3. PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL
3.1. Noções introdutórias
Entre os princípios basilares do Direito Penal, dispostos na Constituição apresentados anteriormente, tem-se outros diversos princípios específicos de aplicação da matéria penal, bem como inseridos nessa, outros inerentes a reponsabilidade do agente, e a significância dos ilícitos praticados no sentido de política criminal.
Na mesma linha de raciocínio, Prado destaca que:
Os princípios penais constituem o núcleo essencial da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito – suas categorias teoréticas -, limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências de um Estado democrático e social de Direito. Em síntese: servem de fundamento e de limite à responsabilidade penal.[48]
Assim, faz-se necessário construir duas linhas de raciocínio na divisão da princípiologia; a primeira, referente aos conceitos dos princípios penais constitucionais como já apresentados, e a segunda, expor alguns dos princípios do Direito Penal que possuem grande relevância, asseverando que, mesmo que os princípios penais constitucionais e os penais específicos tenham inter-relação, ambos estabelecem formas diferenciadas no âmbito de sua aplicação.
3.2. Princípios em espécie
3.2.1. Princípio da subsidiariedade
De início, cumpre ressaltar que, como já elucidado preliminarmente na temática de bem jurídico, o Direito Penal é ultima ratio do ordenamento jurídico, ou seja, será aplicado aos casos como última medida protetiva, quando observado que não haja outro Direito que possa salvaguardar os bens lesionados, ou controle da ordem pública.
Do mesmo modo, observando que o crime já exista, mas por questões de política criminal, mostre-se mais eficaz a utilização de outros meios, como forma de sanar os prejuízos decorrentes da ação.
No entanto, no entendimento do STJ, no julgamento Resp. 672.225/RS sobre apropriação indébita, o qual se discute o princípio da subsidiariedade ao citar Claus Roxin, sendo o Direito Penal “(...) desnecessário quando se pode garantir a segurança e a paz jurídica através do direito civil, de uma proibição de direito administrativo ou de medidas preventivas extrajurídicas.”[49], discutiu-se que determinados casos, a aplicação da matéria penal se mostra necessária, visto tratar-se no caso de apropriação indébita realizada por funcionário público, e tendo aplicação imediata do art. 168, § 1º do CP.
Dessa forma, Masson doutrina que:
(...) ao contrário do postulado da fragmentariedade, se projeta no plano concreto, isto é, em sua atuação prática o Direito Penal somente se legitima quando os demais meios disponíveis já tiverem sido empregados, sem sucesso, para proteção do bem jurídico. Guarda relação portanto, com a tarefa de aplicação da lei penal.[50]
Como o elucidado, percebe-se que, cada caso em concreto deverá ser analisado na aplicação de tal princípio, uma vez que, certos conceitos não devem ser banalizados, no sentido de que torne o Direito Penal, sempre substituível em virtude da ultima ratio, quando determinados atos praticados, incorrer ilícitos menores. O que se visa assegurar acima de tudo, não é tão somente a aplicação penal como forma punitiva, mas também, a mantença da ordem pública e segurança jurídica imposta pelas normas.
3.2.2. Princípio da responsabilidade pelo fato
Por esse princípio, tem-se que o Direito Penal deve tipificar as condutas penais que ensejem punibilidades específicas, sem que haja diferenciação quanto a determinadas condições de cada autor.
Compreende-se que, a matéria penal não pode ter como foco principal, buscar a punibilidade pelo ilícito em virtude de quem os tenha praticado, mas sim, pelo fato em si, como desobediência da norma, o que poderia denotar no caso do primeiro, o chamado Direito Penal do autor, o qual não é admitido no ordenamento jurídico brasileiro.
Diferente deste entendimento é a responsabilidade penal pelos fatos, princípio pelo qual, o Estado de modo repressivo, preocupa-se em punir o agente pelas condutas criminais realizadas. Assim compreende Capez ressaltando que: “(...) o direito penal não se presta a punir pensamentos, ideias, ideologias, nem o modo de ser das pessoas, mas, ao contrário, fatos devidamente exteriorizados no mundo concreto e objetivamente descritos e identificados em tipos legais.”[51]
Dessa forma, o Estado deve externar seu campo de atuação, de modo a observar os preceitos constitucionais, aplicando a norma penal, por meio da punibilidade, com o objetivo de assegurar a defesas dos bens jurídicos, e não intitular penas aos autores dos ilícitos por eles pertencerem a determinados grupos sociais, como historicamente ocorria na Alemanha nazista com aplicação do Direito Penal do autor.
3.2.3. Princípio da responsabilidade penal subjetiva
Pela subjetividade da conduta, entende-se que, o agente que pratique um fato ofensivo às normas, deverá responder pelos ditames desta, de forma subjetiva, o que se subentende ter ele agido de modo culposo ou com dolo. Disto advém o entendimento que, no Direito Penal não há a responsabilidade objetiva, extraindo-se tal fundamento do art. 19 do CP, o qual prevê: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.”[52]
Em clássico julgamento do Resp. 154.137/PB citado por Masson, o STJ manifestou-se no seguinte sentido:
O Direito penal moderno é Direito Penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intolerável a responsabilidade pelo fato de outrem. À sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se a conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe.[53]
Importante mencionar, a título exemplificativo que, tal questão já fora muito debatida pela doutrina e jurisprudência, como nos casos de denuncia genérica de crimes societários, onde incide o entendimento de responsabilidade penal objetiva. A respeito disso, pode-se citar o HC 105.953/SP decidido pelo STF, que importa colacionar:
A formulação de acusações genéricas, em delitos societários, culmina por consagrar uma inaceitável hipótese de responsabilidade penal objetiva, com todas as gravíssimas consequências que daí podem resultar (...).
Se há compromisso da lei com a culpabilidade, não se admite responsabilidade objetiva, decorrente da imputação genérica, que não permite ao acusado conhecer se houve e qual a medida da sua participação no fato, para poder se defender.[54]
Consoante às explicações, a responsabilidade penal subjetiva, visa que se atestem resultados a quem realmente os tenha cometido por culpa ou dolo, não se permitindo responsabilizar como no exemplo, um sócio, por intermédio de uma denúncia evidentemente genérica, pelo simples fato de tal sócio figurar como responsável de uma determinada sociedade, o que ensejaria a responsabilidade objetiva. É preciso mais que isso; necessita-se que haja a presença de requisitos que demostrem a culpabilidade do agente, ou ao menos, que aquele tenha dado causa a ela, conforme o entendimento nullun crimen, nulla poena sine culpa.
