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Uma análise do ranço da escravidão no Brasil.

Os contos “O Caso da Vara” e “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis, à luz da teoria do Direito Penal do Inimigo

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07/10/2012 às 13:21
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Demonstra-se o papel de inimigo do escravo em relação à sociedade brasileira dos séculos XIX a XX, correlacionado a ausência de direitos fundamentais e desrespeito à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão com a teoria do Direito Penal do Inimigo idealizada por Günther Jakobs.

Resumo: Este estudo consiste em analisar a questão da escravidão no Brasil nos sécs.XIX ao XX com base nos contos machadianos “O Caso da Vara” e “Pai Contra Mãe”. O estudo contará com apontamentos da delinquência e das frequentes fugas dos escravos descritos nesses respectivos contos, fazendo uma correlação com as leis penais vigentes àquela época. Propõe um novo olhar sobre o tratamento desumano sofrido pelos escravos, correlacionando-o com a teoria do Direito penal do inimigo idealizada por Günther Jakobs.

Palavras-chave: Machado de Assis, haitianismo, escravidão, inimigo


1. INTRODUÇÃO

O presente estudo propõe basicamente analisar os contos machadianos: “O Caso da Vara” e “Pai Contra Mãe”, dentro do contexto da escravidão que assolava o Brasil em meados do séc. XIX e início do séc.XX, dando ênfase à questão da delinquência e das frequentes fugas dos escravos.

Dentro do contexto da escravidão, pretende demonstrar as penas as quais os  escravos estavam sujeitos com fundamentação no ordenamento jurídico vigente a época, expondo as verdadeiras razões pelas quais os escravos eram tidos como inimigos do sistema social e penal instituído.

Para o desenvolvimento deste raciocínio, empregou-se de um método indutivo, correlacionando a teoria do Direito Penal do Inimigo, idealizada por Gunther Jakobs desde 1985, cuja essência traz a figura de um “inimigo” como alguém que não se admite ingressar no Estado, não podendo ter o tratamento destinado ao cidadão, nem beneficiar-se dos conceitos de pessoa, com o tratamento desumano sofrido pelos escravos e justificados em leis cruéis, afastando-os da condição de pessoa humana.


2.A ESCRAVIDÃO NOS CONTOS “O CASO DA VARA” E “PAI CONTRA MÃE”

O Caso da Vara é um dos contos mais famosos do escritor Machado de Assis[1] publicado no jornal Gazeta de Notícias em 1891 e reeditado em 1899 no livro Páginas Recolhidas.

Narrado em terceira pessoa, Machado faz uso de sua típica ironia para evidenciar severas críticas à sociedade da época e da sordidez da escravidão e suas mazelas morais. O conto foi publicado pela primeira vez no ano de 1891 em momento de grande relevância histórica do período imperial brasileiro, ou seja, três anos após a abolição da escravatura no Brasil, e vivenciado pelo célebre escritor.

 No conto “O Caso da Vara”, Machado narra a história de Damião que foge de um seminário e temendo voltar para casa e enfrentar as iras do pai que o devolveria ao seminário, busca refúgio na casa de Sinhá Rita a qual promete ajudá-lo. Ela possui algumas escravas, destacando-se no enredo, Lucrécia, que, maltratada por sua senhora, consegue as atenções de um seminarista sem vocação, que, em pensamento, desejava apadrinhá-la Porém, no momento mais decisivo do enredo quando a Sinhá Rita se preparava para maltratar a escrava Lucrécia, ela pede a Damião que lhe entregasse a vara, e, na dúvida em salvar a escrava, qual implorava-lhe  por tudo de mais sagrado que não o fizesse, ele entrega a vara à Sinhá Rita.

O conto “Pai Contra Mãe” publicado em 1906, em “Relíquias da Casa Velha”, se encontra numa fase madura do autor, marcada pelos traços do Realismo literário.

