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Extermínio de seres humanos: Lei nº 12.720/2012

30/09/2012 às 09:47
Leia nesta página:

A nova lei dispõe sobre o crime de extermínio de seres humanos, alterando o Código Penal, inserindo novas causas de aumento de pena aos crimes de homicídio e lesão corporal, e criando um tipo penal intitulado “constituição de milícia privada” nos crimes contra a paz pública.

Palavras-Chave: Extermínio- humanos – Milícia – Privada -grupo

No dia 28 de setembro de 2012 foi publicada a Lei 12.720/2012, que dispõe sobre o crime de extermínio de seres humanos, alterando o Código Penal (Decreto-lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940), inserindo novas causas de aumento de pena aos crimes de homicídio e lesão corporal, bem como criando um novo tipo penal intitulado “Constituição de Milícia Privada” no Título IX- Dos Crimes Contra a Paz Pública.

O título “Extermínio de Seres humanos” da lei 12.720/2012 soa impactante, em especial em razão da palavra “extermínio”, que tem por significado central “eliminar” seres humanos.

Dentro do contexto da lei, impende salientar que a palavra “extermínio” pode gerar um enquadramento errôneo no juízo de adequação dos fatos à nova lei, tendo em vista que para a caracterização das causas de aumento elencadas nos § 6º do artigo 121 e § 7º do artigo 129, ambos do Código Penal, e do crime de “Constituição de Milícia Privada” (artigo 288-A do Código Penal) não é necessário que o agente pretenda a eliminação ou tentativa de eliminação total de seres humanos ou de grupo nacional, étnico, racial ou religioso, no todo ou em parte. 

Assim, o crime em estudo não se confunde como o crime de genocídio (lei 2.889 de 1º de outubro de 1956), que tem por principal fundamento a intenção do agente, que é eliminar, ainda que parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Guilherme de Souza Nucci: “Não se trata de genocídio, pois não há um fim de eliminar todo um grupo social ou religioso, mas apenas determinada (s) pessoa (s)”[1].

Em que pese o crime de “extermínio de seres humanos” não necessitar de uma finalidade específica do agente, é certo que, pelo menos no Brasil, a atuação de grupos de extermínio / milícias particulares / esquadrões / grupos / organizações paramilitares têm atuado em especial em face de grupos sociais vulneráveis, promovendo, sob a alegação de realização de “justiça” (diante de uma falsa percepção desta), a matança de meninos de rua, mendigos, pequenos delinquentes, negros, homossexuais, líderes comunitários, testemunhas, opositores políticos e defensores dos direitos humanos entre outros.

Podemos citar alguns exemplos emblemáticos ocorridos no Brasil que ilustram a atuação de grupos de extermínio: a) Carandirú, 1992 – SP (Massacre de presos); b) Candelária, 1993 – RJ (Chacina de meninos de rua); c) Eldorado dos Carajás – PA, 1996 (Massacre dos trabalhadores sem terra).

Como se observa, “o processo de violação dos direitos humanos alcança prioritariamente os grupos sociais vulneráveis”[2], em especial populações mais humildes, principalmente em face do fenômeno da “etnicização” da pobreza.

Neste diapasão, no que tange às execuções extralegais, arbitrárias e sumárias -particularidade do extermínio de pessoas - a Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1989, por meio da Resolução 44/162, aprovou os princípios e diretrizes para a prevenção, investigação e repressão às execuções extra legais, arbitrárias e sumárias. O item 1º da referida Resolução reza:

"Os governos proibirão por lei todas as execuções extralegais, arbitrárias ou sumárias, e zelarão para que todas essas execuções se  tipifiquem como delitos em seu direito penal, e sejam sancionáveis como penas adequadas que levem em conta a gravidade de tais delitos. Não poderão ser invocadas, para justificar essas execuções, circunstâncias excepcionais, como por exemplo, o estado de guerra ou o risco de guerra, a instabilidade política interna, nem nenhuma outra emergência pública. Essas execuções não se efetuarão em nenhuma circunstância, nem sequer em situações de conflito interno armado, abuso ou uso ilegal da força por parte de um funcionário público ou de outra pessoa que atue em caráter oficial ou de uma pessoa que promova a investigação, ou com o consentimento ou aquiescência daquela, nem tampouco em situações nas quais a morte ocorra na prisão. Esta proibição prevalecerá sobre os decretos promulgados pela autoridade executiva." (grifos nossos).

