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A personalidade jurídica dos embriões excedentários e a dignidade da pessoa humana

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13/10/2012 às 08:00
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2. O início da personalidade jurídica do embrião

“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio” (Immanuel Kant).

No capítulo inicial procurou-se introduzir o leitor no universo da RA e dos embriões excedentários a fim de permitir uma análise das questões jurídicas que envolvem o tema.

Surge então a pergunta: atualmente o homem está sendo tratado como sujeito (pessoa) ou como objeto (coisa)? As demais considerações casuísticas serão sempre detalhes menores, porque a reificação é o maior perigo que corre o homem. É preciso estar atento para o fato de que muitas das tecnologias desenvolvidas[61] se constituem em claras ameaças à sua individualidade. Não tratar o homem como coisa é um desafio para filósofos, médicos, religiosos, juristas e para todos aqueles que tenham desenvolvido um mínimo de consciência ética (SAUWN; HRYNIEWICZ, 2000, p. 51).

Qual tratamento jurídico, afinal, deve ser atribuído a este embrião humano, este conceptus, congelado em um tubo de ensaio? Quando começa a sua vida? A partir de que momento deve ter sua dignidade protegida? O direito deve tratá-lo como objeto passível de tutela pelo direito das coisas? Ou sua natureza humana faz com que seja considerado sujeito de direitos dotado de personalidade jurídica?

2.1.A Retomada Antropológica

Ao longo da história do pensamento da humanidade verificou-se que “os momentos de crise geram amplos debates antropológicos” (SAUWN; HRYNIEWICZ, 2000, p. 50). Sem destoar desta tendência, a revolução biotecnológica do fim do século XX e início do século XXI reforçou a presença da filosofia no debate jurídico ao trazer à tona discussões sobre a natureza humana.

O homem questionado na Antígona, o homem da Declaração dos Direitos Humanos e o homem de nossos dias é o mesmo? Teriam acontecido transformações tão radicais que já não se poderia mais falar de uma natureza humana igual em Antígona, no homem setecentista e no atual? [...] Desde o início dos debates sobre o jusnaturalismo na era moderna, com Francesco della Vittoria e a Escola de Direito Natural de Grotius (De iure beli ac pacis, 1625), passando pelos contratualistas e por Immanuel Kant (1729 -1804), talvez nunca mais se tenha discutido tanto sobre o homem quanto hoje no âmbito do direito (SAUWN; HRYNIEWICZ, 2000, p. 50-51).

Emerge, a partir do debate biotecnológico, a relação entre o direito positivo e o direito natural e, nesta esteira, a possibilidade ou não de uma bioética universalista.

Quando Antígona, a personagem de Sófocles, descumpriu o édito real sob a justificativa de que os homens não poderiam legislar sobre matéria relativa aos deuses estaria acobertada por uma norma de direito natural suprapositiva?

Para o médico hematologista Herbert Praxedes, extrai-se da peça de Sófocles uma premissa moral aplicável a todos os seres humanos: “nem tudo o que se pode fazer, deve ser feito. Assim, a moral é o denominador comum de todos os atos humanos” (HERBERT..., 2007, sp).

Poder-se ia pensar em uma moralidade bioética válida para todos os povos em todas as épocas? Ou, a contrário senso, “é dentro das comunidades morais particulares, e não na humanidade, que os homens vivem e encontram o significado da vida e a orientação moral concreta?” (ENGELHARDT citado por SILVA, 2006, p. 234).

Escrevendo sobre a aspiração de universalidade dos direitos humanos[62], Reinaldo Pereira e Silva, conclui que “o jusnaturalismo, como teoria da moral é um conjunto sistemático de argumentos que tenciona justificar racionalmente a aspiração de universalidade de certos conteúdos morais” (SILVA, 2006, p. 230).

É preciso alertar para os perigos decorrentes da hipótese contrária. Recusar sem mais nem menos a aspiração de universalidade dos preceitos bioéticos, sob a justificativa de respeitar as diferenças culturais[63], “não tem tido outro efeito prático senão o de legitimar os padrões e ações contrários aos direitos humanos” (SILVA, 2006, p. 234).

De fato, com as evidentes diversidades sócio-culturais existentes ente os povos da humanidade, pode parecer complicado pensar em direitos fundamentais e valores estanques e universais a serem preservados como meio para uma vida digna[64]. “Como estabelecer regras internacionais, como formalizar o direito internacional consuetudinário (a partir de costumes), se são tão distintas as culturas?” (ZISMAN, 2005, p. 19).

Em resposta ao questionamento formulado, Célia Rosenthal Zisman (2005, p. 19) propõe uma limitação à liberdade de manifestação cultural[65]:

Não é da natureza, da essência do homem, da violação da vida, da liberdade física ou psíquica, da honra, da privacidade e da igualdade. Não é da natureza do homem, que é ser racional, cultuar a dor e a tortura. Assim, é possível alcançar um rol de regras comuns a todas as sociedades. [...] O que se defende é que há direitos fundamentais incontestáveis a serem protegidos por um direito internacional, muito embora o subdesenvolvimento e as questões de ordem social, econômica e cultural não permitam que certas comunidades constatem a violação.

Sobre o tema, Sonia Paz (2003, p. 43-44) filia-se à corrente segundo a qual “há diversas bioéticas, porque a ética pressupõe uma moral e cada grupo social está apoiado em uma ideologia e em uma religião [...], expressa nos Códigos Deontológicos, nos costumes e nos procedimentos”.

O Estado Liberal instaurado com a Revolução Francesa consolidou o juspositivismo tal qual é conhecido. Justo seria aquilo previsto na lei, e todo o foco do jurista deveria estar voltado para a lei, e não para o homem.

