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Astreintes nas obrigações de pagar quantia e o direito fundamental à tutela jurisdicional

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05/10/2012 às 13:16
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2 ASTREINTES NAS OBRIGAÇÕES DE PAGAR QUANTIA: Proporcionalidade da Aplicação e da Previsão de Lege Ferenda

As astreintes, ou multas periódicas, meio executivo coercitivo (indireto) patrimonial, originárias do Direito francês, são um instrumento de coerção/coação contra o retardamento do adimplemento da obrigação, isso é, não estão relacionadas estritamente com o descumprimento puro e simples do comando judicial, com a afronta à autoridade e à dignidade do Poder instituído (que revela a essência da multa punitiva/cominatória/sancionatória, assemelhada ao contempt of court do sistema da Common Law – art. 14, inc. V e parágrafo único, art. 18 e arts. 600 e 601, todos do CPC), mas à demora injustificada na realização desse provimento, como forma de garantir o resultado prático do processo, a efetividade da prestação jurisdicional, podendo ser impostas ex officio, em valor a ser arbitrado pelo magistrado e, de regra, antes do descumprimento da decisão judicial: “Como bem se vê, antes de consistir em sanção contra uma eventual afronta à dignidade do poder Judiciário, a multa surge como instrumento apto a dar maior efetividade às decisões emanadas daquele Poder.”[58]

Muito embora já haja previsão de multa no art. 475-J do CPC caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, essa é uma multa processual, uma sanção processual, uma multa punitiva[59]. Isso é, embora o montante da condenação acrescido em 10% reverta em favor da parte (característica das astreintes), essa multa, por ter valor legalmente fixado e incidir obrigatoriamente (não há qualquer margem de discricionariedade ao magistrado, que nem mesmo diante a manifesta situação de penúria do devedor pode deixar de aplicá-la) após, e somente após, o descumprimento do título executivo, transparece claramente como uma penalidade face à conduta.

Ademais, a multa cominatória, em razão exatamente do motivo de sua fixação, incide e é cobrada independentemente de posterior reconhecimento da inexistência da obrigação principal, ao contrário das astreintes que, uma vez fixadas, só incidirão no caso de manutenção do status quo de inobservância do provimento judicial e, é claro, subsistência de possibilidade jurídica e fática de cumprimento da obrigação principal, dado o seu caráter acessório: coagir psicologicamente o devedor a cumprir com aquilo que obrigado sob a ameaça de se avolumar a dívida[60]. Aliás, a acessoriedade das astreintes resta evidenciada na sua natureza coercitiva: visando garantir o cumprimento da obrigação principal, no caso de desaparecer essa inexistirá fundamento para mantença de multa. Caso essa tivesse natureza punitiva, visando punir o ato atentatório à dignidade do Poder Judiciário, o desaparecimento ou impossibilidade de cumprimento da obrigação principal não faria desnaturar o fato de que a parte a quem destinada a multa descumpriu uma determinação judicial, motivo suficiente à cobrança da multa punitiva. Cabe aqui citar elucidativa diferenciação entre a multa coercitiva (para evitar o inadimplemento) e a multa sancionatória (para punir o inadimplemento), feita por Luiz Guilherme Marinoni, verbis:

Não é possível reduzir a multa a uma mera sanção punitiva pecuniária que não pode ser cobrada imediatamente. A multa coercitiva, como já se disse, não tem função punitiva, ao passo que a condenação para o futuro tem por objetivo acelerar a atividade executiva para dar conta de provável violação, e não com a impossibilidade de cobrança imediata da multa que foi imposta para evitar a violação. [...]. Assim, enxergar na ordem sob pena de multa uma espécie de condenação para o futuro significa pensá-la como indenização que somente pode ser cobrada mais tarde, e não como técnica de coerção indireta, fundamental à efetividade da tutela dos direitos.[61]  

Agora, será que é possível a utilização concomitante de uma multa coercitiva para a tutela das obrigações de pagar quantia? E mais, seria realmente necessário legislar sobre o tema, isso é, a sua não expressa previsão veda terminantemente a sua utilização? Será que as astreintes não são uma forma adequada, necessária e justificada de garantir a tutela jurisdicional eficaz e, do mais das vezes, antecipada do crédito objeto da execução de obrigação de pagar quantia? E, assim sendo, não gozaria de eficácia imediata ainda que sem correspondência legislativa expressa, haja vista que mecanismo processual atrelado à consubstanciação de um direito fundamental? Será que a plenitude dos mandamentos constitucionais com status de direitos fundamentais pode ser obstaculizada pela omissão legal, ou, por outro lado, exatamente por isso é cogente a verificação prática incontinente desse meio executivo nas obrigações pecuniárias? Oxalá que sim!

2.1 Princípio da Proporcionalidade

Inicialmente cumpre observar que, sem embargo do embate teórico a respeito da denominação que melhor caracteriza a proporcionalidade[62], haja vista que o mais importante é a constatação do poder da proporcionalidade de manter a unidade e a coerência, e por que não, a completude do ordenamento jurídico, aplicar-se-á, no presente trabalho, a terminologia “princípio”, nomenclatura que, entende-se, ser a que mais adequadamente capta o sentido abrangente e o caráter sistematizante da proporcionalidade.

Pois bem. O princípio da proporcionalidade tem origem no Tribunal Constitucional Alemão, na experiência judicial tedesca[63], como reflexo direto das atrocidades do regime nazista, haja vista que esse regime demonstrou que direitos desprovidos de garantias a sua efetividade ficam manietados por um Poder Legislativo ilimitado e intangível em sua atividade legiferante. Por conseguinte, a Alemanha passou, pela releitura constitucional da legalidade, de uma postura intransigente da lei, a uma percepção jurídica inflexível a violações de direitos fundamentais, campo fértil ao desenvolvimento do princípio da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade é um princípio constitucional implícito de fundamental importância, pois estabelece balizas à compreensão e solução do problema apresentado, impedindo que a retórica impere nas justificativas do legislador ou nos argumentos do julgador. Ele decorre do Princípio do Devido Processo Legal Substancial/material[64] (diz respeito ao controle da atividade estatal, à limitação das leis e atos do Poder Público quanto ao seu conteúdo, o controle do arbítrio legislativo e da juridicidade governamental), o qual prega a constante releitura da legislação, a fim de averiguar a efetividade do acesso e implementação dos direitos, garantias e liberdades constitucionais.[65]

O Princípio da proporcionalidade tem uma composição trifásica: subprincípio da adequação, da necessidade e da proporcionalidade stricto sensu. A sequência em que foram citados não é meramente alfabética, mas segue uma lógica linear e subsidiária que determina que só se procederá ao exame do subprincípio seguinte caso o anterior tenha sido cumprido.