3.2.4. Princípio do ne bis in idem
Com base na Convenção Americana dos Direitos Humanos (Decreto 678/1992, art. 8º, item 4), se estabelece o entendimento de que nenhum acusado poderá ser julgado pelo mesmo crime duas vezes.
A respeito disso, Pacheco comenta que:
(...) não há instrumento processual que permita impugnar uma sentença absolutória própria transitada em julgado. A revisão criminal e o habeas corpus não podem ser manejados para prejudicar o status libertatis do absolvido.[55]
Desta forma, os sentenciados não poderão ser submetidos a novos processos em relação aos mesmos fatos de forma que tornem as penas, no caso de estarem cumprindo alguma, mais gravosas; o que se permite, é a possibilidade de um novo processo de revisão criminal benéfico ao réu. De outro modo, este princípio, extrai o entendimento do STJ disposto na Súmula 241 a qual dispõe: “A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial.”[56]
No entanto, Masson esclarece que: “A reincidência como agravante genérica quando da prática de novo crime, contudo, não importa em violação deste princípio”[57], ressaltando ainda a visão do STF que: “A regra prevista no art. 61, I do Código Penal encontra-se em sintonia com o ordenamento jurídico em vigor.”[58]
Mas o princípio é plausível de outras hipóteses recorrentes na doutrina e jurisprudência, tal como o HC 173.397/RS do STJ, sobre julgamento de juízo incompetente:
(...) a força normativa dos princípios do favor rei, favor libertatis e ne bis in idem, o que leva à conclusão de que, in casu, não pode a Justiça Especializada reapreciar o mesmo fato já exaustivamente analisado pela Justiça Comum, que o afirmou atípico, porque o faria em prejuízo do investigado, providência inadmissível no nosso ordenamento jurídico (...)[59].
Pelo exposto, o princípio visa como regra geral, inibir uma revisão criminal pro societate como forma da reformatio in pejus, a qual é proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro. A intenção de limitar maior reprovabilidade ao acusado por nova conceituação de fatos anteriores sentenciados, garante a mantença da coisa julgada formal, sem que incorra em consequência, num desconforto e ofensa a segurança jurídica, o que de certa forma, caso não houvesse tal limitação ao poder punitivo, possibilitaria inúmeras revisões penais, ao livre arbítrio estatal.
3.2.5. Princípio da adequação social e da insignificância
A adequação social pode ser conceituada como, uma conduta tipicamente aceita no âmbito social, de modo que, não seja considerada como prática reiterada de crimes.
Porém, Nucci[60] leciona que, não deve tal entendimento confundir-se com a autorização para prática de determinados esportes, como o futebol ou o boxe, os quais se configuram como exercício regular do direito.
Quanto à aplicação de tal princípio, tanto o STF, quanto o STJ, tem decidido de modo a não haver banalização de determinadas práticas consideradas ilícitas. Como exemplo disso, tem-se o HC 181.848//MS julgado pelo STJ sobre a venda de DVD’S piratas, em que a defesa buscava no writ a incidência do princípio da adequação social. Vejamos:
(...) mostra-se improsperável a tese de que a conduta do paciente é socialmente adequada, pois o fato de que parte da população adquire tais produtos não tem o condão de impedir a incidência, diante da conduta praticada, do tipo previsto no art. 184, § 2o. do CPB.[61]
Na mesma linha de raciocínio, foi o entendimento do STF no HC 98.898/SP, o qual importa colacionar: “Não ilide a incidência da norma incriminadora a circunstância de que a sociedade alegadamente aceita e até estimula a pratica do delito ao adquirir os produtos objeto originados de contrafação.”[62]
De modo claro e abrangente, Greco doutrina sobre o princípio que:
Embora sirva de norte para o legislador, que deverá ter a sensibilidade de distinguir as condutas consideradas socialmente adequadas daquelas que estão a merecer a reprimenda do Direito Penal, o princípio da adequação social, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais incriminadores. Mesmo que sejam constantes as práticas de algumas infrações penais, cujas condutas incriminadas a sociedade já não mais considera perniciosas, não cabe, aqui, a alegação, pelo agente, de que o fato que pratica se encontra, agora, adequado socialmente. Uma lei somente pode ser revogada por outra, conforme determina o caput do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil.[63]
De outro lado, tem-se o princípio da insignificância, o qual em síntese visa à exclusão da tipicidade de certas condutas pela sua forma ínfima na lesão de determinados bens jurídicos, como medida de política criminal.
Cumpre ressaltar que, no tocante a sua aplicação, existem casos que encontram relação com o princípio da adequação social, como nos posicionamentos anteriormente expostos, do STJ no mesmo julgado do HC 181.848//MS, bem como o proferido pelo STF HC 98.898/SP, relacionado aos crimes de bagatela, assim também conotados no ensejo da insignificância.
No entanto, para melhor enfoque na temática e compreensão do princípio da insignificância, o assunto será abordado nos tópicos subsequentes.
4. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA APLICADO
4.1. Noções introdutórias
Como já explanado anteriormente, entre as finalidades que o Direito Penal se inclina, tem-se a aplicação de suas normas como forma de ordenamento social, assegurando proteção aos bens jurídicos mais relevantes assim considerados por ela. Mesmo assim, em diversos casos de aplicação das normas penais, surgem questões quanto à relevância de determinadas condutas, por se mostrarem mínimas, perfazendo o entendimento da necessidade de imposições punitivas menores, ou até a exclusão destas pelo poder estatal.
Cumpre destacar que, diante da necessidade de diferenciar os fatos relevantes dos menos complexos, foi introduzido no sistema penal, por intermédio da doutrina do jurista alemão Claus Roxin e seus estudos aprofundados sobre a matéria, o princípio da insignificância, amplamente discutida no ordenamento jurídico atual. Dos estudos de Roxin[64], pode-se extrair de sua doutrina o entendimento sobre a insignificância a qual, deva excluir a punibilidade dos danos que ensejem menor relevância, atendo-se aos que importem maiores lesões às pretensões sociais de respeito, aplicando-a estritamente como meio de redução da criminalidade, e como medida de política criminal.