Atualmente, entretanto, busca-se trazer novamente o homem para o centro do ordenamento jurídico, através de uma releitura não só dos métodos interpretativos da lei, como também do próprio papel do aplicador da legislação. Vivemos em uma época em que se busca, através do Estado Democrático de Direito, consagrar o justo em vez do bom. Entretanto, nossa sociedade está impregnada de valores liberais, reverenciando o formalismo em detrimento da própria busca da justiça (LORENTZ, 2002, p. 342).

Nos dizeres de Maria A. Minahim (2005, p. 45), “é bem verdade que as novas ameaças ao indivíduo, à sua liberdade e diversidade impuseram uma revisão profunda no mundo jurídico, que passou a centralizar suas atenções na dignidade da pessoa humana”.

Impossível não trazer à tona o raciocínio Kantiano. O imperativo categórico pode ser resumido em uma fórmula geral: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” (KANT, 2000, p 59).

A partir do imperativo categórico, Kant deduz outra conclusão, que muito interessa ao objetivo deste trabalho: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio” (KANT, 2000, p. 69, grifou-se).

O homem é um fim em si mesmo, não podendo jamais ser tratado como coisa ou meio para outro fim. “O princípio kantiano entende que a vida humana individual se constitui com a primeira célula que dá origem ao organismo” (PAZ, 2003, p. 63).

Considerando que o homem é um fim em si mesmo e que o termo ‘homem’ refere-se a todos os indivíduos da espécie humana, tem-se que neste grupo incluem-se os embriões excedentários, porquanto portadores de material genético estritamente humano. A partir deste raciocínio tem-se que, pelo princípio da igualdade, o mesmo tratamento deve ser dispensado para qualquer indivíduo da espécie humana, esteja ele em fase embrionária ou adulta. Poder-se-ia concluir, então, que a sua reificação[66] é contrária ao pensamento de Kant.

Por este raciocínio, inadmissíveis seriam as clonagens terapêuticas ou extrações de células-tronco que inviabilizassem o desenvolvimento embrionário[67].

Conforme a metafísica dos costumes, “a dignidade é o princípio moral que enuncia que a pessoa humana não deve nunca ser tratada apenas como um meio, mas como um fim em si mesma” (HERBERT..., 2007, sp).

Observe-se que o criticismo kantiano não se coaduna com a desconsideração do embrião excedendário como uma pessoa, pois isto seria autorizar o seu uso como meio para objetivos outros que não a realização de sua própria existência. Kant afirma, ainda, que todo ser racional “existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade” (KANT, 2000, p. 68).

Este raciocínio coincide com aquele tratamento atribuído ao embrião a partir de um ponto de vista antropológico. O principialismo personalista não se coaduna com a instrumentalização do embrião humano. “Trata-se de uma visão antropológica considerar o homem um fim absoluto. Logo, o embrião, sob a visão antropológica, é um fim absoluto e não deve ser coisificado, não deve ser tratado como meio” (LOUREIRO, 2006, p. 16-17).

Diante da dificuldade de valoração ontológica para determinar quando se passa a ter um ser humano, tornou-se diuturna a utilização do termo pré-embrião. Tratar-se-iam dos potenciais embriões, que por acordo tácito correspondem ao interregno dos primeiros 14 dias imediatamente posteriores à concepção.

José Roberto Goldim aduz que manter embriões em laboratório é algo tão recente e inédito que a humanidade ainda não absorveu esta idéia. Apesar de ser inegável que, biologicamente, um novo ser se forma quando se individualiza seu material genético, existem “pelo menos 19 formas médicas para decidir quando reconhecer esse embrião como uma pessoa” (in MUTO; NARLOCH, 2005, p. 57).

Na opinião de Anelise Tessaro (2002, p. 37), o centro do problema seria o seguinte: “Definir se o embrião é sujeito dos mesmos direitos de uma pessoa”[68].

Conforme assevera Paula de Souza Ferreira (2006, p.6) “não existe norma jurídica que estabeleça o início da vida humana, de modo que a grande questão para a ciência do direito resume-se em saber se, exatamente após a concepção, o ser gerado tem ou não o ‘status’ de ‘pessoa humana’ ”.

Lapidares as palavras de Ingo Wolfgan Sarlet, transcritas a seguir:

Da concepção jusnaturalista remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que – de forma direta ou indireta – consagra a idéia de dignidade da pessoa humana, justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão somente de sua condição biológica humana e independente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado (SARLET, 2005, p. 115).

Por hora, vale mencionar que, ao elencar o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, o legislador constituinte determinou que o centro e a razão de existir do ordenamento jurídico é o ser humano, pela simples razão de sua qualidade de pessoa humana.

2.2.A Aquisição da Personalidade Natural

Uma abordagem jurídica do tema dos embriões excedentários perpassa pela análise da personalidade natural, matéria das mais relevantes, pois toda a ordem jurídica visa regular os direitos e obrigações do homem enquanto ser social, ou seja, enquanto pessoa (SEMIÃO, 2000, p. 26).

Não haveria razão em existirem direitos subjetivos e deveres jurídicos se não houvesse pessoas para serem titulares de tais obrigações. Destarte, não há que se discutir que os titulares das relações jurídicas, ou seja, os sujeitos de direito são as pessoas e, portanto, não há direito sem sujeito (SEMIÃO, 2000, p. 23-24).

Há no direito brasileiro duas espécies de pessoas: a natural e a jurídica. Interessa ao presente trabalho a primeira delas, ou seja, a pessoa natural ou pessoa física que é aquela de existência visível. Todo ser humano com vida e suscetível a direitos e obrigações na ordem civil é pessoa natural (SEMIÃO, 2000, p. 25).