O subprincípio da adequação – também denominado de idoneidade, conformidade, pertinência – consubstancia-se na investigação da capacidade do meio produzir o resultado pretendido. Nada mais é do que a relação de pertinência, de compatibilidade, entre o meio escolhido e o fim almejado. Cumpre observar, todavia, que somente se o meio escolhido for manifestamente incapaz de contribuir para a consecução do fim pretendido é que ele será desproporcional: o meio deve realizar o fim, ainda que esse meio seja o que menos (quantitativo), pior (qualitativo) e com menor certeza (probabilidade) promova o fim. Basta que o meio promova o fim para ser considerado pertinente:

Adequado, então, não é somente o meio com cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado. [...]. Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido.[66]

Esse subprincípio evita, portanto, escolhas arbitrárias, limitando o Poder ao direcionar o agente político a uma eleição condizente com a realidade pretendida pela retirada, do seu âmbito de escolha, de opções patentemente ineficazes.

O subprincípio da necessidade – também denominado de exigibilidade, indispensabilidade, da alternativa menos gravosa – busca o meio idôneo mais moderado, mas igualmente eficaz na consecução do fim colimado. Ele tem relação com os princípios da intervenção mínima, da proibição de excesso e da proibição de proteção deficiente, e apregoa que, entre os meios a disposição, deve-se optar por aquele que seja menos gravoso, quer seja sobre o prisma do excesso (aquele que menos afete os interesses e liberdades em questão), ou da insuficiência (aquele mais proteja os interesses e liberdades em questão). Assim, o meio apenas será desnecessário se for o que, evidentemente, mais afete ou menos proteja os interesses e liberdades para obtenção da finalidade tencionada, porquanto, nesse caso, o sacrifício de um determinado direito (ou dever) fundamental terá sido comprovadamente desnecessário.

O subprincípio da proporcionalidade stricto sensu, diferentemente dos outros dois subprincípios (nos quais a análise é feita in abstracto), é casuístico: atua verificando se, no caso concreto, o custo (prejuízo, sacrifício, intervenção em um direito fundamental) se justifica diante do benefício (realização de outro direito fundamental). É a relação de custo/benefício na apuração da proporcionalidade do meio escolhido: é a ponderação, a justa medida, o equilíbrio, o sopesamento entre a vantagem a ser obtida e a desvantagem a ser sofrida. Isso é, deve haver uma harmonia entre o risco submetido e o efeito favorável adquirido, uma relação entre os valores atingidos e os valores protegidos, entre o gravame e o bônus dele decorrente.

O subprincípio da proporcionalidade stricto sensu é facilmente perceptível pela definição que o filósofo alemão Robert Alexy, na sua Teoria dos Direitos Fundamentais, lhe deu: Lei do Sopesamento. Segundo essa lei, a interferência em um princípio deve estar justificada pela importância da realização de outro. A aplicação desse subprincípio, então, resume-se em conferir peso aos princípios em jogo e verificar qual que deve prevalescer. Não se trata de uma operação matemática, haja vista que não se chega a uma resposta absoluta e única, mas de um sopesamento, à luz do caso concreto, entre o(s) princípio(s) que sofre(m) a interferência e o(s) princípio(s) a ser(em) concretizado(s), bem como entre o resultado dessa interferência e a situação de  não  interferência, para estabelecer  qual  o  preponderante.  Como bem explica Marcelo Lima Guerra:

Isso quer dizer que, numa discussão sobre ser ou não um dos princípios em conflito mais preponderante do que outro, um dos pontos a serem necessariamente enfrentados, como objeto desta discussão, é o grau de interferência que a realização de um valor causa no outro e, vice-versa, o grau de interferência sofrida pelo primeiro com a realização do segundo (mesmo que tal realização consista apenas na omissão em se realizar o primeiro, em nome da defesa do segundo).[67] (grifo no original)

Em outras palavras, na busca da verificação da proporcionalidade em sentido estrito deve-se: 1º) observar o “peso” em abstrato, teórico, de cada um dos princípios; 2º) avaliar a relevância deles na situação fática juridicamente relevante; 3º) sopesar para ver se a restrição a um dos princípios é justificada frente à realização de outro não só para o caso em si como para as conseqüências jurídicas, para os efeitos futuros. Pode ser que os princípios em jogo tenham o mesmo “peso” in abstracto, a mesma relevância in concreto, mas dificilmente o sopesar da grandeza dos efeitos de um em comparação ao outro não trará uma margem de escolha segura a qual se possa concluir como proporcional.[68]

Enfim, para saber se o meio é proporcional em sentido estrito é essencial responder ao seguinte questionamento: na ponderação entre o custo sofrido e o benefício obtido, é sustentável, juridicamente, sofrer esse custo para obter esse benefício?

Uma vez em mente a estrutura individualizada do princípio da proporcionalidade e estabelecidos os parâmetros dentro dos quais uma disposição normativa ou uma hermenêutica integrativa do ordenamento pode adjudicar-se proporcional, cumpre discorrer especificamente sobre o resultado da incidência do princípio na temática do presente trabalho: as astreintes nas obrigações de pagar quantia.

