Constituição”.
A ausência de tipificação em processo administrativo ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa — considerada a centralidade desse princípio essencial (Art. 1º, III, CF) — significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.
Por analogia, a fase preliminar do processo disciplinar deverá conter a exposição do fato tido como ilícito ou ilegal, com todas as circunstâncias tal qual no processo penal, onde o artigo 41, do CPP, vejamos, ad litteram:
“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se posa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.”(Grifo e negrito meu)
Sem a devida tipificação, data vênia, ausente naINSTAURAÇÃO, o Advogado representado não poderá exercitar o devido e necessário contraditório, mesmo em fase preliminar, tendo em vista que ela só é verificada quando o acusado sabe do que terá que se defender, o que gera prejuízo insanável à defesa, eis que o Conselheiro Relator, assim como o representante, poderá se utilizar de toda e qualquer afirmação contrariamente ao representado.
O colendo STJ já analisou questões análogas no que pertine a ausência de tipificação em portaria instauradora de PAD, vejamos:
“ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DISCIPLINAR. OMISSÃO DOS FATOS IMPUTADOS AO ACUSADO. NULIDADE.
PROVIMENTO.
1. A PORTARIA INAUGURAL E O MANDADO DE CITAÇÃO, NO PROCESSO ADMINISTRATIVO, DEVEM EXPLICITAR OS ATOS ILICITOS ATRIBUIDOS AO ACUSADO. 2. NINGUEM PODE DEFENDER-SE EFICAZMENTE SEM PLENO CONHECIMENTO DAS ACUSAÇÕES QUE LHE SÃO IMPUTADAS. 3. APESAR DE INFORMAL, O PROCESSO ADMINISTRATIVO DEVE OBEDECER AS REGRAS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. 4. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
(RMS 1074/ES, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/12/1991, DJ 30/03/1992, p. 3968)
ADMINISTRATIVO - SERVIDOR - ESCRIVÃO DE CARTORIO - ATO DEMISSORIO - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - PORTARIA INSTAURADORA - INEPCIA - NULIDADE.
- NULA É A PORTARIA INSTAURADORA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR QUE NÃO DESCREVE, SATISFATORIAMENTE, OS FATOS ILICITOS A SEREM APURADOS, APRESENTANDO-SE DE FORMA GENERICA E IMPRECISA, NÃO PROPORCIONANDO AO ACUSADO CONHECIMENTO PLENO DAS ACUSAÇÕES QUE LHE SÃO IMPUTADAS, IMPOSSIBILITANDO-O DE PROMOVER SUA DEFESA.
- NULIDADE DA PORTARIA, POR INEPCIA, SEM PREJUIZO DE QUE OUTRA VENHA SER OFERECIDA, COM OBEDIENCIA AS DETERMINAÇÕES LEGAIS CONCERNENTES.
- RECURSO PROVIDO.
(RMS 7186/GO, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Rel. p/ Acórdão Ministro CID FLAQUER SCARTEZZINI, QUINTA TURMA, julgado em 08/04/1997, DJ 19/05/1997, p. 20650)
MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
- Imprescindibilidade de descrição e qualificação, na portaria de instauração do procedimento, dos fatos imputados ao servidor.
- Ausência de animus específico de abandono do cargo.
- Mandado de segurança concedido.
(MS 7176/DF, Rel. Ministro FONTES DE ALENCAR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/12/2000, DJ 19/02/2001, p. 134)”
Ainda, Hely Lopes Meirelles, na obra intitulada “Direito Administrativo Brasileiro”, 31ª edição, Malheiros, São Paulo, p. 690, nos ensina, vejamos, verbo ad verbum:
“O processo disciplinar deve ser instaurado por portaria da autoridade competente na qual se descrevem os atos ou fatos a apurar e se indiquem asinfrações a serem punidas, designando-se desde logo a comissão processante, a ser presidida pelo integrante mais categorizado. A comissão – especial ou permanente – há que ser constituída por funcionário efetivo, de categoria igual ou superior à do acusado, para que não se quebre o princípio hierárquico, que é o sustentáculo dessa espécie de processo administrativo.”(Grifo e negrito meu)
Para Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, na obra intitulada “Processo Administrativo”, 1ª edição, 3ª tiragem, editora Malheiros, p. 130, a falta de indicação das infrações causa o cerceamento de defesa, incompatível com o Estado de Direito, vejamos, in verbis:
“Acusado não é apenas aquele a quem é feita uma acusação formal: a imputação do cometimento de uma ação tipificada como delituosa. Por “acusado”, para fazer jus à garantia do devido processo legal, deve-se entender também aquele a quem é irrogado um comportamento correspondente a uma qualidade negativa e quem se encontre em situação da qual lhe possa resultar um dano econômico, moral ou jurídico. Muitas vezes, para burlar o direito de defesa, o acusador usa de subterfúgios ou eufemismos destinados a mascarar uma acusação implícita. Tal comportamento é incompatível com o Estado de Direito.”
Dessa forma, nula, por inépcia, éaINSTAURAUÇÃOdeprocesso disciplinar, a qual não descreve, satisfatoriamente, os fatos ilícitos a serem apurados, apresentando-se de forma genérica e imprecisa, não proporcionando ao acusado conhecimento pleno das acusações que lhe são imputadas, eis que ausentes as regras insertas no Código de Ética que, em tese, o representado infringiu, impossibilitando-o de promover sua defesa, acarretando em cerceamento de defesa, por ofensa ao devido processo legal (dueprocessoflaw), ao princípio da legalidade e da transparência.
Notas
[1]LARENZ, Karl, Methodenlehre der Rechtswissenchaft. 4 ed. Berlin: Springer – Verlag, 1979, p. 13-14;
[2]Esquema de derecho penal. La doctrinadel delito-tipo. Trad. Sebastian Soler. Buenos Aires: Depalma, 1944;
[3]Dicionário de princípios jurídicos / Ricardo Lobo Torres, Eduardo TakemiKataoka, Flávio Galdino, organizadores; Sílvia Torres, supervisora. – Rio de Janeiro :Elsevier, 2011, p. 1318;
[4]STF. Rel. Min. Gilmar Mendes, HC n.º 84.409/SP, 2ªT., DJ de 19 agos. 2005, p. 57;