A expressão pessoa remonta ao grego prósopon. Teorias cristãs já definiram o termo como a “singularização da criação de Deus” (MINAHIM, 2005, p. 70).

A palavra pessoa tem relação com o vocábulo personalidade. Etimologicamente, as palavras pessoa e personalidade remontam ao vocábulo latino persona. Pesquisadores afirmam que seu significado original seria a máscara utilizada pelos atores do teatro romano. (SEMIÃO, 2000, p. 23).

Na Roma antiga, o nascimento com vida e a forma humana não eram suficientes para a aquisição da personalidade. Aos requisitos físicos somavam-se três outros: “de liberdade (status libertatis), cidadania (status civitatis) e de família (status familiae)” (AMARAL, F., 2002, p. 213).

Em que pese alguns juristas defenderem uma origem etrusca mais antiga, o fato é que hoje a palavra pessoa é dotada de outro significado.

Contemporaneamente, para a acepção filosófica, “pessoa é o ser humano no seu aspecto racional, dotado de ação através da vontade. É o indivíduo racional capaz de querer” (SEMIÃO, 2000, p. 24). Contudo, na concepção jurídica, “pessoa designa todo o ser capaz de ter direitos e obrigações. É o sujeito de direitos, no que difere da coisa, tida sempre como objeto de uma relação jurídica” (SEMIÃO, 2000, p. 24).

Reinaldo Pereira e Silva (2002, p. 143) acredita que a semântica atual da palavra pessoa tenha se originado da noção trinária cristã[69].

“A pessoa se caracteriza como um ser que existe por si mesmo (per se existere), e, assim, excede em dignidade todos os seres não pessoais” (SILVA, 2002, p. 143).

É imprescindível ter em mente que apenas a pessoa é dotada de personalidade – capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações - enquanto que a coisa nunca será sujeito de uma relação jurídica, mas tão somente seu objeto.

Considerando a vida humana como o bem jurídico primordial, em função do qual existem todos os demais, há “uma série de questões não respondidas e que são essenciais para fixar sua definição. O direito tutela a vida humana, mas o que é vida, quando começa, quando acaba? Seu significado equivale ao de pessoa?” (MINAHIM, 2005, p. 62).

Neste sentido, questiona-se: o embrião excedentário criogenado, embora não implantado no corpo da mulher, é pessoa? É sujeito de direitos ou deve receber o tratamento jurídico de coisa?

De acordo com Tania Salem (2007, sp), a multiplicidade de opiniões e respostas “quanto ao momento a partir do qual o embrião passa a importar em termos morais nada mais é do que uma decorrência da falta de consenso com respeito aos critérios que instauram a condição de Pessoa”.

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Observe-se que, a partir da nomenclatura utilizada por cada um dos autores, é possível identificar que status jurídico cada um atribui ao embrião humano criogenado[70]. “[...] O uso da expressão ‘período pré-embrionário’, em vez da expressão ‘período do embrião pré-implantatório’[71] revela uma demanda utilitarista, servindo de argumento para a desconsideração ética e jurídica da vida humana desde a concepção” (SILVA, 2002, p. 40-41).

O jogo de palavras e a construção de argumentos lógicos e articulados permitem a manipulação de idéias com o fim de conduzi-las à conclusão desejada. Se o produto da concepção pode ser identificado como embrião e também como pré-embrião, e este tem características distintas da espécie humana, o que o submete a uma categoria diferenciada, ele passa ‘do mundo dos humanos para os das coisas que os homens exploram’. Essa manipulação permite que não lhe sejam estendidos os princípios éticos e jurídicos que se aplicam à experimentação em humanos, resumindo-se a disciplina jurídica dessas práticas, basicamente, ao âmbito do direito patrimonial. Se, de outro lado, se aceita que o pré-embrião é um indivíduo desde a fecundação, por dispor de meios para ir-se desenvolvendo na realização de sua própria existência, ele merece tutela jurídica desde a fecundação (MINAHIM, 2005, p. 88-89).

Voltar-se-á a estas indagações mais adiante. Por ora, vale distinguir a personalidade intrinsecamente considerada dos direitos da personalidade. Enquanto a personalidade é “definida como sendo uma susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações jurídicas”, os direitos da personalidade constituem condição prévia para que a personalidade se manifeste. Em outras palavras, os direitos da personalidade são o fundamento e pressuposto da prerrogativa de ser dotado de direitos e obrigações jurídicas. (DE CUPIS apud CATÃO, 2004, p. 104).

Nas palavras de Rita Leite (2001, p. 156), os direitos da personalidade são os “comuns da existência, porque simples permissões dadas pela norma jurídica a cada pessoa de defender seus bens[72] [...]. São, assim, inerentes ao homem, são-lhe fundamentais eis que recaem sobre uma parte da própria esfera da personalidade”[73].

“O ser humano, detendo a qualidade de pessoa, é portador de dignidade ética e titular de direitos inatos, inalienáveis e imprescritíveis a que o Estado deve respeito, por serem os meios naturais para o reto cumprimento do próprio fim estatal” (SILVA, 2002, p. 191).

No mesmo sentido, manifestou-se o Papa João XXIII: “É fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza” (JOÃO XXIII apud SILVA, 2002, p. 192).

Observe-se que Alejandro Bolzan (1998, p. 28) atribui o início de uma nova vida humana ao momento em que ocorre a fusão do material genético. Porém, nomeia de embrião somente aquele indivíduo que ultrapassou o 14º dia de vida. A adoção desta nomenclatura (pré-embrião) indica a tentativa de justificar o tratamento do embrião excedentário como coisa.

A aparente contradição do autor argentino deve-se ao fato de ele atribuir momentos distintos ao início da vida humana e à aquisição da personalidade.