Machado, em o “Pai contra Mãe”, narra a história de Cândido Neves, um caçador de escravos fugitivos, que se casa com a jovem Clara, menina órfão e criada pela tia.O sonho do casal é ter filhos, porém é advertido pela tia de Clara que os mesmos não teriam condições de sustentar uma criança.Posteriormente, Clara engravida e portanto, surge o conflito do conto, uma vez que Cândido Neves passa por extrema dificuldade financeira, e sem saber o que fazer para sustentar seu filho, decide desesperadamente em deixá-lo na Roda dos Enjeitados. No percurso crucial que faz com o filho até a roda, ele encontra-se com uma escrava fugitiva e esta renderia cem contos de réis pela captura. Então ele entrega o filho a um farmacêutico e sai em perseguição à escrava, qual desesperadamente luta por sua liberdade. Ela, uma vez que está grávida, implora ao  Cândido Neves que não a entregasse. E após ser conduzida sob muita luta e violência por parte de Cândido Neves, a escrava é entregada ao seu senhor, ocorrendo desta forma o aborto da criança. Desse modo, Cândido Neves recebe os devidos contos de réis pela captura da escrava e volta desesperado ao encontro de seu filho.

Assim, como “O Caso da Vara”, o conto “Pai Contra Mãe” possui como elemento principal de sua história a problemática da escravidão, tratada de uma maneira mais impressionante e agressiva, diferente das demais obras machadianas.

Em uma primeira análise, nota-se que nos dois contos os personagens principais do conflito tratam-se de um homem branco livre e de uma negra escrava, levando o leitor, através da narrativa a desmascarar os horrores da escravidão e o tratamento desumano sofrido pelos negros.

Adentrando-se no universo jurídico penal, os contos “O Caso da Vara” e “Pai Contra Mãe” apresentam riquíssimas informações sobre um período da história do Brasil marcado por acontecimentos de suma relevância e presença de leis severas contra os escravos. É mister salientar que a época da narrativa desses dois contos vigorava-se no Brasil o Código Criminal de 1830, sancionado poucos meses antes da abdicação de D.Pedro I, na data de 16 de dezembro de 1830. Esse código vigorou de 1831 até 1891, quando fora substituído pelo Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (Decretos nºs. 847, de 11 de outubro de 1890, e 1.127, de 6 de dezembro de 1890).

A posteriori, para dar continuidade às propostas do Código Criminal do Império, fora publicado em 29 de novembro de 1832 o Código de Processo Criminal, em caráter provisório para fins de administração da justiça civil.


3.DA DELIQUÊNCIA E DAS PENAS DOS ESCRAVOS

Os dois contos machadianos, objeto deste estudo, retratam com riquezas de detalhes a visão de delinquência dos escravos e da maneira como eram tratados em  meados do séc. XIX, principalmente os que fugiam inconformados devido as condições humanas. Machado apresenta ao leitor os aparelhos que constituíam essa monstruosa degradação humana, senão vejamos:

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. (...)

Segundo Soares (2007) tais aparelhos eram “suplícios que estigmatizavam os escravos delinquentes, tais como o uso de “ferro ao pescoço” (gargalheira) e “ferro ao pé”(correntes)[2] então consagrados no Código Criminal de 1830, que, dentre outras providências, admitia-se a “pena de morte”[3] aos crimes de homicídio, previsto no art.192, e no de Insurreição, art., 113.

O conto “O Caso da Vara”, ironiza a delinquência dos escravos e suas fugas, esta, de duas maneiras distintas: Uma era do jovem seminarista, Damião, que fugira do seminário e temendo enfrentar a ira do pai se abriga na casa da viúva Sinhá Rita, tornando, por assim dizer, escravo dela, se acovardado e rendendo-se às ordens delas para não voltar ao seminário. A outra é da escrava Lucrécia, que, não cumprindo com suas obrigações de escrava, é submetida aos castigos de Sinhá Rita, e, inconformada com a situação foge de sua senhora. Porém, ela é surpreendida com a entrega da vara por Damião à Sinhá Rita.

Neste conto, Machado utiliza da “vara” como “punição” aos escravos que desobedeciam as ordens de seus senhores, tendo arraigado nela a figura dos açoites, prevista como pena no primeiro código penal brasileiro. Vejamos:

 (...) Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:

— Lucrécia, olha a vara! A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. (...).