Denota-se que a referida resolução das Nações Unidas ressaltou a necessidade dos seus países membros estabelecerem medidas específicas, sob a perspectiva legislativa, com o intuito de punir mais severamente crimes que envolvam grupos de extermínio.

Diante da Referida Resolução, o Brasil, por meio da lei 12.720/2012, com um significativo atraso, cumpriu o referido mandado de criminalização explícito na Resolução 44/162 das Nações Unidas, tipificando condutas abrangendo os aludidos grupos de extermínio, com o intuito de punir mais severamente execuções extralegais, arbitrárias ou sumárias, bem como punindo também mais severamente lesões corporais provocadas por grupos de extermínio, além de ter criado um novo crime com pena de reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos para quem constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos no Código Penal (Constituição de Milícia Privada).

A lei 12.720/2012 foi, portanto, bem intencionada. Contudo, há críticas a serem feitas, vamos a elas.

Primeiramente, a lei pecou em não conceituar “grupo”, “esquadrão”, “milícia privada”, “organização paramilitar”, abrindo margem interpretativa para a doutrina e jurisprudência.

Os conceitos delineados no parágrafo anterior são dúbios, pois, além de não possuírem definição legal, não definem o número de agentes que devem integrar o grupo, bem como não conceituou o que se deve entender por atividade típica de grupo de extermínio. Aliás, como bem ensina Francisco de Assis Toledo:

“Para que a lei possa desempenhar função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser facilmente acessível a todos, não só aos juristas. Infelizmente, no estágio atual da nossa legislação, o ideal de que todos possam conhecer as leis penais parece cada vez mais longínquo, transformando-se, por imposição da própria lei, no dogma do conhecimento presumido, que outra coisa não é senão pura ficção jurídica” (Princípios Básicos de Direito Penal, p. 29. 2002).

Quanto ao número de pessoas que deve integrar o grupo, adotamos uma visão sistemática. Entendemos que por ser o artigo 288-A do Código Penal uma ramificação do artigo 288 do Código Penal (quadrilha ou bando), entendemos que o conceito de grupo, esquadrão, milícia privada ou organização paramilitar devem possuir, pelo menos, número de 4 (quatro) pessoas, seguindo-se a lógica do artigo 288 do Código Penal.

Outra crítica que se faz é que a lei não inseriu a “milícia privada” no inciso I do artigo 1º da lei dos crimes hediondos (lei 8.072/90), gerando, assim, incoerência em considerar apenas como crime hediondo o homicídio cometido em atividade típica de grupo de extermínio, excluindo o homicídio praticado por “milícia privada” em atividade típica de grupo de extermino do rol dos crimes hediondos.

Uma questão interessante é saber se a competência para julgar tais crimes envolvendo grupos de extermínio seriam da competência da justiça federal, sob a alegação de que constituiriam crimes de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (artigo 5º, XLIV da Constituição Federal de 1988). A nosso ver tais crimes são ainda da competência da justiça estadual, pois não afrontam a ordem constitucional e nem o Estado Democrático.