Há quem, neste sentido, diferencie ser humano de pessoa. A pessoa “é essencialmente filosófica e está vinculada a idéia de ser humano capaz de consciência de si mesmo e conseqüentemente, do mundo em que se insere” (MINAHIM, 2005. p. 89).

Para Ballone (2001, sp), ser humano e pessoa são termos diferentes. “Ser Humano é um termo mais genérico ou indeterminado, que diz respeito à espécie, à classificação, ao mundo zoológico. É por isso que nos sentimos mais à vontade em dizer Homem (ser humano) das Cavernas e não pessoa das cavernas” (BALLONE, 2001, sp).

Ao se falar em pessoa, pressupõe-se uma conjugação de valores axiológicos que são fatores externos ao ser humano consciente.

O termo pessoa relaciona-se com o mundo civilizado, “com a constelação dos valores morais, éticos e jurídicos próprios da civilização”. A partir da etimologia da palavra pessoa, verifica-se que se trata de um conceito que engloba o de ser humano. “Um refrão de origem jurídica, também nos lembra do homo plures, pessoa polimorfa, o ser humano capaz de desempenhar muitos papéis; um mesmo ser humano é empresário e delinqüente, é pai e metalúrgico” (BALLONE, 2001, sp).

Cabe, portanto, entender o conceito de Ser Humano ao lado do conceito de Pessoa. No direito romano antigo os escravos eram seres humanos (homens) mas não eram consideradas pessoas (patrícios). Os juristas romanos que usavam o conceito de Ser Humano o dissociavam do conceito de pessoas. O conceito de Pessoa aparecia como resultado de um processo vinculado à liberação, ao menos teórica, dos escravos (ou dos bárbaros) e não como um conceito zoológico, biológico classificatório e mental. Portanto, ao nos referirmos ao indivíduo da espécie humana merecedor da consideração ontológica e ética devemos dizer Pessoa, não apenas, Ser Humano, Homem, menos ainda Indivíduo e muito menos ainda Elemento, como no jargão policial (BALLONE, 2001, sp).

Cada embrião, ainda que fertilizado ex utero e armazenado em um tubo de ensaio “é portador de uma dimensão ontológica, biológica, psicológica e antropológica. É um ser individual em processo, o que o faz uma pessoa desde a sua concepção e que o possibilita ser um sujeito moral” (SOARES, 2007, sp).

Há diversas teorias, cada qual com argumentos de fontes diversas, que buscam explicar a partir de que instante há uma nova pessoa humana passível de tutela jurídica e, portanto, sujeito de direitos.

A pluralidade de teorias é criticada por parte da comunidade científica. Rodolfo Nunes afirmou em palestra proferida aos Ministros do STF:

‘não seria respeitoso com a dignidade humana utilizar classificações didáticas para remanejar o marco inicial da vida de um ser humano e, a partir daí, passar a executar lesões físicas à sua estrutura, com a justificativa de que abaixo do período arbitrado já não haveria vida quando todas as evidências mostram o contrário’. De acordo com ele, esta postura prejudica a formação do futuro médico ou de outros profissionais de saúde. ‘Essa aparente confusão atrapalha na transmissão do zelo pela vida humana’, disse (MESTRE..., 2007, sp).

O particionamento do desenvolvimento embrionário, independentemente do critério adotado, parte do princípio de que algo (para alguns a presença de rudimentos do sistema nervoso central, para outros a implantação na parede uterina, entre outros) é essencial para atribuir ao embrião o status de pessoa. Antes de se verificar tal condição, ter-se-ia uma coisa despersonificada, um objeto passível de direitos de propriedade. Apenas a partir da superveniência do termo adotado, o embrião passaria a ser uma pessoa.

Não se pode olvidar que a vida é um processo contínuo. Neste sentido, para que se obtenha uma compreensão desta continuidade pessoal é necessário ter em mente o seguinte: “não se pode confundir uma série sucessiva de maneiras de ser de um ser único com uma sucessão de seres diferentes” (UNAMUNO citado por SILVA, 2002, p. 148).

Uma abordagem exacerbadamente mecanicista deixa de demonstrar que, apesar de haver um reordenamento, uma mudança de espaço, os elementos ficam sempre os mesmos. Exemplificativamente, é “como quando alguém troca de lugar os móveis que estão em seu quarto, com a convicção de ter obtido, assim, um outro quarto”. Analogicamente, um argumento utilitarista aplicado à problemática dos excedentários significa que enquanto o embrião estiver in vitro, será uma ‘coisa’; a partir do momento em que for transportado para o interior do útero, mutar-se-á em pessoa.

Analisar-se-ão, a seguir, as principais teorias a respeito da aquisição da personalidade jurídica.

2.2.1. Teoria Concepcionista

Consagrada no direito francês e defendida no Brasil por Clóvis Bevilaqua e Teixeira de Freitas, a teoria concepcionista é ousada, pois atribui ao nascituro e ao embrião excedente personalidade jurídica desde a concepção (informação verbal[74]).

Aproveitando o ensejo, vale trazer à baila o texto do art. 2º do Código Civil de 2002, com atenção especial à sua parte final: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (FIÚZA, 2002, p. 4, grifou-se).

Autores como Anacleto de Oliveira Faria, André Franco Montoro, Limongi França, Francisco dos Santos Amaral, Bogotte Chorão e Silmara Chinelato são adeptos desta corrente. Para eles, “não é justo ou correto que os direitos do nascituro fiquem sempre condicionados ao nascimento com vida”. Tal restrição seria compreensível no que tange aos direitos patrimoniais, mas jamais em relação aos direitos fundamentais da personalidade (PUSSI, 2005, p. 97).