As questões inerentes à fuga de escravos e sua insatisfação com o regime imposto eram de suma importância no Brasil dos sécs. XIX ao XX, motivo pelo qual foram consagradas no Código Criminal do Império do Brasil, no capítulo concernente aos crimes contra a segurança interna do Império e da tranquilidade pública, caracterizando a Insurreição nos art.113 ao 115 como crime punível à morte, à galés perpétuas e  açoites.

Machado em “O Pai Contra a Mãe”, evidencia esse fato:

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto.

O Código Criminal do Império do Brasil, no capítulo “Das Penas” dispõe em seu art.33 e seguintes sobre a qualidade das penas e da maneira de impô-las e cumpri-las, que, dentre outras disposições, prevê a aplicação da pena de morte, de galés perpétua[4] e de prisão com trabalhos forçados.

Para Noé Azevedo os textos dessas leis lembravam os draconianos, imitando o que ocorria na Antiga Roma, onde o senhor tinha sobre o escravo o jus vitae necisque - o direito de vida e de morte.

O Código Criminal do Império do Brasil foi inovador em vários aspectos, entre eles a exclusão da pena capital para crimes políticos. Nele fixava um esboço de individualização da pena e previa a existência de atenuantes e agravantes, estabelecia julgamento especial para menores de quatorze anos e polemizava quanto à pena aplicada aos escravos prevista no artigo 60[5].

Entende Soares (2007) que o código criminal não fora tão inovador para os escravos vez que fora mantido os suplícios corporais, consoante a punição e crimes que cometiam, salientando o seguinte:

(...) Segundo as classes dominantes e seus legisladores, a punição física jamais poderia ser abolida, pois os negros cativos, além de não serem cidadãos de espécie alguma, eram indivíduos “rudes”, “incultos”e “sem condições” de condições de conhecer a  dimensão das leis sociais, só se submetendo a elas devido ao temor de castigos físicos. Portanto os açoites continuavam a ser aplicado aos escravos delinqüentes, inclusive publicamente, para que a punição tivesse um efeito exemplar e preventivo sobre todos os cativos, mantendo-se assim, até os anos de 1840, o grotesco espetáculo do pelourinho do Campo de Santana[6].

Insta esclarecer que a Constituição de 1824 em seu art.179, inciso XIX, aboliu a pena de açoites por considerá-la cruel sendo assim inviável juridicamente a aplicação no Código Criminal do Império dessa pena, constituindo assim afronta à constituição.

A posteriori  fora publicada a Lei nº 4 de 10 de junho de 1835, instituindo a pena de morte aos escravos que matarem, ferirem ou cometerem quaisquer ofensas aos seus senhores, e, quando tais ferimentos e ofensas físicas fossem leves, determinava a pena de açoites na proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.

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Essa lei foi, por assim dizer, um precedente histórico no Brasil da Teoria do Direito Penal do Inimigo idealizada pelo doutrinador alemão Gunther Jakobs desde 1985, sustentada pela seguinte frase: “os inimigos não são efetivamente pessoas, portando não podem ser tratadas como tal”, vez que havia “dois direitos”, um do cidadão e outro do “inimigo”, no caso em tela: dos escravos.

Seguindo o raciocínio de Jakobs, e aplicando a figura do escravo nesta concepção teórica, levamos a crer que o papel do escravo era senão de um “inimigo”, vez que a sociedade brasileira do séc. XIX era dividida em duas classes: pessoas e não-pessoas, retirando do escravo qualquer direito inerente à pessoa humana.


4.DO HAITIANISMO E A VISÃO DO ESCRAVO COMO INIMIGO

O Brasil, do período narrado nos livros “Pai Contra Mãe” e “O Caso da Vara” absorvia os acontecimentos libertários pelo mundo e preocupava-se com sua posição política naquele contexto social.

Um dos fatores de grande repercussão mundial e gerador de várias mudanças sociais,foram os ideais da Revolução Francesa de 14 de julho de 1789, exercendo,pois, grande influência sobre a liberdade e o respeito dos direitos humanos em todo o mundo.Nesse período, os assuntos que envolviam as colônias eram debatidos e problematizados.

No mesmo ano da eclosão da Revolução Francesa, fora divulgada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembleia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789, definindo os direitos inerentes à pessoa humana.

