No dia 28 de setembro de 2012, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei n. 12.720, de 27 de setembro de 2012, que “dispõe sobre o crime de extermínio de seres humanos; altera o Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências”. Conforme dispõe seu artigo 1º, “esta Lei altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para dispor sobre os crimes praticados por grupos de extermínio ou milícias privadas”.
Na última década, especialmente na Capital do Estado do Rio de Janeiro, diversos grupos de criminosos armados passaram a cobrar de moradores de comunidades carentes, valores expressos em moeda corrente, como contrapartida por serviços prestados, e por assegurarem “a ordem” ou “a segurança”, naqueles locais. Estas quadrilhas foram popularmente denominadas como “milícias”, uma alusão aos seus membros, pois eram compostas essencialmente por policiais civis e militares. Em um primeiro momento se dispuseram a “expulsar” traficantes e outros criminosos que atuavam naquelas comunidades carentes, conferindo aos seus moradores uma “falsa sensação de segurança”.
Sucede que, nas comunidades onde se instalaram, os chamados “milicianos” estabeleceram normas informais de convívio social, e castigos perversos aos seus transgressores. No fundo, as ações destes “milicianos” são animadas pela ganância na obtenção de lucros ilícitos. Estas quadrilhas passaram a cobrar toda sorte de “taxas”, como a participação nos lucros de negócios ilegais, transmissão irregular de sinal de televisão fechada, exploração de transporte clandestino, entre outras.
Diante deste cenário, ainda presente na Capital do Estado do Rio de Janeiro, e que tende a ser replicado em outras grandes cidades do país, a nova lei penal teve como principal escopo criar o crime de “constituição de milícia privada”, acrescentando o artigo 288-A, no Título IX (“Dos crimes contra a paz pública”), do Código Penal, nos seguintes moldes:
“Constituição de milícia privada
Art. 288-A. Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos”.
A objetividade jurídica tutelada pela nova norma penal incriminadora é a paz pública, e em especial a segurança pública, bem jurídico elevado à condição de direito fundamental do cidadão (artigo 5º, “caput”, da Constituição da República Federativa do Brasil). A “paz pública”, espécie do gênero “ordem pública”, recebeu tutela em seu aspecto subjetivo. Conforme lecionava NELSON HUNGRIA: “o termo 'paz pública', é aqui empregado em seu sentido subjetivo, isto é, com o sentimento coletivo de paz que a ordem jurídica assegura” (Comentários ao Código Penal, 1959, v. IX, p. 163).
De acordo com a descrição prevista no artigo 288-A, do Código Penal, a conduta típica pode ser praticada por qualquer pessoa, vez que o tipo penal não exige qualidade especial do sujeito ativo (“crime comum”). Além disso, trata-se de crime coletivo ou plurissubjetivo, considerando que seria ilógico pensar em “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão” compostos por uma única pessoa.
Por outro lado, a nova figura típica é classificada como um “crime vago”, porquanto o sujeito passivo, titular do bem jurídico agredido pela prática da conduta delitiva, corresponde à “coletividade” (número indeterminado de pessoas), ou seja, ente desprovido de personalidade jurídica.
Trata-se de um tipo misto alternativo, de conteúdo múltiplo ou variado, pelo que coexistem cinco núcleos ou verbos: (i) constituir (dar existência, criar, estabelecer, formar); (ii) organizar (dispor, pôr em ordem); (iii) integrar (tornar-se parte de um conjunto, incluir, incorporar); (iv) manter (sustentar, prover, conservar); (v) custear (financiar). Ressalta-se que, à luz do princípio da alternatividade, se o agente no mesmo contexto fático, realiza mais de um verbo (núcleo do tipo), responderá por crime único. Nota-se que os supracitados núcleos do tipo são complementados com os elementos “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão”, que merecem maior reflexão.