Como bem assevera Maria Helena Diniz (in FIÚZA, 2002, p.4-5), “ressalvar os direitos do nascituro ‘desde a concepção’, como hoje assegurado, é fórmula ampla que deve ser preservada acima de divergências doutrinárias”.

Sonia Paz (2003, p. 29) acompanha Diniz aduzindo que a partir da penetração do espermatozóide no óvulo, independente da fecundação ser ou não in vitro, há nova vida, pois surge um novo ser humano dotado de direitos e por eles protegido.

Paulo Bonavides, em prefácio ao livro Introdução ao Biodireito de Reinando Pereira e Silva (2002, p. 11), afirma que o concepto é “valor, é vida, é pessoa, e, como toda pessoa, titular de direitos, sujeito de dignidade, insuscetível de ser quebrantada, violentada ou aniquilada”.

Corroborando o entendimento supra, Marconi do Ó Catão (2004, p. 111, sem grifos no original) aduz que desde a concepção, o ser humano passa por diversos processos (gestação, nascimento, crescimento, maturidade, envelhecimento e morte). “Assim, para que a personalidade humana seja tutelada, o homem deverá ser considerado em todas as suas fases evolutivas”.

Apesar do art. 2º do código civil prever que a personalidade civil do homem inicia apenas a partir do nascimento com vida[75], desde a fecundação o concepto tem direito à vida, à integridade física, a alimentos, a acompanhamento médico, a um curador que zele pelos seus interesses se houver incapacidade dos genitores, a ser reconhecido como filho, de receber herança, de receber doação, entre outros (DINIZ, M., 2004, p. 7-8).

Poder-se-ia até mesmo afirmar que, na vida intra-uterina, tem o nascituro, e, na vida extra-uterina, tem o embrião personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos, ou melhor, aos da personalidade, visto ter a pessoa carga genética diferenciada desde a concepção, seja ela in vivo ou in vitro (Recomendação n. 1.046/89, n.7, do Conselho da Europa; Pacto de São José da Costa Rica, art. 4º, I) (DINIZ, M., 2004, p.8).

Ainda que a lei não confira ao nascituro o status de pessoa, trata de resguardar seus direitos futuros. Não é apenas o recém-nascido que é sujeito de proteção legal. Ao não nascido deve-se estender determinada tutela jurídica, pois “aquele que é apenas uma esperança de nascimento tem a proteção de seus eventuais direitos civis” (FRANÇA, 2004, p. 250).

Não é outra coisa o que o Código Civil faz ao presumir concebido na constância do casamento os embriões que se enquadrem nas hipóteses dos incisos III, IV e V do art. 1.597. A lei civil brasileira estendeu seus braços sobre o não nascido, ainda que não implantado no útero materno, mas apenas no que tange ao aspecto da presunção de filiação. “Ideal seria que também tivesse constado na Parte Geral da legislação civil, ao menos, uma presunção de início da vida humana ou, até mesmo, uma expressa proteção à vida presente nos embriões in vitro” (FERREIRA, 2006, p. 6).

Neste norte, “já se preconiza em algumas legislações civis do mundo, uma personalidade antecipada do nascituro; seu nascimento apenas aperfeiçoaria o instituto da personalidade civil” (FRANÇA, 2004, p. 248).

Sonia Paz (2003, p. 64) acredita ser necessária a criação de uma lei específica que defina, reconheça e proteja “o embrião pré-implantatório existente nas clínicas de RHA, bem como preveja o destino dos embriões excedentes de uma fecundação in vitro – inclusive com garantias em normas penais”.

A Pontifícia Academia para a Vida promoveu um congresso internacional sobre o tema: "O embrião humano na fase do pré-implante. Aspectos científicos e considerações bioéticas". As conclusões finais do encontro foram divulgadas à sociedade civil através da internet[76].

A teoria concepcionista pode ser encarada sob duas vertentes, as quais serão abordadas no tópico a seguir.

2.2.1.1. Teorias da Singamia e da Cariogamia

Pode-se dizer que as duas teorias tratadas neste item são espécies da teoria concepcionista.

“A singamia, também denominada anfimixia, é o evento que corresponde à união dos gametas masculino e feminino. A cariogamia, evento sucessivo, corresponde à fusão dos cariogametas, isto é, os pró-núcleos masculino e feminino” (SILVA, 2002, p. 84).

Conforme verificado no Capítulo 1, há quem diga que fertilização e concepção são institutos distintos. Aquela precede esta. Entre uma e outra pode haver um lapso temporal de 12 (doze)[77] a 20 (vinte) horas[78].

“Para a teoria da singamia, antes mesmo da cariogamia, uma séria de reações em cadeia garante o que se pode denominar de processo de individualização/personalização do homem” (SILVA, 2002, p. 85).

Sobre a fecundação, interessante transcrever trecho da doutrina de Regina Beatriz Tavares da Silva (in FIÚZA, 2002, p. 1.597): “[...] A palavra ‘fecundação’ vem do latim – fecundatio, proveniente do verbo fecundare, que significa ‘fertilizar’ ”. Logo, a fecundação representa a fertilização do óvulo pelo esperma. Por sua vez, a palavra inseminação “tem origem no verbo inseminare, composto por in – dentro e sêmen – semente, de modo que significa a colocação do sêmen ou do óvulo fecundado na mulher”.

Contrapondo a teoria da singamia tem-se a teoria cariogâmica. O momento da fusão dos pró-núcleos dos gametas masculino e feminino evidencia a cariogamia. Assim, os adeptos da teoria cariogâmica atribuem um aspecto mais restrito ao termo concepção.

Para os cariogâmicos há, portanto, um lapso temporal de algumas horas (após o encontro dos gametas e antes da fusão de seu material genético) em que não se atribui personalidade ao embrião.