Mais elucidativo Greco se atém aos dizeres de Carlos Vico Mañas que:
Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático político-criminal da expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal.”[65]
Desta maneira tem-se a admissão do princípio da insignificância, também conotado doutrinariamente como crime de bagatela, motivo pelo qual apresenta discussão na jurisprudência e doutrina, quanto a sua inserção em crimes que possam não ensejar relevância punitiva, em virtude da ínfima ofensa a bens assegurados juridicamente. Nessa esteira introdutória, Prado enfoca o seguinte:
(...) o princípio da insignificância, formulado por Claus Roxin e relacionado com o axioma mínima non cura praeter, enquanto manifestação contrária ao uso excessivo da sanção criminal, devem ser tidas como atípicas as ações ou omissões que afetem infimamente a um bem jurídico-penal. A irrelevante lesão do bem jurídico protegido não justifica a imposição de uma pena, devendo excluir-se a tipicidade da conduta em caso de danos de pouca importância.[66]
De outro modo, Capez[67] ensina que, o tipo penal expõe a abrangência da lesividade aos bens tutelados, uma vez que, essa tenha sido a real intenção do legislador, e, sendo incoerente o entendimento de que, este tenha possibilitado elencar tipicidades que não possibilitassem agressão aos bens assegurados. Nessa linha de entendimento, extrai-se que, nenhum tipo penal, poderá ser considerado atípico, mesmo em virtude da prática de lesões menores a determinados bens, cabendo ao aplicador da norma, o dever de analisar cada caso em concreto, observando a possibilidade de incorrer tal princípio.
O princípio em si, possui peculiaridades caracterizantes, que conforme se extrai da doutrina de Mirabete e Fabbrini ao citar os ensinamentos de Luiz Flávio Gomes, têm-se:
“(a) escassa reprovabilidade; (b) ofensa a bem jurídico de menor relevância; (c) habitualidade; (d) maior incidência nos crimes contra o patrimônio e no trânsito, além de uma característica de natureza político-criminal, qual seja, a da dispensabilidade de pena do ponto de vista da prevenção geral, se não mesmo sua inconveniência do ponto de vista da prevenção especial.”[68]
O que deve se extrai dos entendimentos expostos, é que, na aplicação do princípio em estudo, muitos crimes tipificados no Direito Penal, e exteriorizados na prática pelos agentes, apresentar-se-ão inferiores nas lesões incorridas, o que de certo modo, poderia ser conotada a aplicação imediata da insignificância. Mas, Bitencourt assevera que: “O fato de determinada conduta tipificar uma infração penal de menor potencial ofensivo (art. 98, I, da CF) não quer dizer que tal conduta configure, por si só o princípio da insignificância.”[69]
Ademais, da doutrina de Bitencourt[70] pode-se extrair que, a insignificância de certa conduta, deve ser avaliada não apenas de acordo com a valoração do bem jurídico lesionado, mas sim, principalmente pela intensidade caracterizada na produção do resultado danoso, ou seja, de modo esclarecedor, Roxin exemplifica o debatido, conforme citado nesta mesma doutrina:
“mau-trato não é qualquer tipo de lesão à integridade corporal, mas somente uma lesão relevante; uma forma delitiva de injúria é só a lesão grave a pretensão social de respeito. Como força deve ser considerada unicamente um obstáculo de certa importância, igualmente também a ameaça deve ser sensível para ultrapassar o umbral da criminalidade.”[71]
Do elucidado, pode-se concluir que, nem sempre deve o entendimento de que a insignificância da lesão deva excluir a tipicidade da conduta, uma vez que, certas comportamentos, devido ser teor mínimo de lesão, seriam banalizadas do ordenamento, podendo tornar-se letra morta da legislação. De outra forma, Zaffaroni, apud Bitencourt, já entendi sobre o princípio que:
“a insignificância só pode surgir à luz da função geral que dá sentido à ordem normativa e, consequentemente, a norma em particular, e que nos indica que esses pressupostos estão excluídos de seu âmbito de proibição, o que resulta impossível de se estabelecer à simples luz de sua consideração isolada.”[72]
4.2. Requisitos de aplicação
Importa expor conforme considerações de Mirabete e Fabbrini[73] que, a excludente de tipicidade de determinado injusto, por meio do princípio em questão, tem sido amplamente admitido pela doutrina e jurisprudência, mesmo que sua aplicação, se faça por intermédio de analogia, ou de modo interpretativo, sem que no entanto, incorra em ofensa a lei.
A aplicação da insignificância implica na observância de uma série de critérios estabelecidos em requisitos de ordem objetiva, que autorizam sua utilização como modo de exclusão da tipicidade da conduta. Tais requisitos são dispostos constantemente na jurisprudência tanto do STF, quanto o STJ, que a título de exemplificação, pode-se citar o RHC 24.326/MG, o qual observa:
Nesse sentido, em determinadas hipóteses, aplicável o princípio da insignificância, que, como assentado pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 84.412-0/SP, deve ter em conta a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.[74] (Grifado).
Ainda nesse Habeas Corpus, o Ministro Paulo Gallotti do STJ, afirma que:
“(...) o reconhecimento de tais pressupostos demanda o minucioso exame de cada caso sob julgamento, não se mostrando possível nem razoável a criação de estereótipos, tal como a fixação antecipada de valor aquém do qual se estaria diante da incidência do princípio, que é de caráter excepcional, mostrando-se de rigor a verificação cuidadosa da presença desses elementos para evitar a vulgarização da prática de delitos.”[75]
Desta forma, compreende-se que, em cada caso deverá ser observado os requisitos de aplicação do princípio elencados acima, de modo a entender a forma em que fora praticado determinados crimes, para que não haja a incorrência de atipicidade das condutas, sempre que o objeto de proteção do Direito Penal tenha valoração insignificante. Diante disso, no Direito Penal serão mantidos os princípios da fragmentariedade e subsidiariedade, os quais implicam atuação penal, quando da ocorrência de lesões aos bens jurídicos tutelados mais relevantes no ordenamento jurídico, os quais demonstrem a necessidade da imposição de medidas punitivas capazes de resguardá-los e manter a ordem social.