2.2 Meio Executivo Coercitivo Idôneo

Primeiramente, é preciso deixar clara a legitimidade da utilização de multas coercitivas, derivada do poder genérico constante do § 5º do art. 461 do CPC, que permite aos magistrados lançar mão de medidas que entenda necessárias na busca da efetivação da tutela específica ou da obtenção do resultado prático equivalente: a multa fixa, p. ex., não é prevista em lei, nem por isso não deixa de ter legitimidade processual.

Como se vê, a legitimidade das astreintes está intimamente ligada a sua idoneidade como instrumento processual, porquanto, se não fosse apta a coagir ao cumprimento da obrigação, legitimidade não lhe competiria.

Pois bem, numa leitura a contrario sensu do ensinamento de Luiz Guilherme Marinoni, técnica executiva inidônea é aquela que é incapaz de efetivamente responder ao direito material, verbis:

É que o processo, diante de determinada construção legal, pode não constituir técnica capaz de efetivamente responder ao direito material. Nesse caso, como é obvio, a técnica processual deve ser considerada inidônea à tutela dos direitos.[69]

Assim, para bem aquilatar a pertinência das astreintes como técnica executiva, cumpre-se questionar: a fixação de astreintes favorece, ainda que minimamente, a efetividade da prestação jurisdicional e, por consequência, a objetividade jurídica por meio dela buscada? A multa coercitiva nas obrigações pecuniárias são capazes de, em situações-limite, configurarem um adminículo capaz de impulsionar a obtenção da tutela pleiteada pela consolidação, na esfera jurídica do titular, do crédito?

Ora, é indiscutível que as astreintes são capazes de, in abstracto (como alhures demonstrado a análise da idoneidade dá-se em abstrato, isso é, em sede da mínima percepção teórica do resultado a que se propõe a medida sob análise), impulsionar a remoção da conduta omissiva do devedor, salvo, é claro, quando este for insolvente e/ou a obrigação for impossível, casos em que evidente a inutilidade de qualquer pressão ao adimplemento.[70]

Não há dúvida da idoneidade da multa coercitiva, porquanto apta a erigir um procedimento executivo sem óbices intransponíveis, um procedimento adequado à proteção e promoção do direito material, um procedimento garantidor da efetividade da prestação jurisdicional, resguardando a execução de um prolongamento inadmissível à realização do título executivo, sendo, portanto, meio útil, apropriado, adequado à finalidade a que se propõe. O Superior Tribunal de Justiça tem exatamente essa visão das astreintes, meio idôneo à proteção e promoção da tutela jurisdicional, principalmente no que refere a garantir a concretude das decisões judiciais, in verbis:

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. FIXAÇÃO DE MULTA DIÁRIA PARA O DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. POSSIBILIDADE. REVISÃO DO VALOR. SÚMULA 7/STJ.

1. É assente na jurisprudência desta Corte quanto à possibilidade da fixação da multa diária como medida garantidora da efetividade da determinação judicial, sendo que a análise da insurgência no que tange ao valor atribuído às astreintes implica em revolvimento dos fatos e circunstâncias da causa, o que encontra óbice na Súmula 7/STJ.

2. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no AI n.º 1018147-RJ – 4ª T. – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 20-08-2009 – DJe 31-08-2009)

2.3 Meio Executivo Coercitivo Necessário

Com a finalidade de verificar se a fixação de astreintes se revelam mecanismo processual adequado à tutela do direito do credor de obrigações pecuniária, é preciso antes saber se o procedimento constante na legislação, nos termos em que se encontra, é suficiente, isso porque de outra forma as multa coercitiva demonstrar-se-ia mecanismo excrescente e, portanto, mais gravoso, o que é vedado (CPC, art. 620)[71]. Por exemplo, nos casos em que for possível o desconto em folha ou renda periódica, não haverá motivo para aplicação da multa, porquanto esse desconto consignado mostra-se ser meio menos gravoso idôneo e igualmente eficaz.

Em termos gerais, isso é, tomando por base aquilo que geralmente ocorre, não é possível perceber-se falha no sistema, haja vista que as regras do “Cumprimento da Sentença” nos moldes que codificada atualmente transparecem uma aptidão de solucionar a lide em termos práticos. Ocorre que não está aqui tratando da normalidade, mas da presença de uma ameaça real extraordinária provinda da omissão de quem deveria agir mesmo depois da uma punição processual ao ato atentatório à dignidade da justiça (multa de 10% - CPC, art. 475-J), somada à demonstração in concreto de circunstâncias que ensejam o imediatismo dos valores buscados, quadro excepcional que demanda uma resposta estatal igualmente excepcional sob pena de se pôr a cobro o provimento jurisdicional, e essa resposta apresenta-se sob a denominação de astreintes:

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Quer tudo isso indicar: aferindo-se a ineficiência, no caso concreto, do binômio condenação-execução forçada, está o órgão jurisdicional autorizado, evidentemente motivando a sua decisão, a empregar mandamento para tutela das obrigações de pagar quantia, sendo-lhe possível, dessarte, ordenar sob pena de multa coercitiva (exercendo-se, assim, uma ‘coação atual’ sobre a vontade do demandado).[72]

Assim, mostrando-se o meio executivo de sub-rogação às obrigações de pagar quantia, qual seja, a expropriação, ainda que idôneo, inábil a proteger suficientemente a prestação jurisdicional, então cabível a aplicação da multa coercitiva, porquanto nessas circunstâncias transparecerá ser meio necessário, pois eficaz na realização do direito material, ainda que mais gravoso:

Poderá o autor suportar a demora decorrente da espera, pelos quinze dias previstos no art. 475-J, das providências para a penhora e avaliação de bem a ser expropriado, das impugnações que o réu poderá formular (ainda que mediante simples petições), das delongas dos sucessivos trâmites conducentes à adjudicação, à alienação por iniciativa particular ou à hasta pública? Os atos de sub-rogação são bem mais lerdos do que as técnicas inerentes às tutelas mandamental ou executiva.[73]