A teoria da singamia distingue-se da teoria da cariogamia na medida em que admite o primórdio da individualidade humana antes da concepção, isto é, no exato momento da fertilização, que ocorre quando apenas um, de aproximadamente duzentos a seiscentos milhões de espermatozóides liberados na ejaculação, consegue atravessar a zona pelúcida do óvulo, após passar através da corona radiata, constituída por camadas de células foliculares que igualmente circundam o óvulo (SILVA, 2002, p. 85).

Assim, desde o primeiro impulso vital que dá início a uma série de sucessivas reações que resultarão em uma criança pode-se falar em sujeito de direitos pela teoria singâmica.

2.2.2. Teoria do Pré-embrião

Quando se fala em RHA, trata-se de utilizar certas técnicas sobre um ser vivo que, segundo alguns, merece respeito à sua dignidade desde o princípio e segundo outros, é apenas um objeto passível de tutela pelo direito das coisas.

A comissão Warnock, formada por especialistas britânicos, reuniu-se entre 1982 e 1984 e deu publicidade ao termo pré-embrião.

No relatório Warnock, publicado em 1984 no Reino Unido para esclarecer as questões sobre reprodução e embriologia, existe a proposição de que podem ser feitas pesquisas sem restrição até o 14º dia, desde que os pré-embriões utilizados sejam destruídos ao final do experimento. Esta proposta contraria todas as normas e diretrizes de pesquisa em seres humanos, desde o Código de Nuremberg[79], que propõem o impedimento de experimentos cujo desfecho possível seja a morte. Vale lembrar que foi o Relatório Warnock que criou o termo pré-embrião para designar este primeiro período de desenvolvimento embrionário. Foi uma alternativa para a discussão sobre a possibilidade de utilizar ou não embriões em pesquisas. Como não houve consenso, criaram um novo termo que não gerava as mesmas resistências (GOLDIM, 2001, sp).

É preciso considerar que a adoção do termo ‘pré-embrião’ indica uma desconsideração do embrião extra-uterino como pessoa. O fracionamento do desenvolvimento do embrião em etapas estanques é deveras temerário, porquanto se trata de um processo que se desenvolve continuamente.

Minahim (2005, p. 85) relata que a ideologia do extermínio adota um mecanismo de desumanização como forma de afastar eventuais resistências. A partir do pensamento de Bobbio, a autora menciona uma tendência de animalização do ser humano, através de maus-tratos e degradação física, de forma a reduzir o homem a algo sub-humano capaz de causar repulsa. “Assim ocorreu com os judeus que estavam doentes, fracos, com parasitas, sem acesso às mínimas condições de higiene e cuja desumanização facilitava o propósito nazista”. Fenômeno equivalente se deu com a população nativa das Américas quando da conquista pelos ibéricos. Os “índios não eram considerados homens, em um processo que Domenico Losurdo chama de desespecificação”.

Processo semelhante ocorre quando se procura elencar justificativas para que o embrião fecundado ex utero, em seus primeiros estágios de desenvolvimento, não seja considerado membro da espécie humana.

Dom Elio Sgreccia[80] (2007, sp), narra a seguinte situação:

Lembro-me de que há alguns anos, numa discussão no comitê nacional de bioética italiano, alguém quis fazer distinção entre embrião e pré-embrião. O pré-embrião seria o embrião antes de se instalar no corpo da mulher, antes de 14 dias, segundo o que foi sugerido pela comissão inglesa. E me lembro de que alguns membros do comitê disseram: ‘Tragam-nos os manuais de medicina usados nas faculdades do mundo inteiro e encontrem um em que se fale de pré-embrião, no qual se diga que, desde a concepção até o nascimento, não é o mesmo sujeito que se desenvolve’. No entanto, neste momento, há quem queira impor essa opção feita pela Comissão Warnock, da Inglaterra, uma escola utilitarista, como se costuma dizer. Essa Comissão diz claramente que não é possível fazer uma distinção entre o momento da fecundação e o resto da vida procriada, mas, mesmo assim, propõe que até o 14º dia o embrião seja considerado de valor inferior ao embrião com mais de 14 dias, e se chame pré-embrião. Quais são as razões dessa discriminação dos primeiros 14 dias? (SGRECCIA, 2007, sp).

O questionamento levantado pelo bispo pode ser respondido de três maneiras. As três respostas representam os três principais argumentos utilitaristas de quem quer justificar a utilização dos embriões em estado pré implantatório para pesquisas ou descarte. Nenhuma das hipóteses, contudo, justifica-se do ponto de vista racional. “Essas três razões são razões instrumentais. O próprio relatório da Comissão Warnock diz isso, ao explicitar que quer favorecer a pesquisa com embriões, dando ao cientista a liberdade de manipulá-los” (SGRECCIA, 2007, sp).

Cada uma das justificativas merece ser tratada em tópico específico, o que se fará a seguir.

2.2.2.1. Nidação

Atribuir ao embrião extra-uterino o título de pré-embrião equivale a desclassificá-lo de sua qualidade humana. Estabelece-se um marco divisório entre a condição de animalidade e humanidade, qual seja, a nidação. Antes dela, não há que se falar em proteção jurídica. Materializa-se, pois, a ‘coisificação’ do embrião em estado pré-implantatório.

Alguns dizem que quando o embrião ainda não foi implantado no útero da mulher, e portanto não está sendo alimentado pela mãe, não há certeza de que possa prosseguir em seu desenvolvimento. É claro que uma criança recém-nascida que não é alimentada pela mãe morre. Mas não é a alimentação que produz a criança, portanto não é a implantação que faz do embrião um ser humano. A implantação faz com que o embrião cresça e se desenvolva. Nos primeiros dias, o embrião se alimenta daquilo que encontra no óvulo fecundado, e depois de implantado é alimentado pelo corpo da mulher. Mas já está ativo, já existe (SGRECCIA, 2007, sp).