Entretanto, cumpre ressaltar o entendimento de Masson sobre os requisitos elucidados, observando que: “(...) o reduzido valor patrimonial do objeto material não autoriza, por si só, o reconhecimento da criminalidade de bagatela. Exigem-se também requisitos subjetivos.”[76], o que coaduna-se com o preconizado pelo STJ ao citar precedentes nessa esteira de entendimento:
A verificação da lesividade mínima da conduta, apta a torná-la atípica, deve levar em consideração a importância do objeto material subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, assim como as circunstâncias e o resultado do crime, a fim de se determinar, subjetivamente, se houve ou não relevante lesão ao bem jurídico tutelado.[77]
E no HC 60.949/PE deste mesmo Tribunal que importa colacionar:
O pequeno valor da res furtiva não se traduz, automaticamente, na aplicação do princípio da insignificância. Há que se conjugar a importância do objeto material para a vítima, levando-se em consideração a sua condição econômica, o valor sentimental do bem, como também as circunstâncias e o resultado do crime, tudo de modo a determinar, subjetivamente, se houve relevante lesão.[78]
Observando os casos apresentados, tem-se a falta da tipicidade material da conduta, o que acaba por excluir a tipicidade penal que poderia incorrer em pena. Em casos que operem com estas características, apresenta-se a tipicidade formal, que conforme explica Greco: “(...) seria resultante, portanto, da conjugação da tipicidade formal com a tipicidade conglobante (antinormatividade + atividades não fomentadas + fomentadas + tipicidade material).”[79]
No mesmo delineamento, a tipicidade formal seria a coerência da conduta do agente e a lei penal; já para falar-se em tipicidade conglobante, ainda segundo Greco[80] é preciso verificar se a conduta é antinormativa e se o fato é materialmente típico, residindo segundo sua doutrina, o princípio da insignificância nesta segunda vertente, conotada como tipicidade material.
Assim, para que seja aplicado o princípio, o magistrado deverá ater-se a potencialidade lesiva do ato, a forma que favoreceu o autor, e se a conduta não tenha causado prejuízo relevante à vítima, de modo a poder desconsiderá-la como típica, que de outra forma, no caso de imputação penal e desconsideração da aplicação do princípio, evidentemente revelado como medida irrazoável e dispendioso, denotando maior oneração estatal para a solução do conflito.
4.3. Tipos penais mais incidentes
A aplicação jurídica do princípio da insignificância não poderá se enquadrar em toda espécie de delito, devendo os questionamentos de sua inserção ser analisados quando corroborarem com os requisitos que o princípio exige. Nessa linha, o Direito Penal devido sua natureza fragmentária e subsidiária, deverá ser empregado, quando os crimes praticados tenham evidentemente caracterizado danos e lesões aos bens jurídicos tutelados tal qual a forma prevista na legislação.
Desta forma, tendo o Direito Penal a função precípua de impor medidas punitivas aos agentes que incorram na lesão aos bens mais relevantes, em detrimento dos crimes de bagatela, Toledo elenca os seguintes crimes plausíveis de sua aplicação:
“(...) o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art. 334, § 1.º, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou sujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra (...)”.[81]
A partir desses levantamentos, compreende-se que o princípio da insignificância tem aplicação não apenas nos crimes contra o patrimônio, mas também, em outros que tenham compatibilidade com ele. Sendo assim, alguns dos crimes mais incidentes desse princípio em diversos julgados tanto no STF, quanto no STJ, serão expostos amplamente com maior detalhamento nos tópicos seguintes, uma vez que a jurisprudência possui diversos entendimentos a esse respeito.
4.3.1. Crimes de furto e roubo
Entre os casos de maior questionamento da aplicação do princípio discutido, recaem sobre o crime de furto, o qual a insignificância relaciona-se diretamente ao objeto. Disto, denota-se que a sua aplicação deverá ser analisada em cada caso, pois, na incidência do princípio deverão ser observados os requisitos já citados anteriormente, ao mesmo tempo em que se ressalta a condição da vítima, visto que determinados valores, por mais que se apresentem ínfimos do ponto de vista quantitativo, podem se apresentar mais estimados a pessoas que possuam uma condição financeira menor.
Observada tais regras, Prado enfoca sobre a aplicação de tal princípio: “Em tese, a solução está na aplicação do aludido princípio, em razão do mínimo valor da coisa furtada, como causa de atipicidade da conduta, visto que não há lesão de suficiente magnitude para a configuração do injusto (desvalor do resultado).”[82]
No entanto, os Tribunais Superiores tem entendido que o princípio não seja aplicável nos crimes de furto de pequenos valores, quando se constate que o réu seja reincidente em condutas similares, o que de certa forma colaboraria com a continuidade de práticas delitivas pelo paciente, em face da não punição estatal. Como exemplo, cita-se o julgado do STJ, o HC 195.178/MS[83], pelo qual se desconsiderou a aplicação do princípio primeiramente pela reincidência do acusado, e em segundo lugar, pela situação financeira frágil da vítima. No entanto, em outros julgados, tal como o HC 96.929/MS[84], o STJ entendeu ser aplicável o princípio, mesmo sendo o acusado reincidente ou por maus antecedentes, uma vez que o objeto de furto foi devolvido a vítima e o delito foi considerado de reduzido potencial ofensivo.
De outra forma, Masson[85] recomenda que, o furto de bagatela deve ser distinguido do furto privilegiado, no qual o objeto em questão é de pequena monta, enquanto naquele pode ser considerado irrelevante para o Direito Penal, entendimento esse que, coaduna-se o STJ conforme julgado do REsp. 686.716/RS:
No caso do furto, não se pode confundir bem de pequeno valor com de valor insignificante. Este, necessariamente, exclui o crime em face da ausência de ofensa ao bem jurídico tutelado, aplicando-se-lhe o princípio da insignificância; aquele, eventualmente, pode caracterizar o privilégio insculpido no § 2º do art. 155 do Código Penal, já prevendo a Lei Penal a possibilidade de pena mais branda, compatível com a pequena gravidade da conduta.