Tendo em vista que na grande maioria das vezes os grupos de extermínio acabam ficando “invisíveis” às investigações devido à inação (qualificada pelo temor que geram tais grupos), convivência ou mesmo o envolvimento direto de autoridades dos poderes  públicos, culminando em mortes não identificadas, vítimas desaparecidas, ausência de inquéritos, testemunhas atemorizadas e insuficiência de provas, será possível que, mediante um Incidente de Deslocamento da Competência (IDC- criado pela EC 45/2004, previsto no artigo 109, V-A e artigo 109, § 5º, ambos da Constituição Federal de 1988), haja o deslocamento da competência da justiça estadual para a federal para o julgamento e apuração dos crimes envolvendo grupos de extermínio, desde que restem caracterizados dois requisitos cumulativamente: 1º) crime praticado com grave violação aos direitos humanos (este requisito sempre estará preenchido para os crimes envolvendo grupos de extermínio, pois sempre haverá grave violação aos direitos humanos – trata-se de requisito de “preenchimento automático”); 2º) Risco concreto de descumprimento de Tratados Internacionais firmados pelo Brasil em virtude da inércia do Estado-Membro em proceder a persecução penal.

Salienta-se que a competência para julgar o IDC é do Superior Tribunal de Justiça, e a legitimidade para o seu requerimento é do Procurador Geral da República.

Importante frisar que o primeiro caso que ocorreu o deslocamento de competência envolveu grupos de extermínio. Trata-se do IDC nº 2, cuja Ementa do julgado segue abaixo:

INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA.  JUSTIÇAS ESTADUAIS DOS ESTADOS DA PARAÍBA E DE PERNAMBUCO. HOMICÍDIO DE VEREADOR, NOTÓRIO DEFENSOR DOS DIREITOS HUMANOS, AUTOR DE DIVERSAS DENÚNCIAS CONTRA A ATUAÇÃO DE GRUPOS DE EXTERMÍNIO NA FRONTEIRA DOS DOIS ESTADOS. AMEAÇAS, ATENTADOS E ASSASSINATOS CONTRA TESTEMUNHAS E DENUNCIANTES. ATENDIDOS OSPRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS PARA A EXCEPCIONAL MEDIDA.

1. A teor do § 5.º do art. 109 da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional n.º 45⁄2004, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal fundamenta-se, essencialmente, em três pressupostos: a existência de grave violação a direitos humanos; o risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas.

2. Fatos que motivaram o pedido de deslocamento deduzido pelo Procurador-Geral da República: o advogado e vereador pernambucano MANOEL BEZERRA DE MATTOS NETO foi assassinado em 24⁄01⁄2009, no Município de Pitimbu⁄PB, depois de sofrer diversas ameaças  e vários atentados, em decorrência, ao que tudo leva a crer, de sua persistente e conhecida atuação contra grupos de extermínio que agem impunes há mais de uma década na divisa dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, entre os Municípios de Pedras de Fogo e Itambé.

3. A existência de grave violação a direitos humanos, primeiro pressuposto, está sobejamente demonstrado: esse tipo de assassinato, pelas circunstâncias e motivação até aqui reveladas, sem dúvida, expõe uma lesão que extrapola os limites de um crime de homicídio ordinário, na medida em que fere, além do precioso bem da vida, a própria base do Estado, que é desafiado por grupos de criminosos que chamam para si as prerrogativas exclusivas dos órgãos e entes públicos, abalando sobremaneira a ordem social.

4. O risco de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais aos quais o Brasil anuiu (dentre eles, vale destacar, a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecido como "Pacto de San Jose da Costa Rica") é bastante considerável, mormente pelo fato de já ter havido pronunciamentos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com expressa recomendação ao Brasil para adoção de medidas cautelares de proteção a pessoas ameaçadas pelo tão propalado grupo de extermínio atuante na divisa dos Estados da Paraíba e Pernambuco, as quais, no entanto, ou deixaram de ser cumpridas ou não foram efetivas. Além do homicídio de MANOEL MATTOS, outras trêstestemunhas da CPI da Câmara dos Deputados foram mortos, dentre eles LUIZ TOMÉ DA SILVA FILHO, ex-pistoleiro, que decidiu denunciar e testemunhar contra os outros delinquentes. Também FLÁVIO MANOEL DA SILVA, testemunha da CPI da Pistolagem e do Narcotráfico da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, foi assassinado a tiros em Pedra de Fogo, Paraíba, quatro dias após ter prestado depoimento à Relatora Especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais. E, mais recentemente, uma das testemunhas do caso Manoel Mattos, o Maximiano Rodrigues Alves, sofreu um atentado a bala no município de Itambé, Pernambuco, e escapou por pouco. Há conhecidas ameaças de morte contra Promotores e Juízes do Estado da Paraíba, que exercem suas funções no local do crime, bem assim contra a família da vítima Manoel Mattos e contra dois Deputados Federais.