Joaquim Lorentz (2002, p. 337-338) chama atenção para o fato de que a medicina brasileira adota a nidação como marco inicial da vida humana, pois “o embrião fecundado em laboratório morre se não for implantado no útero da mulher”.

Em que pese o art. 2º do Código Civil de 2002 por a salvo os direitos “desde a concepção”, em sua parte final menciona o termo “nascituro”. Há quem defenda que o embrião em estado pré-implantatório – antes de ocorrida a nidação – não é nascituro e, portanto, não estaria protegido pelo mencionado dispositivo.

2.2.2.2. Linha Primitiva

Por volta de quatorze dias após a fecundação inicia-se a instalação do sulco primitivo, ou seja, rudimentos do sistema nervoso central.

Alguns sistemas jurídicos, como o inglês, negam a existência de vida até este momento e, por conseqüência, tratam o produto da concepção, nas primeiras duas semanas, como coisa suscetível da disciplina jurídica típica das relações de propriedade, posse e descarte (MINAHIM, 2005, p.15).

Em outro norte, há quem diga que antes dos 14 dias ainda não existem sinais do que virá a ser o cérebro. Em não havendo fios neurológicos, não há que se falar em cérebro[81] (SGRECCIA, 2007, sp).

A idéia de que é preciso haver atividade neural para se caracterizar a vida humana parte do princípio de que é necessário adotar o mesmo critério para aferição do início e fim da vida. “Trata-se, em última análise, da aplicação do critério científico de morte, em sentido inverso” (LORENTZ, 2002, p. 339).

No mesmo sentido, tem-se:

A definição sobre a vida também pode ser buscada pelo seu reverso – a morte. Até meados do século passado, a medicina informava que a morte acontecia quando uma pessoa parava de respirar ou quando seu coração parava de bater. Hoje, com os avanços científicos a medicina criou o conceito de ‘morte encefálica’, assim definido o momento em que o cérebro deixa de funcionar. Sob o novo conceito, a morte pode ser decretada quando o coração ainda bate – e assim, pragmaticamente, é possível retirar os órgãos para fins de transplante. Diante disso, se a vida acaba quando o cérebro pára, é lícito supor que ela só começa quando o cérebro se forma. É o pensamento de uma corrente expressiva de cientistas, principalmente os especialistas em neurociência, para os quais a vida começa junto com a formação das primeiras terminações nervosas, coisa que só ocorre por volta da segunda semana de gestação (ESCOSTEGUY; BRITO, 2007, p. 57).

As maiores críticas à teoria do tubo neural dizem respeito à sua indefinição temporal.

Eleger a formação do tubo neural como o instante inicial de humanidade é algo passível de diversos questionamentos. Inicialmente, porque não se sabe exatamente qual a razão do décimo quarto[82] dia ter sido eleito como marco divisório – e não outro como o décimo oitavo, quando começa a movimentação celular para formar a placa neural, por exemplo – (MINAHIM, 2005, p. 84).

A partir da formação da linha primitiva, então, o embrião iniciaria sua “trajetória para se tornar feto, assemelhando-se a um bebê. Assim, o embrião humano só faria parte da espécie humana a partir do momento em que seu aspecto estrutural apresentasse caracteres morfológicos e anatômicos de seu fenótipo” (MINAHIM, 2005, p. 84).

Novamente, a continuidade do processo de desenvolvimento do embrião impede que se determine com exatidão o instante (ou dia aproximado) em que há, de fato, atividade neurológica no embrião[83].

Aspecto tão importante para a vida de um indivíduo, quanto a definição do momento a partir do qual ele passa a ser sujeito de direitos, não pode ser alvo de indefinições conceituais generalizadas.

2.2.2.3. Indivisibilidade

Até o final da segunda semana de gestação, o embrião ainda é dotado da capacidade de se dividir em dois ou mais, dando origem a gêmeos idênticos. Até este ponto, não estaria definida a individualidade do embrião, porquanto passível de originar dois bebês distintos.

“É essa a idéia que justifica o uso da pílula do dia seguinte e contraceptivos administrados nas duas primeiras semanas de gravidez” (MUTO; NARLOCH, 2005, p. 59).

Se o embrião, ainda depois de implantado, pode vir a dividir-se em dois, não há, ainda, absoluta certeza sobre sua identidade[84] (SGRECCIA, 2007, sp).

Contudo, a individualidade do ser humano é associada ao conceito de potencialidade. Já o zigoto é dotado de potencialidade de tornar-se um feto, uma criança, um adulto. “Por isso, nega-se sua distinção do embrião, reclamando-se que a elaboração de um estatuto alcance o produto da concepção humana em qualquer fase a partir da fecundação” (MINAHIM, 2005, p. 86).

Nesta linha de raciocínio, não seriam a forma humana, a presença de um ou outro órgão, ou o local onde se encontra, fundamentais para determinar a natureza do embrião. O que importa é não apenas a potencialidade dele dar origem a um ser, posto que ele em si próprio já o é.

2.2.3. Teoria da Gestação ou da Viabilidade

A gestação é um processo complexo, composto por diversas etapas nem sempre bem definidas. Na medida em que o embrião se torna um feto e vai desenvolvendo características humanas, mais próximo ele estará de ser considerado um indivíduo, um sujeito de direitos dotado de personalidade.

A teoria da gestação consagrou-se historicamente a partir do caso Roe versus Wade, decidido em 22 de janeiro de 1973 pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Na oportunidade, declarou-se inconstitucional uma lei do Estado do Texas que permitia, de maneira ampla, o abortamento (SILVA, 2002, p. 83).