2.4 Meio Executivo Coercitivo Justificável

Nesse momento cumpre inquirir: o custo de, no caso concreto, sobrepujar-se o direito posto pela introdução de um meio não previsto – o que, segundo alguns, sacrificaria ou mitigaria a segurança jurídica enquanto previsibilidade das formas – se justifica frente à garantia de uma prestação jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva? A segurança jurídica, pela previsibilidade dos meios executivos, se justifica perante o esboroamento do direito fundamental à tutela jurisdicional pela ineficácia do título que se tornará, diante da inação do devedor, apenas um pedaço de papel, transformando uma obrigação concreta numa utopia? Em uma visão mais aprofundada, a ausência de norma regulamentadora é causa impediente da realização da tutela jurisdicional, em outras palavras, a manutenção de uma inação estatal sob o pálio da omissão legal se justifica quando essa inércia tem o potencial de retirar da tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva sua eficácia imediata decorrente da condição de direito fundamental (CRFB, art. 5º, § 1º)?[74]

Ora, o esvaziamento do processo civil pela ausência de um mecanismo capaz de garantir a realização da pretensão deduzida em juízo em determinadas situações-limite em que as ferramentas processuais se mostram insuficientes, nunca será justificado em nome da segurança jurídica, da previsibilidade, da vedação do arbítrio pela restrição da discricionariedade judicial, até porque não há segurança jurídica que se sustente frente à inadequação, inefetividade e morosidade da jurisdição pela ineficácia procedimental. Um processo que não garanta a obtenção do resultado prático é uma técnica carente de finalidade, é um meio de composição de litígios que não atenta para o fato gerador da lide, é um mundo jurídico desatrelado de sua origem fenomênica, enfim, é um “populismo jurídico” travestido de direito de ação, é um discurso vazio, porquanto sem repercussão, sem conseqüências.

O Estado, ao prestar a jurisdição, deve ter em conta o que ela representa em verdade: a confiança do cidadão na República, na legitimidade democrática e na imparcialidade e competência de um órgão especializado em aplicar as normas jurídicas constitucionalmente estatuídas. Assim, mais uma vez indaga-se: será que não pode o juiz, em nenhuma hipótese, aplicar multa coercitiva nas obrigações de pagar quantia? Será que a imprevisão legislativa deve ser vista como um obstáculo à efetividade da jurisdição quebrando, por consequência, a confiança do cidadão na capacidade do Estado de fazer valer os direitos?

É necessário um “impulso oficial” (CPC, art. 262) nesse ponto, para que seja suprida essa lacuna, complementação essa em total sintonia com a visão contemporânea, indiscutivelmente correta, de (re)leitura constitucional do arcabouço legislativo, pois sendo o Direito um inteiro harmônico e a Constituição a base e o limite da compreensão do ordenamento jurídico, nada melhor do que solucionar uma questão processual civil de ordem executiva à luz da proteção de um direito fundamental[75]. Somente dessa forma, atendendo aos fins socais e às exigências do bem comum, diretrizes aplicativas de toda a lei (LICC, art. 5º), máxime da Lei Maior, que o Direito estará, de fato, acompanhando a evolução dos fenômenos sociais.

É uma regra básica da interpretação que a lex superior derogat legi inferiori. Sendo assim, uma norma ordinária deve ceder diante de uma norma constitucional. Mas e quando a violação da constituição se dá por uma omissão no regramento infraconstitucional? Mesma lógica deve ser aplicada, contudo não para afastar a regra, porquanto inexistente, mas para determinar a colmatação dessa lacuna inconstitucional, seja no caso concreto, ex officio pelo julgador[76] ou em sede de mandado de injunção, seja num controle concentrado por Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO (conforme novel regulamentação instituída pela Lei n.º 12.063, de 2009).

Por óbvio que, permitidas as astreintes devem elas recair tanto nas execuções de títulos judiciais quanto nas extrajudiciais, assim como nas execuções contra a Fazenda Pública, até porque seria desigual que o Poder Público, quando no pólo passivo, ficasse resguardado em sua contumácia, tirando, indene, proveito de sua torpeza.

Seria plenamente justificável lançar-se mão desse meio coativo nas situações limite em que transparecesse a premência da obtenção dos valores reconhecidos judicialmente como devidos, pois, de outra forma, estar-se-ia, p. ex., violando o princípio da igualdade. Nem todos os casos serão iguais. É claro que, de regra, o credor tem outras fontes de renda, não está em estado falimentar. Contudo, e quando a realidade é desastrosa? Tratar situações substancialmente diferentes sob o manto da suposta perfeição normativa capaz de dar a resposta ágil e apropriada a quaisquer hipóteses fáticas é cometer injustiças!

O mestre Celso Antônio Bandeira de Mello explana que, para a verificação da isonomia de certa escolha, é preciso adentrar em três questões, as quais, transpostas para o presente trabalho, traduzem-se da seguinte forma: 1ª) aplicar astreintes às situações flagrantes em que o valor objeto da condenação mostra-se urgentemente necessário para subsistência do credor e/ou de sua família é um critério de discrímen válido, isso é, passível de ser objeto de discriminação?; 2ª) há um fundamento lógico, uma justificativa racional, para aplicar-se a multa coercitiva quando demonstrado o iminente dano grave ou de difícil reparação ao credor caso os valores a ele devidos não sejam adimplido rapidamente?; 3ª) esse fator de diferenciação está congraçado ao sistema normativo constitucional?[77]. Analisar-se-ão em conjunto as questões.

Inicialmente, cumpre esclarecer que o critério de diferenciação não pode ser muito específico, devendo residir na pessoa ou situação na qual a discriminação tem seu lugar, contudo de maneira que a garantia individual não se torne um privilégio. Pois bem, com isso em mente, questiona-se: será que é desarrazoado sustentar a aplicação de multa pecuniária coercitiva nas execuções de pagar quantia, ou a natureza da obrigação, pecuniária, não admitiria, em qualquer hipótese, incidência de um pagamento a mais como forma de impelir o adimplemento? Ainda que a resposta seja negativa à maioria das situações, uma vez comprovado que o pagamento a destempo restaria inútil, nesse caso vislumbrar-se-ia uma hipótese de fixação de multa coercitiva? Entende-se que sim.