A subtração de bens, cujo valor não pode ser considerado ínfimo, não pode ser tido como um indiferente penal, na medida em que a falta de repressão de tais condutas representaria verdadeiro incentivo a pequenos delitos que, no conjunto, trariam desordem social.[86]
No mais, deve-se ater quanto a outras possibilidades da prática do furto, como no caso de furto famélico, em que o agente por viver em condições muitas vezes de indigência, busca através de tal prática a solução momentânea para as suas necessidades vitais e de sua família, pela qual Nucci descreve: “configura estado de necessidade, caso os bens subtraídos sejam de gêneros alimentícios, sem qualquer qualidade para representar acréscimo ao patrimônio”[87]. Nesse sentido, tem-se o clássico julgado do STJ, o HC 55.909/SP[88], em que fora concedido habeas-corpus a uma empregada doméstica, que fora presa por furtar um pote de manteiga avaliado à época em R$ 3,10, onde as instâncias inferiores aplicaram a prisão por visionarem transpor a ideia de medida exemplar, o que evidentemente destona dos entendimentos que englobam a insignificância.
Porém, por se tratar de produtos alimentícios, não quer dizer que todo e qualquer furto, que seja empregado como forma de solver as necessidades vitais, possibilite sempre a aplicação da insignificância. Como exemplo, tem-se recente julgado do STJ, HC 196.132/MG[89], que o paciente havia incorrido no furto de alimentos, mas que se tratava de habitualidade da conduta criminosa efetuada por este, tendo o Tribunal entendido, não aplicar o princípio, pois, isso consequentemente o incentivaria a manter as mesmas condutas posteriormente, visto que nunca seria apenado, motivo pelo qual a ordem fora denegada.
Outra forma que necessária à exposição, é o exemplo o HC 192.242/MG[90], julgado recente em que, o acusado sendo um policial militar fardado e em serviço, subtraiu uma caixa de bombons num supermercado. Por óbvio, o STJ entendeu não aplicável ao caso o princípio discutido, mesmo diante da inexpressividade do bem subtraído, mas sim, pela reprovação da conduta deste, que aos olhos da sociedade, tem o dever de segurança e zelo.
Já quanto ao crime de roubo, o STF já se pronunciou anteriormente sobre a matéria, e a exemplo, como no HC 97.190/GO[91], no sentido de que não seja possível a aplicação de tal princípio, uma vez que, há o emprego de violência e grave ameaça à integridade física ou psicológica da vítima, as quais extrapolam os limites do entendimento de insignificância; ainda que no caso em concreto o valor subtraído seja ínfimo, mas que, além da forma que fora praticado, como no exemplo citado, ainda houve participação em concurso de outros dois agentes, o que só intensifica o entendimento de inaplicável tal princípio no crime de roubo.
4.3.2. Crimes de posse e tráfico de entorpecentes
Conforme frisa a doutrina de Masson, o a jurisprudência do STF vem posicionando-se no sentido de não acolher a insignificância, quando relacionado aos crimes previstos na Lei 11.346/2006 – Lei de Drogas, entendimento explícito no HC 91.759/MG, o qual, conforme destaca o autor: “É pacífica a jurisprudência desta Corte Suprema no sentido de não ser aplicável o princípio da insignificância ou bagatela aos crimes relacionados a entorpecentes, seja qual for a qualidade do condenado.”[92]
Da mesma forma, posicionou-se o STJ em relação ao crime de tráfico de drogas que, coaduna-se com o STF, no qual não incide o princípio por tratar-se de crime de perigo presumido ou abstrato, conforme expõe HC 122.682/SP, entendendo pela inaplicabilidade dos requisitos que configuram o crime de bagatela, mesmo versando pequena quantidade o objeto do tráfico, com base em tantos outros precedentes julgados pelo Supremo. Vejamos:
Na hipótese, não se afigura possível a aplicação do princípio da insignificância ao delito de tráfico de entorpecentes, tendo em vista tratar-se de crime de perigo presumido ou abstrato, sendo totalmente irrelevante a quantidade de droga apreendida em poder do agente. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
Segundo orientação da Quinta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, a vedação expressa de liberdade provisória aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes é, por si só, motivo suficiente para impedir a concessão da benesse ao réu preso em flagrante por crime hediondo ou equiparado. Por tal razão, não se reconhece o direito de apelar em liberdade ao réu que, nessas condições, permaneceu segregado cautelarmente durante toda instrução.[93]
No julgado supracitado, o STJ ponderou que a jurisprudência orienta-se no sentido de que, não seja possível concessão de liberdade provisória aos acusados que incorram na prática de tráfico de droga, uma vez que há vedação expressa na CF. Asseverou de outro modo que o legislador reiterou tal entendimento, pelo disposto no art. 44 da Lei de Drogas n. 11.343/2006 o qual dispõe: “Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.”[94]
Assim, entendem os Tribunais Superiores que, tratando-se de crimes hediondos ou equiparados, o artigo supracitado da legislação especial, denota motivo suficiente para a impossibilidade da concessão da benesse, mesmo em circunstâncias que se apresentem, como o caso em que o acusado traficava quantidades ínfimas de entorpecentes, caracterizando conduta de alto grau de reprovabilidade, o que impossibilita aplicar o princípio da insignificância, visto que, que atenta também a outros requisitos que se exigem para sua concessão.
As condutas de posse de entorpecentes, amplamente discutidas na jurisprudência, tendem a abolir certas práticas por serem compreendidas com insignificantes. Mas a questão não é pacífica no entendimento dos Tribunais, possuindo posicionamentos favoráveis e questionáveis da aplicação do princípio.
Como exemplo, cite-se o HC 102.940/ES[95], do STF referente a um usuário de drogas, o qual o Ministro Ricardo Lewandowski, denegou a ordem da benesse, enfatizando que, não incidiria no presente caso a insignificância da conduta, por presunção de perigo abstrato, o que, conforme seu entendimento, a aquisição dos entorpecentes para consumo próprio, mantém o comércio ilícito, o que em consequência, prejudica a própria saúde pública. Ainda argumentou que, o usuário em virtude de sua dependência, poderia vir a tornar-se um traficante de tais substâncias, tendo asseverado por fim, entre os requisitos de aplicação do princípio da insignificância, tem-se a exigência de ausência da periculosidade da ação, o que não se enquadra no devido caso, por tratar-se de crime de perigo presumido.