Primeiramente, nunca é demais lembrar que a Constituição da República Federativa do Brasil erigiu a direito fundamental a liberdade de associação para fins lícitos, vedando expressamente a de caráter paramilitar (artigo 5º, inciso XVII). Organização paramilitar pode ser definida como um grupo reunido com finalidades políticas, religiosas ou ideológicas, compostas por membros armados, não subordinadas às forças militares ou policiais de um país. Seria aquela organização que imita a estrutura e organização das Forças Armadas, sem delas fazer parte. Possui as características de uma força militar, como a hierarquia e disciplina castrense, sem sê-lo. Ressalta-se que, as organizações paramilitares possuem natureza privada, uma vez que não integram os quadros da organização da Administração Pública.
Por sua vez, “milícia” seria uma organização militar ou paramilitar, de caráter público ou privado, e que não faz parte dos quadros das Forças Armadas de um determinado Estado. “Milícia” é gênero, do qual são espécies: (i) milícias de caráter público (Polícias Militares dos Estados-membros e Distrito Federal); (ii) organizações paramilitares (milícias de caráter privado). Ocorre que, atualmente, a expressão “milícia” vem sendo empregada pelos diversos meios midiáticos para designar aqueles grupos de criminosos, que geralmente são compostos por policiais ou ex-policiais, que se associam para desenvolver diversas práticas criminosas. Estas “milícias”, formadas com finalidade de praticar crimes são consideradas “milícias privadas”, i.e., organizações paramilitares, de modo que não seria necessário o legislador prever expressões que tecnicamente são sinônimas.
Em seguida se utilizou a elementar “grupo”. Diante da inexistência de um conceito penal de “grupo”, verifica-se que uma definição extrajurídica se afigura demasiadamente aberta, uma vez que pode ser entendido como toda coletividade identificável, estruturada, e contínua, de pessoas que desempenham papéis recíprocos, segundo determinadas normas, interesses e valores sociais, para a consecução de objetivos comuns. Com a previsão do elemento “grupo”, como diferenciá-lo de “quadrilha ou bando”? Observa-se que, para a configuração do crime de quadrilha ou bando (artigo 288, do Código Penal) é exigido a associação de mais de três pessoas, ou seja, no mínimo quatro pessoas, com a finalidade de cometer um número indeterminado de crimes, previstos no Código Penal ou em legislação penal especial. Por exclusão, se cogitaria que grupo seria aquela associação de duas ou três pessoas, com a finalidade de cometer um número indeterminado de crimes previstos apenas no Código Penal. Porém, esta solução parece equivocada na medida em que o crime de “constituição de milícia privada”, que neste caso seria cometido por um “grupo” (associação de duas ou três pessoas), tem a cominação de pena em abstrato muito superior àquela prevista para o crime de “quadrilha ou bando” (associação de mais de três pessoas).
Outrossim, o legislador penal elencou a elementar “esquadrão”. Neste particular, uma vez mais, a lei não trouxe um conceito penal para este elemento que integra o tipo. Oficialmente, seria considerado um “esquadrão” àqueles agrupamentos militares de menor porte, porém não parece que esta definição corresponda ao o que o legislador pretende criminalizar. Ao que tudo indica, a elementar “esquadrão” se refere àqueles grupos compostos, em regra, por militares ou policiais, que se reúnem para praticar homicídios, sequestros, entre outros crimes contra à pessoa, com a finalidade de demonstrar a insurgência contra a realidade político-social de determinado Estado, ou simplesmente disseminar o terror.
Ademais, o tipo penal restou encerrado com a elementar “com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”, ou seja, apenas os delitos tipificados pelo Código Penal, expressão mais restrita, que exclui os crimes previstos na legislação penal especial. Conjugando as conclusões até aqui obtidas, com o advento do delito previsto no artigo 288-A, do Código Penal, levando-se em consideração o princípio da especialidade, podem ser vislumbradas as seguintes hipóteses: (i) “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão” que se destinam a prática de crimes previstos no Código Penal – conduta tipificada no artigo 288-A, do Código Penal (“constituição de milícia privada”); (ii) “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão” que se destinam a prática de crimes previstos em legislação penal especial – se associação reunir mais de três pessoas, ou seja, número mínimo de quatro, a conduta tipificada no artigo 288, do Código Penal (“quadrilha ou bando”). Se a associação reunir duas ou três pessoas, o fato será atípico; (iii) “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão” que se destinam a prática dos crimes previstos nos artigos 33, “caput” e parágrafo primeiro, e 34, da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – conduta tipificada no artigo 35, da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006.