5. É notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas próprias. Há quase um pronunciamento uníssono em favor do deslocamento da competência para a Justiça Federal, dentre eles, com especial relevo: o Ministro da Justiça; o Governador do Estado da Paraíba; oGovernador de Pernambuco; a Secretaria Executiva de Justiça de Direitos Humanos; aOrdem dos Advogados do Brasil; a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado da Paraíba.

6. As circunstâncias apontam para a necessidade de ações estatais firmes e eficientes, as quais, por muito tempo, as autoridades locais não foram capazes de adotar, até porque a zona limítrofe potencializa as dificuldades de coordenação entre os órgãos dos dois Estados. Mostra-se, portanto, oportuno e conveniente a imediata entrega das investigações e do processamento da ação penal em tela aos órgãos federais.

7. Pedido ministerial parcialmente acolhido para deferir o deslocamento de competência para a Justiça Federal no Estado da Paraíba da ação penal n.º 022.2009.000.127-8, a ser distribuída para o Juízo Federal Criminal com jurisdição no local do fato principal; bem como da investigação de fatos diretamente relacionados ao crime em tela. Outras medidas determinadas, nos termos do voto da Relatora. (Relatora: Ministra Laurita Vaz. Suscitante: Procurador Geral da República. Suscitados: Justiça Estadual da Paraíba e Justiça Estadual do Pernambuco. Data do julgamento: 27 de outubro de 2010).

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Outra peculiaridade a ser apontada é que no Tribunal do Júri, ao julgar homicídio (s) doloso (s) cometido por grupo de extermínio, a condição da “atividade típica de grupo de extermínio” deverá ser agora quesitada aos jurados na forma do artigo 483, inciso V do Código de Processo Penal, pois se trata de causa de aumento da pena. Antes da lei 12.720/12 essa condição não era quesitada, mas podia servir ao juiz como parâmetro para a fixação da pena base. Valem ainda para a espécie os apontamentos feitos por GUILHERME DE SOUZA NUCCI:

Causas de aumento de pena: são circunstâncias legais, ligadas ao tipo penal, que provocam o aumento da pena, por cotas determinadas pelo legislador, porém aplicadas pelo juiz no momento da individualização da pena. Devem constar da denúncia ou queixa, permitindo a defesa do réu. Necessitam, ainda, ser acolhidas pela pronúncia. Após, precisam de sustentação em plenário pelo órgão acusatório” (Código de Processo Penal Comentado. 10ª ed. 2011. São Paulo: RT. p. 875) – grifos nossos.

Feita uma análise geral da lei, cumpre agora traçar breves comentários de cada causa de aumento de pena, e também do novo tipo penal.

O novo § 6º do artigo 121 (trazido pela lei 12.720/2012) diz que a pena será aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou grupo de extermínio.

A intenção do § 6º do artigo 121 do Código Penal foi trazer que a milícia privada que cometeu homicídios dolosos não poderá justificar que atuou com a finalidade de prestar segurança para se ver livre da referida causa de aumento da pena. Assim, ainda que as milícias tenham atuado como justiceiros ou protetores informais da sociedade local, atuando onde o Estado está ausente ou se confunde com as ações criminosas, haverá incidência da nova causa de aumento de pena.

Cumpre observar que o § 6º do artigo 121 do Código Penal trouxe uma norma proibitiva de incidência da causa de diminuição da pena prevista no §1º do artigo 121, primeira parte do Código Penal (“Se o agente comete o crime por motivo de relevante valor social ou moral”) aos que aleguem terem matado sob o pretexto de prestação de serviço de segurança. Exemplo: grupo de matadores que resolveu eliminar uma quadrilha que vendia drogas e viciava vários alunos de um determinado colégio. Neste caso não poderá haver incidência da causa de diminuição da pena prevista no artigo 121, § 1º, primeira parte do Código Penal, mas haverá a incidência da causa de aumento de pena prevista no novo § 6º do artigo 121 do Código Penal.