Concernente a esse crime, a jurisprudência tem apresentado muito reticente quanto à aplicação de medidas punitivas aos usuários. No STF, crimes dessa natureza cometidos por militares, têm gerado diversas discussões a respeito da aplicação dos requisitos que ensejam o princípio, ora concedendo a ordem do HC, ora denegando-o por questões de reprovabilidade da conduta relativas ao próprio âmbito militar; questões essa que serão apresentadas no subitem concernente a matéria em posterior tópico de tipo penal.
4.3.3. Crime de moeda falsa
O caput do art. 289, § 1º do CP prevê que, incorrerá na tipificação dos crimes de moeda falsa, o agente que: “Falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro.”[96]
É importante destacar que, o STF em decisão isolada já julgou processo sobre esse crime em posição favorável ao acusado, o que se extrai do HC 85.526/CE[97]. No caso, fora feita a apreensão de nota falsa com valor de R$ 5,00 em meio a outras verdadeiras. Deste fato, aplicou o entendimento de que, a tipificação de moeda falsa exige que a sua configuração não seja grosseira, devendo a falsificação ser apta para circular como verdadeira; mas, como nas circunstâncias fáticas, não se criou lesão considerável ao bem jurídico tutelado, dessa forma, considerou que não haveria o crime de estelionato.
No entanto, cumpre ressaltar conforme observa Masson[98] que, o Supremo, no HC 93.251/DF, no qual o sujeito portava 10 cédulas de R$ 5,00, considerou que a conduta do agente em circular as notas falsas sem comprovação de sua boa-fé, incorreu no mencionado crime, asseverando que o tipo penal, não importa a ocorrência de prejuízo econômico, mas sim, a proteção a credibilidade do sistema financeiro que a população confia, não sendo no caso, aplicável o crime de bagatela.
Hoje, o entendimento que prevalece no STF é o de que não se permite a aplicação do princípio da insignificância a tipificação. Pode-se compreender melhor tal entendimento pelo que foi proferido na decisão do HC 97.220/MG, deste Tribunal, noticiado no informativo n. 622 do STF, pelo qual:
A 2ª Turma indeferiu habeas corpus no qual pretendida a aplicação do princípio da insignificância em favor de condenado por introduzir duas notas falsas de R$ 10,00 em circulação (CP, art. 289, § 1º). Na espécie, a defesa sustentava atipicidade da conduta em virtude do reduzido grau de reprovabilidade da ação, bem como da inexpressiva lesão jurídica provocada. Afastou-se, inicialmente, a hipótese de falsificação grosseira e considerou-se que as referidas cédulas seriam capazes de induzir a erro o homem médio. Aduziu-se, em seguida, que o valor nominal derivado da falsificação de moeda não seria critério de análise de relevância da conduta, porque o objeto de proteção da norma seria supra-individual, a englobar a credibilidade do sistema monetário e a expressão da própria soberania nacional.[99]
Com essas bases, pode-se extrair o entendimento de que, o crime deverá ter a idoneidade mínima para possibilitar o engano, na configuração do ilícito, e ainda, indispensável realização de exame pericial, para que constate a potencialidade lesiva do objeto, apurando a situação que se encontrava inserida nos fatos questionados. Deste modo, compreende-se que, mesmo sendo posição majoritária do Supremo, sobre a incidência da insignificância no tipo penal, ainda possibilita questionamentos, quando inseridos a boa-fé subjetiva.
4.3.4. Crimes contra a Administração Pública
Os Tribunais Superiores já decidiram diversas questões referentes as crimes contra a Administração Pública, entre diversos casos que os agentes incorram em atos de improbidade administrativa.
Nas explanações de Masson[100], relata que o STJ no REsp. 892.818/RS já decidiu sobre a matéria, pela inaplicabilidade do princípio da insignificância, visto que a Lei de Improbidade de nº. 8.429/1992 busca assegurar a moralidade administrativa, não permitindo qualquer tipo de mínima ofensa a tal legislação, concluindo que, o princípio não se mostra adequado às condutas conotadas como ímprobas, por não incidir insignificância na moralidade.
Porém, há outros casos os quais os entendimentos são outros, pela aplicação da insignificância, como no caso do HC 104.286/SP, em que um ex-prefeito ter utilizado à época de seu mandato, máquinas da Prefeitura para terraplanar terreno de sua propriedade, observando no caso que, o ex-prefeito pagou tanto pelo combustível, como também, recolheu aos cofres públicos o valor de R$ 70,00 pela utilização das máquinas. O Supremo ainda asseverou que, o entendimento do Tribunal em casos análogos, fora o de indeferimento da ordem do HC, consoante a qualificação do agente, entendimento o qual se encontra no STJ também; no entanto, o STF afirmou o seguinte:
Para a aplicação do princípio em comento, apenas aspectos de ordem objetiva do fato devem ser analisados. E não poderia ser diferente. É que, levando-se em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o paciente ter praticado o crime na condição de prefeito da municipalidade. Partindo-se do raciocínio de que crime é fato típico e antijurídico – ou, para outros, fato típico, antijurídico e culpável -, é certo que, uma vez excluído o fato típico, um dos elementos integrantes da estrutura do crime, estar-se-á diante de indiferente penal.[101]
Em outro mais recente, o HC 107.370/SP[102] também do Supremo, no qual o writ foi concedido ao paciente denunciado pelo crime de peculato, por haver subtraído duas luminárias e fios de cobre, que posteriormente foram devolvidos, vislumbrando o Tribunal a possibilidade de incidência do princípio, o que se denota análise de cada casa em concreto para aplica-lo ou não.