Algumas instituições autônomas, como a Amis des Noirs[7], promoviam campanhas em defesa da abolição e do direito dos negros à participação política. No contexto desses debates, os Estados Gerais de Paris concederam o direito de voto aos homens de cor livres das Índias Ocidentais. Em São Domingos, entretanto, os proprietários brancos não reconheceram a decisão e iniciaram um conflito aberto contra os mulatos (KLEIN, 1987, p. 106).

A rebelião no Haiti aconteceu em 1791, dois anos depois da Revolução Francesa. Nessa ocasião a Colônia possuía um número de negros que superava em dez vezes o número de franceses e mestiços. Havia simplesmente meio milhão de escravos no Haiti, que nesse momento era o principal mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Esta rebelião durou doze anos, resultando ao final com a abolição da escravatura.

Segundo Stuart Schwartz, em Segredos internos – Engenhos e escravos na sociedade colonial “no período da Regência (1831-40), o termo 'haitianismo' foi usado como um epíteto contra jornais que supostamente representavam o interesse da população de cor livre e abordavam persistentemente a questão racial”.

A Revolução Haitiana (1791-1804)[8] também teve reflexos no Brasil, quando, em 1835 os escravos africanos organizaram uma rebelião na Bahia também com o intuito de expulsar os brancos e tomar o poder: a Revolta dos Malês. Nenhum dos inquéritos judiciais contra as rebeliões escravas na Bahia apontava a inspiração haitiana, mas não há dúvidas sobre sua importância na luta contra a escravidão colonial.

Em 04 de setembro de 1850 fora instituída a Lei Eusébio de Queirós proibindo o tráfico negreiro, impulsionada pelo grande fluxo de escravos e pelo medo de uma revolta como a haitiana.

O historiador John Hope Franklin escreveu, em “Da escravidão à liberdade”, que os americanos ficaram horrorizados diante das notícias do que acontecia no Haiti. A partir de 1791, “muitos se preocuparam mais com os acontecimentos no Haiti do que com a luta de vida ou morte que se desenvolvia entre França e Inglaterra”.

Para os escravos das Américas, a revolta negra do Haiti representou o modelo de um movimento de libertação vitorioso. No Haiti, os escravos haviam conquistado a independência do país e a abolição da escravidão, enfrentando, durante o conflito, invasões da Inglaterra, da França e dos exércitos coloniais. Em todas as sociedades americanas, o exemplo haitiano atemorizou os brancos, enquanto inspirava os escravos e os libertos negros e mulatos (KLEIN, 1987, p. 108).

Consoante Marcelo Ezequiel Correa dos Santos “no Brasil, talvez mais do que em qualquer outra sociedade escravista, o medo do Haiti não evocava somente levantes escravos generalizados, mas fundamentalmente anarquia, desordem, caos e ruptura da ordem social pós-colonial, também em termos de ideologias raciais entre a população livre.

Para Severiano, os escravos eram naturalmente inimigos dos brancos, pela própria condição de escravos a qual estavam submetidos. A instituição da escravidão incluía a prática de maus tratos e de castigos que potencializavam o ódio que os escravos sentiam em relação aos seus senhores, estimulando um sentimento de vingança.

Segundo Bonifácio, o aumento do número de escravos configurava um problema político, uma ameaça ao Estado:

 Se o mal está feito, não o aumentemos senhores, multiplicando cada vez mais o número de nossos inimigos domésticos, desses vis escravos que nada têm que perder antes tudo que esperar de alguma revolução, como o de São Domingos ouviu, pois, torno a dizer, os gemidos de cara pátria que implora socorro e patrocínio (Silva, 1988, p. 75).

A noção de inimigo que os escravos representavam em meados dos sécs. XIX e XX e sobremaneira retratado nos contos “Pai Contra Mãe” e “O Caso da Vara”, possuem correlação com a teoria do Direito Penal do Inimigo idealizada por Günther Jakobs[9] desde 1985, vez que era notório o desrespeito aos direitos fundamentais, outrora estabelecido na Declaração Internacional de Direitos Humanos, bem como dos princípios do Estado de Direito em desfavor dos negros e escravos os quais não eram considerados cidadãos de direitos e sequer eram considerados pessoas.