Também é possível verificar uma violação do princípio da isonomia quando a verba de natureza alimentar stricto sensu, porquanto fundada em direito de família, os chamados alimentos assistenciais, detém mecanismo de multa coercitiva de natureza pessoal (§ 1º do art. 733 do CPC), enquanto que, mesmo não derivando de relação familiar, os valores que exsurgem como urgentes, tendo muitas vezes inclusive status constitucional de verba alimentar (CRFB, art. 100, § 1º-A), ficam desprovidos de qualquer técnica processual coercitiva.[78]

Deixar às obrigações de pagar quantia não alimentar apenas a expropriação (meio executivo direto) e, em sede de Cumprimento de Sentença, a multa sancionatória/punitiva do art. 475-J do CPC, é, por vezes, descurar do substrato constitucional inerente à prestação jurisdicional: a sua efetividade.

Ora, de que adiantará ao credor com as finanças em situação calamitosa esperar pelos trâmites do meio expropriatório. Resta claro que, seja quando da antecipação da tutela[79] ou na execução, há possibilidade de coagir o devedor, demonstrando que sua demora não lhe operará benefícios, mediante a aplicação das astreintes.

Mesmo para quem defende que o princípio da tipicidade dos meios executivos – que prega que o juiz não pode lançar mão de expediente não previsto na lei para realizar o conteúdo do título executivo – ainda baliza, de regra, a execução, princípio esse forjado sob as vestes de uma segurança jurídica radical, nos moldes do liberalismo clássico, avesso à mínima discricionariedade estatal na apreensão da realidade e formulação de uma resposta in concreto, concepção que não mais encontra eco na realidade dinâmica contemporânea, mais afeta à funcionalidade do que à perfeição formal da completude in abstrato do ordenamento jurídico[80], questiona-se: a restrição, o sacrifício, o gravame refletido e equilibrado ao princípio da tipicidade da execução justifica-se frente ao benefício da plena eficácia ao direito fundamental da prestação jurisdicional efetiva?

Ora, parece plenamente justificável que o custo da atenuação pontual da condição de numeros clausus atribuía aos meios executivos perde em importância frente ao contraponto do benefício à efetividade da tutela jurisdicional e a consequente manutenção e promoção da confiança do cidadão no Poder instituído e nos mecanismos de implementação de seus direitos, até porque, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello: “É puramente ideológico e sem nenhuma base jurídica o entendimento de que a ausência de lei definidora obsta à identificação do conceito e à invocação do correlato direito.”[81]

A omissão de previsão legal de multa coercitiva às obrigações de pagar quantia geram um desamparo injustificável à tutela de um direito que, embora reconhecido, tende, na ausência de norma impositiva, à obsolescência diante de trâmites processualísticos insuficientes: “Isso significa que a ausência de técnica processual adequada para certo caso conflitivo concreto representa hipótese de omissão que atenta contra o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional.”[82].

Claro que a fixação da multa só deve ocorrer após a citação, no caso de execução contra Fazenda Pública, ou o decurso do prazo de 15 dias do trânsito em julgado, no caso do cumprimento de sentença, e a inércia do réu solvente, pois não se justifica aplicar, de plano, uma coerção a alguém que ainda não teve a oportunidade de, espontaneamente, adimplir sua obrigação. É bom repisar que o réu inerte deve ser solvente, porquanto não tendo como pagar sua dívida (quer por estar na miséria ou endividado, mesmo que em fraude a credores ou fraude à execução), de nada adiantará aplicar-lhe multa, pelo contrário, nesse caso transparecerá apenas um injustificável agigantamento do montante exequendo, porquanto visando dar agilidade a um pagamento sabidamente obstaculizado pelo estado de insolvabilidade do devedor.

Guilherme Rizzo do Amaral tem posição diametralmente contrária à aplicação, enquanto não positivada, das astreintes nas execuções de obrigações de pagar quantia certa, pois, segundo ele:

Aplicar uma multa sem previsão legal não significa adequar o procedimento, mas sim ampliar poderes. E, o que é pior, ‘auto-ampliar’ poderes, dando azo à criação de um processo autoritário, onde o juiz define a extensão de sua força e de sua penetração na esfera jurídica das partes, ignorando o processo democrático de criação da lei processual pelo legislador. [...]. Não obstante o romantismo da ideia, o caso concreto não induz a consensos sobre os poderes a serem desempenhados, sendo evidente o risco de um processo ditatorial se deixada esta definição ao livre arbítrio do juiz. [...]. Ora, sugerir que, diante de tão clara e restrita sistemática legislativa, haja espaço para criações mais adequadas, afastando-se sem constrangimento todo o arcabouço legal – e a limitação de poderes! – previsto para tais hipóteses, é colocar em estado de manifesta insegurança os litigantes, e em descrédito a lei processual. [...]. Encaramos, assim, a ideia de aplicação das astreintes como técnica de tutela dos deveres de pagar quantia, como uma ótima sugestão, de lege ferenda. Esperamos que, futuramente, venha a ser acolhida, juntamente com outras idéias igualmente adequadas que busquem maior efetividade ao processo.[83] (grifo no original)

Que o ordenamento jurídico é lacunoso, pois é impossível ter uma previsão estrita/específica para cada fato presente ou futuro, ninguém duvida, mas ao mesmo tempo é fundamental compreender que também não tem lacunas, pois sua própria dinâmica hermenêutica permite a solução jurídica ao caso concreto. Assim, só existem lacunas se observado o ordenamento junto a um caso concreto, mas, tomado in abstracto, ele é completo. Dessarte, aguardar a iniciativa legislativa para só então dar uma resposta a uma demanda atual e concreta é descurar da completude do ordenamento enquanto sistema, vilipendiando a capacidade integradora do hermenêuta, verbis:

Principalmente para nós, que consideramos o sistema jurídico completável, em lugar de completo (e, por isso lacunoso), esse dogma da completude assume especial importância. Mesmo nas hipóteses onde não haja norma adequada ou nas circunstâncias em que ela inexiste, impera o dever de decidir. O ato da jurisdição tira regra nova para o caso concreto, criando norma individual e, assim, integra o sistema jurídico, quando ele assim necessite.[84]

Mais adiante em sua argumentação, Guilherme Rizzo Amaral, por mais paradoxal que seja, afirma a violação à igualdade, bem como a insuficiência procedimental que a não previsão das astreintes gera nas obrigações de pagar quantia, verbis:

Por outro lado, é inegável que o devedor, no Direito Processual brasileiro, recebe tratamento privilegiado, pois, mesmo quando possui plena capacidade de satisfazer a execução por quantia certa, tem a opção de utilizar-se de um sistema processual emperrado e burocrático para administrar suas dívidas, a baixíssimo custo (juros de 1% ao mês e correção monetária), ficando o credor muitas vezes à mercê do custo que o dinheiro encontra no mercado financeiro.”; “O que sobressai dos argumentos esposados é algo que o legislador havia percebido na Lei n.º 10.444/02, e que parece ter, aqui, esquecido: é o engessamento das técnicas de tutela que contribui para a injustiça e debilidade do processo, seja para o autor, seja para o réu. Predeterminar um programa processual, por meio do qual se espera a realização do direito material postulado, significa algemar o juiz e torná-lo mero espectador ou fiscalizador do funcionamento débil do aparato processual.[85] (grifo no original)

Não é possível concluir que um direito fundamental, porquanto não refletivo numa técnica processual específica, inexiste. É inaceitável que um direito fundamental de excelência num Estado de Direito não seja cumprido à exaustão, ainda mais quando os direitos materiais estão intrinsecamente ligados a ele, porquanto condicionados à sua realização[86]. O monopólio estatal da jurisdição, e a consequente vedação da autotutela, exige um Estado-juiz pró-ativo, ainda mais diante de flagrantes violações de direitos fundamentais, nesse sentido é mais do que apropriada a doutrina de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, verbis:

Mais ainda, a concepção dos direitos fundamentais como normas objetivas supremas do ordenamento jurídico tem uma importância capital, não só teórica, para as tarefas do Estado. Daí decorre que qualquer poder do Estado tem uma obrigação (negativa) de se abster de ingerências no âmbito protegido pelos direitos fundamentais, como também uma obrigação (positiva) de levara cabo tudo que sirva para a realização dos direitos fundamentais, inclusive quando não diga respeito a uma pretensão subjetiva dos cidadãos. Ao mesmo tempo, em razão do imperativo do monopólio da jurisdição e da proibição da autotutela, constitui dever do Estado, por meio do juiz, outorgar jurisdição e assim possibilitar a realizabilidade do direito subjetivo material.[87]

Como é que alguém com tamanha lucidez sobre os efeitos deletérios que um procedimento acanhado causa na efetividade do processo, na legitimidade da atuação estatal naquilo que se arroga a maior responsabilidade – elaboração e cumprimento das leis – e, consequentemente, na potencialidade de pacificação social, possa concluir que a aplicação, em situações bem definidas, de técnica processual adequada a conduzir ao remate do litígio deva ser vista como discricionariedade, mais, como arbitrariedade digna do mais autêntico regime ditatorial?

Pelo contrário, o esvaziamento da efetividade do processo e, portanto, da capacidade do Estado de fazer valer os seus pronunciamentos, esse sim é verdadeiro ágar-sangue para a futura implementação de regimes totalitários.

No contubérnio do mundo contemporâneo a visão iluminista dos direitos maximizados num Estado absenteísta não encontra esteio. Não é mais justificável que um ranço mórbido do absolutismo seja fundamento para a desmoralização do ente representativo da sociedade organizada: o Estado. O indivíduo até pode conceber-se enquanto “mar” de direitos, mas o cidadão, enquanto agente reivindicador da justiça e promotor da cidadania (fundamento da República Federativa do Brasil – CRFB, art. 1º, caput), tem deveres, dos quais pagar as suas dívidas é um deles. O Estado não pode, pela omissão de um dos seus poderes (Legislativo), se tornar fiel depositário e avalizador de sua própria ineficiência em cobrar dos cidadãos a observância das leis, razão pela qual, mais do que justificado, é curial, sob pena do desbaratamento do sistema, que o Judiciário tome as rédeas e, no caso concreto, busque, amparado na Constituição (CRFB, art. 5º, XXXV), um meio hábil a concretizar o direito que reconheceu, conduta essa que certamente não denota uma “agenda oculta” insidiosa.

O distanciamento do processo das vicissitudes do direito material e da realidade social é utopia saudosista que viola, em um sem número de vezes, a exigência de proteção jurídica. Não é salutar ao Estado Democrático de Direito, para dizer o mínimo, deixar para as calendas gregas a solução desse impasse casuístico de ineficiência do arcabouço processual diante da inércia voluntária e inescusável do devedor.

Não é mais possível, nos dias de hoje, uma pregação do processualismo científico, compreendendo o processo civil como mera técnica alheia aos valores em sua aplicação despreocupada e insensível à realidade social, até porque tal concepção revelar-se-ia inconstitucional face à ruptura entre o processo e a Constituição, esvaziando-lhe a eminente finalidade de proteção dos direitos e garantias constitucionais, substrato que dá suporte a própria existência do processo[88]. O jurisdicionado muito mais do que a forma quer o conteúdo, muito mais que ritualísticas, protocolos e burocracias maquiadores da realidade quer a perpetração da justiça, e não uma simples apreensão mitológica dessa num pacto medíocre do direito de ação correlato a uma ação estatal sem resultados. Nesse sentido é o alvitre de Cândido Rangel Dinamarco ao expor, já na década de noventa, qual era, ou deveria ser, a visão do processualista moderno, verbis:

Consciente dessas verdades que hoje temos por patentes, o processualista das últimas décadas tornou-se um crítico. Tomou consciência também da grande necessidade de optar por um método teleológico, em que os resultados valem mais que os conceitos e estruturas internas do sistema. E apercebeu-se de que o bom processo é somente aquele que seja capaz de oferecer justiça efetiva ao maior número possível de pessoas – universalizando-se tanto quanto possível para evitar ilegítimos resíduos não jurisdicionalizáveis e aprimorando-se internamente para que a ideia de ação não continue sobreposta à de tutela jurisdicional. O processualista moderno sabe que muito menos vale a formal satisfação do direito de ação do que a substancial ajuda que o sistema possa oferecer às pessoas.[89] (grifo no original)

Já se foi o tempo em que os princípios eram meras orientações, simples conselhos que o intérprete, querendo, lançava mão sem grandes preocupações de aplicá-los, realizá-los. Hoje são eles imperativos, comandos de necessária observância na medida das reais possibilidades jurídicas existentes, haja vista que enquanto autêntica expressão dos valores superiores que inspiraram a formação e organização do Estado, condicionam sua atuação em todos os níveis. Nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello, o princípio é um “mandamento nuclear do sistema”, definindo a “lógica e a racionalidade do sistema normativo”[90], razão pela qual externa, em magnífica apreensão de sua importância, que, verbis:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.[91] (grifou-se)

Sendo assim, permitir a violação do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (também conhecido como princípio da universalidade da prestação jurisdicional ou da ubiquidade), sob o argumento de que o silêncio do legislador quis dizer mais do que uma mera indesculpável inércia, é aniquilar a racionalidade do sistema. Ora, a parêmia do Ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit (“Quando a lei quis determinou; sobre o que não quis, guardou silêncio.”) deve ser aplicada com cautela, pois o imprevisto é um dos pilares do avanço legislativo, logo o silêncio da lei não significa sua negativa veemente à previsão do que nela não constou: “Do silêncio do texto não se deduz a sua inaplicabilidade, nem tampouco a supremacia forçada do princípio oposto.”[92].

Enfim, buscar sentido no vazio para justificar a mantença de um status quo procedimental aquém das necessidades práticas é escolha que certamente não está no leque de opções interpretativas do julgador, porquanto confere à lacuna legislativa significado incompatível com o princípio constitucional insculpido no inciso XXXV da CRFB. Na lição de Luigi Ferrajoli:

Por mucho que sean vagos y estén formulados en términos valorativos, los princípios constitucionales sirvem en todo caso para aumentar la certeza del derecho, ya que limitan el abanico de las posibles opciones interpretativas, obligando a los jueces a asociar a las leyes únicamente los significados normativos compatibles con aquéllos.[93]

A muito deixou de ser acolhida a célebre, contudo anacrônica, máxima do Fiat justitia, pereat mundus (“Faça-se justiça, ainda que o mundo pereça”), pois tomar a lei tal como posta e aplicá-la cegamente, ainda que ciente de sua excessividade ou insuficiência, é descurar do caráter finalístico do Direito, de sua necessidade de acompanhar a sociedade, início, meio e fim de sua existência: hoje vige outra máxima, a do ius est art boni et aequi (“O Direito é a arte do bom e do eqüitativo”). Uma jurisdição que não observa o ponto de chegada de seus provimentos, que não considera as variáveis incapacitantes do juízo proferido, seja por imprevisão ou previsão aquém da exigida, que faz ouvidos muitos aos princípios balizadores da moderna processualística constitucionalmente percebida, é uma não jurisdição.

A apreensão principiológica com vistas à solução do caso concreto pode ser o elemento causal de efeitos colaterais nas mãos do operador despreparado, levando a casuísmos desarrazoados. Contudo também pode, outrossim – e, via de regra, o é – ser o único mecanismo capaz de suprir eficazmente a processualística pela compreensão de seu leitmotiv: realização do direito material. A forma está a serviço do direito material, não podendo, dessarte, ela, ou a sua ausência, constituir empeço a sua realização.

Continuar fechando os olhos às injustiças que a ausência de regulação de astreintes nas obrigações de pagar quantia causa é reiterar, num mantra suicida, o brocardo Fiat iustitia, pereat mundus, concretizando, dessarte, a constatação de que Summum jus, summa injuria (“supremo direito, suprema injustiça”) e vilipendiando a observação de Carlos Maximiliano de que “[...] o Direito prevê e provê; logo não é indiferente à realidade. Faça-se justiça; porém salve-se o mundo, e o homem de bem que no mesmo se agita, labora e produz.”[94]

O fato de não haver previsão de multa coercitiva às obrigações de pagar quantia é um descuido inaceitável, contudo pior é deixar que essa lacuna legislativa esboroe o direito fundamental à tutela jurisdicional, porquanto nesse caso estar-se-á ofendendo a coerência sistemática do ordenamento jurídico regrado pela maximização dos ditames constitucionais. Enfim, estar-se-á negando efetividade à Constituição, negando-lhe sua força normativa[95]:

Sem o imperativo da efetividade, os direitos fundamentais seriam reduzidos a meras declarações políticas ou exortações morais, a uma retórica tão impressionante quanto vazia, com a pretensão de dar ares de civilidade a uma sociedade não civilizada. Sem efetividade o que se tem é ou uma Constituição nominal ou uma Constituição semântica.[96]

Essa visão pró-ativa do sistema não é nova. Sálvio de Figueiredo Teixeira já a professava desde a entrada em vigor da atual Constituição Federal, como se percebe da leitura do seguinte trecho de magnífica palestra ministrada em conferência realizada em 16-11-1991, verbis:

O Estado Democrático de Direito não se contenta mais com uma ação passiva. O Judiciário não mais é visto como mero Poder equidistante, mas como efetivo participante dos destinos da Nação e responsável pelo bem comum. Os direitos fundamentais sociais, ao contrário dos direitos fundamentais clássicos, exigem a atuação do Estado, proibindo-lhe a omissão. Essa nova postura repudia as normas constitucionais como meros preceitos programáticos, vendo-as sempre dotadas de eficácia em temas como dignidade humana, redução das desigualdades sociais, erradicação da miséria e da marginalização, valorização do trabalho e da livre iniciativa, defesa do meio ambiente e construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária. Foi-se o tempo do Judiciário dependente, encastelado e inerte. O povo, espoliado e desencantado, está a nele confiar e a reclamar sua efetiva atuação através dessa garantia democrática que é o processo, instrumento da jurisdição.[97]