O crime é punido a título de dolo (classificado como dolo de perigo), consistente na vontade livre e consciente de praticar qualquer um dos núcleos do tipo, sendo exigido a presença do elemento subjetivo especial do tipo “com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código” (dolo específico, segundo a doutrina tradicional), inexistindo a figura culposa na espécie.
Nas modalidades delitivas “constituir, organizar ou integrar”, o crime restará consumado com a efetiva constituição, organização ou integração de “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão”. Nestas três primeiras hipóteses, a tentativa é tecnicamente admitida. Os verbos “manter ou custear” traduzem a noção de continuidade de condutas, permanência relativamente considerável, reiteração por tempo juridicamente relevante. Em verdade, nestas duas modalidades, trata-se de crime habitual, pelo que é exigido o requisito da habitualidade da conduta, não bastando para a sua configuração um mero comportamento ocasional. Assim sendo, nas duas últimas hipóteses de conduta, o crime se consuma com a manutenção, sendo exigida a habitualidade, restando afastada a figura tentada.
Observa-se que o crime em estudo é autônomo ou independente dos crimes visados, i.e., para a sua configuração é irrelevante a efetiva prática dos crimes pretendidos pela “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão”. Caso sejam efetivamente praticados os crimes pretendidos, haverá verdadeiro concurso material de crimes (artigo 69, do Código Penal), entre o delito de “constituição de milícia privada” (artigo 288-A, do Código Penal) e os demais crimes cometidos, sendo responsabilizados por estes últimos, os membros que concorreram de qualquer forma para a prática delitiva (artigo 29, do Código Penal). Todavia, restarão afastadas as figuras qualificadas pelo concurso de pessoas relativas aos crimes praticados, sob pena de violação ao princípio do non bis in idem (dupla incriminação pela mesma circunstância).
Ressalta-se que o crime de “constituição de milícia privada” é processado mediante ação penal de iniciativa pública incondicionada (artigo 100, “caput”, do Código Penal).
Além disso, a Lei n. 12.720, de 27 de setembro de 2012, trouxe novas hipóteses de causa especial de aumento de pena para os crimes de homicídio (artigo 121, parágrafo sexto) e lesão corporal (artigo 129, parágrafo sétimo), consistentes no acréscimo de um terço até a metade da pena, “se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio”.
Esta causa de aumento de pena prevê alternativamente duas hipóteses: (i) crime praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança: de acordo com o artigo 144, da Constituição da República Federativa, a segurança pública é um dever do Estado, e deve ser prestada pelos órgãos elencados na norma constitucional. É claro que a iniciativa particular pode atuar neste segmento de forma supletiva e facultativa (segurança privada), com vistas a exercer a vigilância patrimonial ou de pessoas. A prestação do serviço de segurança privada está disciplinada pela Lei n. 7.102, de 20 de junho de 1983, que foi regulamentada pelo Decreto n. 89.056, de 24 de novembro de 1983, e não se confunde com a causa de aumento de pena em estudo. Aqui, os criminosos agem de maneira irregular e à margem da Lei, muitas vezes extorquindo moradores e comerciantes, estabelecidos em comunidades carentes, ou quando não, ceifando vidas humanas, sob o pretexto de impor algum castigo aos transgressores das normas impostas por estas subculturas criminais; (ii) crime praticado por grupo de extermínio: hipótese em que o crime é praticado sob o pretexto de “fazerem justiça com as próprias mãos”. Frise-se que a Lei n. 8.930/1994, que alterou a redação do artigo 1º, inciso I, 1ª parte, da Lei n. 8.072/1990, passou a considerar hediondo o homicídio simples quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente.
Conclui-se que, a Lei n. 12.720, de 27 de setembro de 2012, peca por não ter definido os elementos constitutivos do crime de “constituição de milícia privada”, e das novas causas especiais de aumento de pena, previstas para os crimes de homicídio e lesão corpora. Esta indefinição acarreta insegurança jurídica, na medida em que o aplicador da lei penal fica ao largo de parâmetros objetivos de conceituação destas “inovações” propostas pelo legislador.
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