Uma questão importante a ser levantada é a seguinte: Ao tratar o § 6º do artigo 121 do Código Penal de “milícia privada”, estaria isentando as polícias civis, militares e federais que atuam na segurança de determinada sociedade, e que praticam atividades típicas de grupo de extermínio na localidade sob a alegação de prestação de serviço de segurança pública? A resposta a essa questão poderá ser tormentosa, pois se a lei fez referência que só a milícia privada não poderia invocar a prestação de serviço de segurança para não ver a incidência da causa de aumento de pena, é porque a polícia estatal poderia fazer tal alegação para se ver livre da causa de aumento de pena, e responder somente pelos homicídios sem a causa de aumento de pena do § 6º. Ressaltamos, assim, que a falta de conceito do que vem a ser milícia privada poderá gerar problemas na aplicabilidade da norma, pois a interpretação da lei penal deve ser favorável ao réu.

Deve-se observar também que a inserção do § 6º do artigo 121 do Código Penal obstará o reconhecimento da qualificadora do § 2º, inciso I, in fine do artigo 121 do Código Penal (motivo torpe) no crime de homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, haja vista que agora tal conduta é prevista como causa de aumento de pena, evitando-se assim a ocorrência de bis in idem, vedado nessa hipótese, de forma implícita pelo artigo 8º. 4 do Pacto de São José da Costa Rica.

Outra novidade foi a inserção do § 7º ao artigo 129 (crime de lesão corporal) do Código Penal, que trouxe a seguinte redação: “Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º do artigo 121 deste Código”. Na realidade a inovação desta nova causa de aumento da lesão corporal está localizada na remissão que fez ao § 6º do artigo 121 do Código Penal, ou seja, haverá incidência da causa de aumento na lesão corporal dolosa realizada por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou grupo de extermínio. Valem aqui, as mesmas observações já realizadas acerca do § 6º do artigo 121 do Código Penal, com as devidas adequações.

Resta agora fazermos breves apontamentos acerca do novo crime trazido pela 12.720/2012, que é o crime de Constituição de Milícia Privada do artigo 288-A do Código Penal, sem a pretensão de esgotar o assunto.

O Crime de Constituição de Milícia Privada tem como bem jurídico protegido a paz pública.

Quanto ao sujeito ativo, o crime em estudo é considerado delito comum, pois qualquer pessoa pode constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar crimes previstos no Código Penal.

Denota-se que o legislador não traçou os conceitos de cada uma dessas associações que visam praticar atividades típicas de grupo de extermínio. Utiliza-se para este crime o mesmo apontamento de Guilherme de Souza Nucci ao crime de quadrilha ou bando: “Diferenciar os termos [...] é tarefa inglória, tanto porque o tipo penal não o faz, quanto porque o resultado é exatamente o mesmo: basta que, pelo menos, quatro pessoas se associem para o cometimento de crimes para a concretização da infração penal descrita”[3].

A intenção da nova lei foi punir as milícias privadas que visem praticar qualquer dos crimes previstos no Código Penal. Sendo assim, como a lei fez alusão a crimes, não se poderia punir a constituição de milícias privadas que provocam somente vias de fato às suas vítimas de maneira a fazer justiça “paralela” a do Estado.

Entendemos que o novo artigo 288-A do Código Penal ao prever a possibilidade de se constituir milícia privada para praticar qualquer dos crimes do Código Penal extrapolou o verdadeiro sentido do mandado de criminalização contido na Resolução 44/162 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que pretendeu a proibição por lei todas as execuções extralegais, arbitrárias ou sumárias, e a punição mais severa para execuções realizadas por milícias privadas. Deveria, assim, a lei 12.720/2012 ter restringido a incidência do artigo 288-A do Código Penal a crimes compatíveis com a verdadeira finalidade da justiça “paralela” das milícias privadas.