A jurisdição é uma das mais fortes expressões da soberania estatal. Assim, não garantir a sua adequação, efetividade e tempestividade é também proteger de forma insuficiente um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CRFB, art. 1º, I). A soberania de um Estado é tão mais débil quanto maior é a sua incapacidade de fazer valer sua diretivas, porquanto de nada adianta uma miríade de direitos sem eco na jurisprudência, sendo, portanto, a efetividade da tutela desses direitos um direito fundamental de todo e qualquer direito, que deve ser buscada de forma radical: “[...] os órgãos estatais se encontram na obrigação de tudo fazer no sentido de realizar os direitos fundamentais.”[98]

Incontestável a assertiva de que em teoria tudo é muito bem urdido, mas na prática, hic sunt leones (“aqui estão os leões”). Mas quem disse que a tarefa do operador do Direito é fácil, de simples solução em todas as situações, quem disse que não existem hard cases. O discernimento do julgador é algo requerido com ênfase nesses casos, exigindo que não se restrinja à verificação compactada da processualística, devendo interpretar sistematicamente o Direito à luz dos princípios constitucionais, de forma a obter uma resposta satisfatória que garanta a efetivação do direito pleiteado. O processo civil contemporâneo, na visão do formalismo-valorativo (modelo processual que se entende ser o mais adequado à atual realidade), exige que o procedimento não seja mais algo estanque, contudo um instrumento dúctil capaz de moldar-se ao direito material objeto da lide, porquanto a padronização da forma, longe de servir a uma isonomia do tratamento estatal à postulação da parte, desconsidera as especificidades do caso concreto deduzido em juízo.[99]

O direito processual, por mais abstrato e genérico que possa parecer, não está infenso ao direito material. Cada vez mais as reformas aprovadas no texto processual (v.g. antecipação da tutela; cumprimento da sentença; juizados especiais; CPC, art. 285-A; CPC, art. 273, §§ 6º e 7º) demonstram uma ligação direta de adaptação do procedimento às especificidades do caso concreto, deixando à margem a velha compreensão de unidade procedimental. Hodiernamente vê-se o processo amoldando-se ao direito material e não mais uma tentativa no mais das vezes frustrada de impor a todas as situações o mesmo tratamento, a mesma tocada. O formalismo antolhado das legis actiones a muito se foi, não podendo mais o juiz fazer ouvidos moucos à realidade da lide apenas porque a codificação contemporânea, norteada pela constitucionalização do processo civil (releitura do processo civil pela introdução de valores constitucionais), ainda não foi tomada a termo nas obrigações de pagar quantia. É questão de tempo para vermos essa previsão, contudo, enquanto não chega, vale a preciosa lição do memorável Enrico Tullio Liebman: “Mas nenhuma audácia lógica pode ser condenada, quando sirva para justificar conclusão equitativa e praticamente satisfatória.”[100].

As astreintes são a principal técnica processual coercitiva ao cumprimento das decisões judiciais seja ela qual for: fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia. Deixar sua incidência passar ao largo das obrigações de pagar quantia apenas por sua imprevisão destoa da lógica jurídica, da razão de ser do instituto[101]. É lícito aguardar pacientemente a concretização dos prejuízos decorrentes do descumprimento de uma ordem judicial sob a égide de uma posterior apuração de perdas e danos apenas e exclusivamente por se tratar de uma determinação de pagar quantia?

Ora, se a França, país de quem essencialmente importamos as astreintes, já são elas aplicadas às obrigações de pagar quantia, porque não fazer o mesmo no Brasil? A cultura, o grau de desenvolvimento econômico, a maturidade política, o nível social, o que afinal impede o Brasil de seguir a França nessa empreitada? E enquanto não é legislada, por que não se pode realizá-la no plano jurisprudencial? Nossos magistrados são tacanhos, nossa democracia é tão incipiente e permeada de arbitrariedades a ponto de preferir-se o esvaziamento da finalidade prática da execução à aplicação, ainda que não expressamente regulada, mas materialmente prevista à luz da Constituição, das astreintes nas obrigações de pagar quantia?

Como se vê, a aplicação da multa coercitiva às obrigações de pagar quantia certa em situações-limite bem delineadas é, indiscutivelmente, solução de lege ferenda, mas, essencialmente, meio de realização do direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva, que não pode ficar relegado a uma futura normatização, exigindo, pois, sua imediata incidência jurisprudencial.

Ademais, a conformação dos procedimentos, onde as astreintes aplicadas às obrigações de pagar quantia são um belo exemplo, também se mostra medida justificável ao combater, em grande parte, uma das causas da crise do Judiciário: a legislação processual ineficiente. Juntamente com questões de legitimidade, gestão, mudanças culturais e atuações estatais flagrantemente inconstitucionais, uma legislação processual que não atente à simplicidade, dinamicidade, mas principalmente à efetividade, certamente está aquém das necessidades da sociedade contemporânea.[102]

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Sobre o autor
Leandro Barreto Bortowski

Técnico Judiciário no TRF da 4ª Região. Formado em Direito pela PUC-RS. Especialista em Processo Civil pela PUC-RS. Especialista em Penal e Processo Penal pelo IDC (Instituto de Desenvolvimento Cultural). Livro publicado: "O preço da liberdade: a extinção da punibilidade nos delitos econômicos à luz do princípio da proporcionalidade." Artigo publicado no saite Consultor Jurídico - CONJUR: "Fim da punição com pagamento de tributo estimula delito."

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORTOWSKI, Leandro Barreto. Astreintes nas obrigações de pagar quantia e o direito fundamental à tutela jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3383, 5 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22756. Acesso em: 28 mar. 2024.

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