Para Jakobs (2003) havia uma distinção entre indivíduos sociais que deveriam ser tratado como cidadãos daqueles que era tido como inimigo do Estado, ou seja, dividia-se a sociedade em duas classes diferentes de seres humanos: as “pessoas” e as “não pessoas”, ressaltando que cada uma delas merecia tratamento jurídico diferente, afirmando:

“O Estado pode proceder de dois modos com os delinquentes: pode ver neles pessoas que delinqüem, pessoas que cometeram um erro, ou indivíduos aos que se deve impedir mediante coação que destruam o ordenamento jurídico. Ambas perspectivas têm, em determinados âmbitos, seu lugar legítimo, o que significa, ao mesmo tempo, que também podem ser usadas em um lugar equivocado.[...]Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.Portanto, seria completamente errôneo demonizar aquilo que aqui se denomina Direito penal do inimigo; com isto não se pode resolver o problema de como tratar os indivíduos que não permitem sua inclusão em uma constituição cidadã.” [10]

No caso em tela, o escravo, outrora inimigo do direito penal, era punido simplesmente por ser escravo e não simplesmente pelo fato que o mesmo praticava, tendo leis diferentes dos demais cidadãos.

Nesse sentido, Machado em “O Pai Contra Mãe”, ao narrar os aparelhos que os escravos eram submetidos, principalmente a máscara de folha-de-flandres, justifica os horrores como forma de manter a ordem social. Vejamos:

Era grotesca tal máscara, mas a ordem social humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel.

Para Roberto Lyra, “(...) os fundamentos econômicos do Estado” legitimavam o poder correcional do senhor em face do escravo e “ninguém podia fiscalizar a execução nos ‘sagrados limites’ dos feudos. Gritos e depois gemidos cansados eram a rotina. O castigo só parava para evitar que o escravo morresse, desfalcando o patrimônio anticristão”.

Como mesmo diz o jurista Luis Flávio Gomes:

Os velhos inimigos do sistema penal e do estado de polícia (os pobres, marginalizados etc.) constituem sempre um “exército de reserva”: são eles os encarcerados. Nunca haviam cumprido nenhuma função econômica (não são consumidores, não são empregadores, não são geradores de impostos). Mas isso tudo agora está ganhando nova dimensão. A presença massiva de pobres e marginalizados nas cadeias gera a construção de mais presídios privados, mais renda para seus exploradores, movimenta a economia, dá empregos, estabiliza o índice de desempregado etc. Os pobres e marginalizados finalmente passaram a cumprir uma função econômica: a presença deles na cadeia gera dinheiro, gera emprego etc[11]

 O professor e grande jurista argentino Raúl Eugênio Zaffaroni, quando de passagem pelo Rio de Janeiro em meados do ano de 2009 concedeu entrevista a Revista brasileira Consultor Jurídico, que, dentre várias perguntas prontamente respondidas pela autoridade do direito penal atual, questionou quanto ao direito penal do inimigo, sobretudo na questão da escolha do “inimigo” dizendo:

Cria-se uma paranoia social, e estimula-se uma vingança que não tem proporção com o que acontece na realidade da sociedade. Através da história, tivemos muitos inimigos: hereges, pessoas com sífilis, prostitutas, alcoólatras, dependentes químicos, indígenas, negros, judeus, religiosos, ateus. Agora, são os delinquentes comuns, porque não temos outro grupo que seja um bom candidato. Esse fenômeno decorre do fato de os políticos estarem presos à mídia. Seja por oportunismo ou por medo, eles adotam o discurso único da mídia que é o da vingança, sem perceber que isso enfraquece o próprio poder[12].

Em fins do séc.XIX e início do séc.XX, os escravos eram considerados inimigos do sistema, prevalecia a ideia do perigo e da ameaça negra associada a tópicos morais, sociais e econômicos.

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Sobre a autora
Renata Rodrigues

Advogada em Montes Claros (MG).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Renata. Uma análise do ranço da escravidão no Brasil.: Os contos “O Caso da Vara” e “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis, à luz da teoria do Direito Penal do Inimigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3385, 7 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22748. Acesso em: 19 abr. 2024.

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