Fundada na tutela da intimidade (privacy), a decisão suprema reconheceu à mãe o direito incondicional de optar entre o abortamento e a gestação nos primeiros três meses de gestação, posto que resguardado o critério da saúde materna, também para efeito de abortamento, até o sexto mês. Nesse contexto, a preocupação com a individualidade do concepto, autorizando a intervenção estatal para a sua tutela, somente se admitiu após os seis meses de gestação, com a justificativa do conceito de ‘viabilidade’, pois, desde então, ‘supõe-se que o feto tenha a capacidade de levar um vida significativa fora do útero materno’ (SILVA, 2002, p. 83, grifou-se).

Os adeptos da teoria gestacional defendem que “a individualidade humana se firma gradualmente, relacionando a sua completude ao tempo gestacional”. O sistema nervoso central unificante, a forma humana e capacidade de sentir dor dão as atividades e características que, somadas, atribuem ao feto o status de pessoa (SILVA, 2002, 82-84).

O critério fundamental, portanto, seria a possibilidade do feto em formação sobreviver extra-uterninamente. “A natureza humana do concebido e não-nascido é outorgada somente àqueles que alcancem maturidade suficiente para viver fora do útero” (LORENTZ, 2002, p. 339).

A capacidade de ter uma sobrevida independente do útero materno, o que se dá em torno da 24ª semana, serve de critério para algumas legislações – como a norte americana[85] – no que tange ao aborto (SALEM, 2007, sp).

A viabilidade extra uterina é adotada pelo Comitê de Ética Francês como “marco distintivo entre a ‘pessoa humana potencial’ e a ‘pessoa humana tout court’ ” (SALEM, 2007, sp).

Trata-se de uma visão ecológica em que o fator determinante para o início da vida é a capacidade de sobreviver fora do útero. “Médicos consideram que um bebê prematuro só se mantém vivo se tiver pulmões prontos, o que acontece entre a 20ª e a 24ª semana de gravidez” (MUTO; NARLOCH, 2005, p. 59).

Por óbvio, o grande problema desta teoria reside na indeterminação dos momentos aquisitivos de cada característica, da potencialidade de sobrevida extra-uterina e, sobretudo, na recusa em atribuir ao ser humano uma individualidade baseada em sua própria essência humana.

2.2.4. Teoria da Personalidade Condicional

Para esta teoria, o nascituro teria uma personalidade jurídica condicionada ao nascimento com vida. É uma teoria intermediária que não é tão ousada quanto a concepcionista (informação verbal[86]).

Tereza Rodrigues e Renato Oliveira (2007, p. 13) citam Rizzardo, de acordo com o qual: “reconhece-se a existência do ser humano a partir da concepção. A personalidade é condicional, dependente do nascimento com vida”.

Esta corrente aponta o concepto e o nascituro como titulares de um direito sob condição suspensiva, sendo que o evento futuro e incerto a que se subordina a aquisição da personalidade é o nascimento com vida (SARAIVA apud PUSSI, 2005, p. 94-95).

Assim como na teoria concepcionista, com a qual muitas vezes é confundida, a teoria da personalidade condicional “também sustenta o que o início da personalidade se verifica a partir da concepção, embora sob condição do nascimento com vida” (SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 83).

Em linha gerais, a corrente da personalidade condicional defende que, uma vez verificada a condição do nascimento com vida, reconhece-se a personalidade do concepto desde o momento da união dos pró-núcleos.

2.2.5. Teoria Natalista

Conforme esta teoria, nem o nascituro nem o embrião em estado pré-implantatório são pessoas, pois a personalidade só é adquirida com o nascimento com vida (informação verbal[87]).

Reinaldo Pereira e Silva, em sua Introdução ao Biodireito (2002, p. 82), aduz que “a teoria da natalidade é expressão de certa doutrina romana, segundo a qual o concepto, nas entranhas maternas, não possui individualidade alguma, sendo apenas uma parte da mulher (partus enim antequam edatur, mullieris portio est vel viscerum)”.

A adoção da teoria natalista pressupõe a equiparação dos zigotos, embriões[88] e fetos a coisas ou bens, sobre os quais seus “donos” podem exercer os direitos inerentes à posse e à propriedade.

São adeptos desta teoria: Silvio Rodrigues, Silvio Venosa e E. Espínola (informação verbal[89]), entre outros.

H. T. Engelhardt Jr., por exemplo, superdimensiona os direitos dos pais, em detrimento dos do concepto. Segundo o autor, “aqueles que produziram um zigoto, um embrião ou um feto têm o direito primordial de determinar efetivamente o seu uso. Em geral, isto compete ao pai e a mãe que o conceberam [...]. Eles o produziram, eles o fizeram, é deles” (citado por SILVA, 2002, p. 83).

De acordo com o direito civil, o estado de pessoa natural e, portanto, a personalidade, vigem no interregno entre o nascimento e a morte. Dispõe o art. 2º do Código Civil de 2002: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; [...]” (FIÚZA, 2002, p. 4).

É preciso considerar que o ato do nascimento é “somente mais um ‘passo na continuidade vital que começa com a concepção e se conclui com a morte’. [...] Neste sentido, a vida humana é uma busca permanente pelo perfazimento” (SILVA, 2002, p. 8-49).

Aparentemente, a teoria natalista foi a adotada pelo Código Civil de 2002. Contudo, em vários pontos há concessões à teoria concepcionista conforme ver-se-á adiante.

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Sobre a autora
Gabriela Lucena Andreazza

Advogada, professora de Direito Notarial e Registral.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDREAZZA, Gabriela Lucena. A personalidade jurídica dos embriões excedentários e a dignidade da pessoa humana . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3391, 13 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22778. Acesso em: 22 nov. 2024.

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