4.3.5. Crimes contra a Ordem Tributária
De outro modo, entre os crimes da natureza tributária, cumpre diferenciar o crime de contrabando em relação ao de descaminho que encontram correlação na jurisprudência sobre os crimes tributários. O conceito de cada um pode ser extraído do art. 334, caput do CP[103], o qual prevê, sendo contrabando à importação e exportação de mercadorias proibidas; e o descaminho conforme previsão legal: “(...) ilidir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadorias”, ou seja, é o ato de fraudar tributos aduaneiros, denotando-se ilícito que atenta a Ordem Tributária.
Tal entendimento aplicado encontra similaridades na jurisprudência entre os dois conceitos, conforme o HC 97.541/AM[104] em que o STF indeferiu o pedido do writ, de um processo referente a contrabando de produtos de informática, conotando-o tal como contrabando, pelo disposto no art. 39 do Decreto-Lei nº 288/67, que aduz: “(...) Será considerado contrabando a saída de mercadorias da Zona Franca sem autorização legal expedidas pelas autoridades competentes.”[105]
No presente julgado, reputou-se que o tipo trataria de um tipo especial de contrabando, semelhante ao descaminho, uma vez que os produtos advindos da Zona Franca não teriam sua utilização proibida. E os argumentos da defesa, foram o de aplicabilidade do princípio da insignificância uma vez que os valores dos bens discutidos seriam menores que a quantia de R$ 10.000,00, aplicadas no STF como parâmetro de incidência do princípio. Para o STF, a aplicação do princípio da insignificância, não se limita ao montante dos objetos ilícitos, mas sim, aos requisitos exigíveis para a aplicação deste, entendimento que se coaduna com o anteriormente aplicado no HC 92.119/GO[106].
Quanto ao delito de descaminho, em julgado do STJ sobre a matéria, o HC 66.308/SP, o Tribunal proferiu o entendimento que expõe todos os meandros de evolução legislativa para auferir um mínimo na consideração para aplicação do princípio da insignificância no ilícito. Vejamos:
Paciente está sendo investigado pelo cometimento, em tese, do crime de contrabando ou descaminho (artigo 334 do Código Penal), e, nesta hipótese, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça se inclinou no sentido de adotar, como parâmetro para se mensurar a relevância do bem jurídico tutelado, os valores dos tributos incidentes sobre as mercadorias de procedência estrangeira, e passíveis de serem cobrados pela Receita Federal, ou seja, a matéria torna-se penalmente relevante se o valor do tributo que é devido for maior que o estipulado para o início da execução fiscal. Abaixo deste patamar, entendia-se aplicável o princípio da insignificância.
Convencionou-se, com amparo na Lei n.º 9.469/97, que o referido princípio teria aplicabilidade nos casos em que o valor dos tributos iludidos não superasse mil reais. Em seguida, com a edição da Lei nº 10.522/2002, o valor utilizado pela Receita para o arquivamento das ações de execução passou a ser de dois mil e quinhentos reais. Mais recentemente, a Lei nº 11.033/2004, em seu artigo 21, dispôs que serão arquivados, sem baixa na distribuição, os valores consolidados iguais ou inferiores a dez mil reais. (Grifado).
O valor referência utilizado pela fazenda pública, quanto aos débitos inscritos em Dívida Ativa da União, é, pois, cem reais, conforme o artigo 18, §1º, da Lei 10.522/2002, e corresponde ao valor máximo que o erário está disposto a abrir mão, por meio do cancelamento.
Logo, considerando-se que a lesividade da conduta no crime de descaminho deve ser aferida com base no valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas, e que os montantes inicialmente apurados (...) excedem em muito o valor de cem reais, não há que se falar em aplicação do princípio da insignificância. [107]
Desta forma, a 6ª Turma por unanimidade, denegou a ordem de Habeas Corpus, entendendo não ser aplicável o princípio da insignificância no respectivo caso.
Como se pode perceber, a questão quantitativa dos valores que devam incidir na aplicação do princípio, sempre foi discutida na doutrina e na jurisprudência, conforme demonstrado na evolução legislativa explanada no julgado supracitado. Mas é importante salientar nos entendimento de Masson[108] que, o STJ por muito tempo admitiu o referido princípio, quando as quantias questionadas fossem igual ou inferior a R$ 100,00, avaliação pelo qual o STF alterou posteriormente conforme julgado recente no HC 96.661/PR[109], pelo qual se concedeu a ordem do writ considerando válida a incidência da insignificância, asseverando dois aspectos objetivos a serem observados; sendo o primeiro, quanto a inexpressividade do montante do débito tributário se comparado com a pena cominada ao delito de 1 a 4 anos, e com o valor de R$ 10.000,00, previsto no art. 20 da Lei 10.522/2002. E em segundo, pelo fato de todos os produtos, objeto do descaminho, terem sido apreendidos.
Por fim, asseverou que o princípio da insignificância não estará presente em todo caso que o valor não seja exigível ao Fisco, mas que, a questão deverá ser refletida em um todo, com suas particularidades na aplicação deste.
4.3.6. Crimes no âmbito militar
Dentre os crimes de ocorrência no âmbito militar, encontram-se diversas espécies, como alguns dos anteriores citados.
De início, o crime de lesão corporal leve, tendo como exemplo o julgado do HC 95.445/DF[110], proferido pelo STF, envolvendo agressões físicas entre militares, pelo qual entendeu que, a aplicação do princípio no âmbito da Justiça Militar deva ser de forma criteriosa e casuística, esclarecendo que, no caso em tela, além de ter havido injusta provocação antes das agressões, não houve lesão significativa ao ponto de ferir relevantemente os bens jurídicos assegurados, de forma a importar punição mais severa, denotando-se a aplicação subsidiária do Direito Penal, e mais, buscando-se medidas de solução dos conflitos como política-criminal.
Quanto aos crimes de posse de entorpecentes, já fora exposta anteriormente que, o STF posiciona-se no sentido de impedir o princípio da insignificância em tais delitos.
É o caso do HC 98.447/RS julgado em 2008, que no caso, tratava-se de paciente militar condenado pelo tipo penal do art. 290 do Código Penal Militar, a pena de reclusão de 1 ano por portar quantidade mínima de droga.