Fazendo-se uma verdadeira contextualização histórica das milícias privadas, percebe-se que tais milícias visam praticar crimes como homicídios, lesões corporais, ameaças em face dos intitulados “inimigos”,  e por vezes cobram, valendo-se de um “terror” coercitivo “taxas” da sociedade supostamente protegida pelos serviços de justiça “paralela” por eles prestados.

Os núcleos do tipo manter e bancar denotam que o agente pode responder pelo delito do artigo 288-A do Código Penal com o simples pagamento das despesas da milícias privadas com o fim de sustentá-las financeiramente. Ressalta-se que só é possível punir tal conduta a título de dolo.  De tal modo, o artigo 288-A do Código Penal não deveria incidir sobre aqueles que contribuem financeiramente para as milícias privadas em razão do medo provocado pela milícia local naquela região, pois muitas vezes aqueles que colaboram financeiramente com essas milícias são vítimas destas, pois tais milícias privadas geram um temor, praticamente obrigando a sociedade local a realizar alguma espécie de pagamento de cunho pecuniário.

Assim, a incidência do artigo 288-A do Código Penal nos núcleos do tipo manter e bancar deve ter incidência àqueles agentes que verdadeiramente contribuem financeiramente para a manutenção da milícia sem qualquer tipo de pressão de ordem psicológica.

Pode ser crime de concurso necessário (ou plurissubjetivo) ou não, a depender do núcleo do tipo.

O tipo possui condutas mistas alternativas, cujo objeto é a prática de qualquer dos crimes previstos no Código Penal.

Entendemos ser possível o crime na modalidade tentada somente para os núcleos do tipo tentar e bancar, pois é possível que ocorra prisão em flagrante quando se verifique e o agente vá a uma determinada instituição financeira para fazer o primeiro depósito em prol da Milícia Privada com o intuito de mantê-la e bancá-la.

O elemento subjetivo do tipo é a finalidade de cometer crimes.

O sujeito passivo é a coletividade.

É possível que o agente pertença a mais de uma milícia privada, só que se o agente tiver ligação por qualquer dos núcleos do tipo com mais de uma milícia privada não se poderá negar a pluralidade de crimes.

Cumpre salientar que a manutenção de mais de uma milícia privada após a condenação ou denúncia constitui novo crime de Constituição de Milícia Privada, não se cogitando de bis in idem.

A pena para o delito em estudo é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, ocasião em que o agente não terá direito à suspensão condicional do processo, haja vista que a pena mínima ultrapassa 1 (um) ano, e a infração penal passará a admitir prisão preventiva, mesmo para o agente primário.

A lei 12.720/12 entrou em vigor na data da sua publicação (28/09/2012).


Notas

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas – volume I. São Paulo: RT. 2012. P. 326

[2] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 3ª ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2012. p. 60

[3] Manual de Direito Penal. 8º ed. São Paulo: RT. 2012. P. 959

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Sobre o autor
Marcelo Rodrigues da Silva

Advogado. LL.M ("Master of Laws") em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em direito público com ênfase em direito constitucional, administrativo e tributário pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Especialista em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Especialista em direito público pela Escola Damásio de Jesus. Extensão Universitária em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito. Extensão Universitária em Recursos no Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor conteudista do Atualidades do Direito dos editores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Possuiu vários artigos em revistas jurídicas, tais como Lex, Magister, Visão Jurídica, muitas das quais com matéria de capa. Colaborador permanente, a convite, da Revista COAD/ADV. Ex-Representante do Instituto Brasileiro de Direito e Política da Segurança Pública (IDESP.Brasil). Ex-estagiário concursado do Ministério Público de São Paulo. Fiscal do Exame Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcelo Rodrigues. Extermínio de seres humanos: Lei nº 12.720/2012. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3378, 30 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22716. Acesso em: 22 dez. 2024.

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