Tal processo teve como Relatora, a Ministra Ellen Gracie que expos: “(...) o tratamento legal acerca da posse e uso de substância entorpecente no âmbito dos crimes militares não se confunde com aquele dado pela Lei nº 11.343/06”.[111]
Entendeu ainda que, nas Forças Armadas devem ser consideradas questões como os princípios da hierarquia e da disciplina na interpretação do tipo, relativo ao art. 290, CPM. Observou que, as normas do Direito Penal Militar não podem ser confundidas com o Direito Penal Comum, asseverando por fim que, por tratar-se de conduta típica, e relevante na esfera penal-militar, não haveria de incidir a aplicação do princípio da insignificância, do qual mereceu a denegação da ordem.
No entanto, atualmente há julgados favoráveis a incidência do crime de bagatela, dentro da Organização Militar, como o HC 97.131/RS[112], pelo qual, na aplicação do delito castrense disposto no Código Penal Militar, art. 290, sobre porte ou posse de entorpecentes, quando em quantidades ínfimas, possibilita a descaracterização material da tipicidade penal. Destaca ainda que, as condutas tipificadas na Lei 11.343/2006, não estão mais sujeitas a pena privativa de liberdade, mas sim, em restritivas de direitos, e que, mesmo a mencionada lei entrando em conflito com o referido artigo do CPM, deve se aplicar a norma penal mais benéfica, mesmo que a fatos pra ticados anteriormente a vigência da lei nova. E por fim, sanções administrativa-disciplinares dentro da Organização, já se mostram suficientes na reprovabilidade da conduta.
No tocante ao crime de furto no âmbito militar, a jurisprudência tem apresenta embates na questão dos crimes de bagatela, que ocorram dentro das Organizações Militares.
O tema ganhou maior relevância, tendo o STF destacado à possibilidade de aplicação do postulado, noticiado no informativo n. 446 o qual, o julgamento do HC 89.104/RS, de um paciente militar denunciado pelo crime de furto de um aparelho de celular no valor de R$ 59,00, dentro da Organização. Em seu voto, o Relator do processo, Ministro Celso de Mello, expos como exemplo, diversos julgados da 1ª Turma, nesse sentido de aplicação do princípio, tais como o HC 87.478/PA (Rel. Min. Eros Grau – informativo/STF nº 438/2006) e o HC 89.624/RS da Relatora Ministra Cármen Lúcia, os quais deferiram a benesse ao acusado, entendendo a aplicação do princípio;
Por fim, o Ministro Celso de Mello elucidou que:
O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.[113]
No entanto, importa salientar que o princípio deva ser aplicado em cada caso, não devendo ser analisados tão somente pela importância do furto, mas também, sobre outros aspectos que decorrem de tal atitude, e que, atentam a outras normas. Como exemplo, cita-se o HC 104.820/SP julgado pelo Supremo, pelo qual, um sargento do Exército furtou diversas munições, avaliados em R$ 193,05. A 2ª Turma entendeu que, a conduta não deveria ser analisada apenas pelo aspecto econômico, mesmo que esse fosse de pequeno valor, mas sim, por tratar-se de peculato-furto, que também atenta contra a Administração Militar, disposto no próprio CPM.
No julgado, o Min. Ayres Britto do STF, expos de forma concisa que a aplicação da insignificância:
Numa visão humanitária do Direito Penal, então, é de se prestigiar o princípio da insignificância, que, se bem aplicado, não chega a estimular a ideia de impunidade. Ao tempo que se verificam patentes a necessidade e a utilidade desse princípio da tolerância, é imprescindível que sua aplicação se dê de maneira criteriosa, sempre tendo em conta a realidade brasileira, para evitar que a estatal vá além dos limites do razoável na proteção do interesse público.[114]
4.4. Outros tipos penais incidentes
Elucidando a questão, destacam-se as lesões corporais decorrentes de acidente de trânsito como no caso do RHC 66.869/PR[115] do STF, em que restou configurada a insignificância da lesão, sem que houvesse no caso a aplicação do art. 129, § 6º do CP – lesão corporal culposa, motivo pelo qual a ação penal não se mostrava mais necessária para solução do litígio. Entendimento idêntico foi o do STJ no RHC 3557/PE (Relator Ministro José Dantas, 5ª Turma, j. 20.04.1994).
Outro crime comum nos dias atuais, encontrado na jurisprudência é o concernente a “pirataria”, que, como exemplo, tem-se o HC 98.898/SP, no qual o paciente incorrera no crime descrito no art. 184, § 2º, do CP, pela violação de direitos autorais em virtude da venda de CD’s e DVD’s falsificados. Neste julgado o Tribunal expos que: “Não ilide a incidência da norma incriminadora a circunstância de que a sociedade alegadamente aceita e até estimula a prática do delito ao adquirir os produtos objeto originados de contrafação.” [116]; e asseverando também, que, tais condutas não devem ser toleradas, visto que, causam enormes prejuízos ao Fisco, pelo não recolhimento de tributos, bem como prejuízos a indústria e comercio regularmente estabelecidos, motivos pelos quais, mostra-se inaplicável a conotação de crime de bagatela.
Menos recorrente, mas que também cumpre elucidar, é o crime de receptação que, como exemplo, pode-se citar o HC 191.067/MS[117] do STJ, noticiado no informativo n. 475, em que o acusado, adquiriu um celular por R$ 10,00, quando seu valor fora avaliado em R$ 55,00, tendo a Turma entendido pela aplicação do princípio.
Por último, quanto aos atos infracionais em contravenções penais cometidas por criança ou adolescente, têm-se julgados tanto do STF, bem como do STJ, em que incorra a aplicação do postulado da insignificância. O Supremo no HC 98.381/RS[118], entendeu aplicável tal princípio, uma vez que o “(...) ECA tem caráter educativo, preventivo e protetor, não podendo o Estado ficar impedido de aplicá-las.”
De outro modo, entendeu o STJ, no HC 188.177/RS[119] (informativo n. 473), caso de um adolescente acusado de roubo qualificado no tipo penal do art.157, § 2º, I do CP, cominado com o art. 103 do ECA, em que a defesa alegou a insignificância da ação, mas que, para o Ministro Relator do processo, conforme entendimento pacificado do Tribunal, não seria possível a incidência do princípio devido o emprego de violência, restando-lhe as medidas de internação, devido a contingência legal.