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Constituição de milícia privada. Artigo 288-a do Código Penal: uma lei fadada ao fracasso?

Comentários à Lei nº 12.720/2012

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16/10/2012 às 11:13

Resumo:


  • A Lei 12.720/2012 alterou o Código Penal, inserindo o artigo 288-A que tipifica o crime de "Constituição de Milícia Privada", mas não definiu legalmente as elementares do tipo, o que pode gerar inaplicabilidade prática do dispositivo.

  • A doutrina busca conceituar as milícias privadas para viabilizar a aplicação do artigo 288-A do Código Penal, mas a falta de uniformidade e a dificuldade de conceituação evidenciam a necessidade de uma lei específica que defina claramente o que são tais organizações.

  • A nova lei também estabeleceu causas de aumento de pena para crimes de homicídio e lesão corporal quando praticados por milícias privadas, além de possibilitar o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição para crimes relacionados a organizações criminosas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3.    Ponderações acerca do termo “com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código” do artigo 288-A do Código Penal.

Verifica-se presente no delito do artigo 288-A o elemento subjetivo do injusto, qual seja: “com a finalidade de praticar qualquer dos crimes” previstos no Código Penal.

Como bem aponta Guilherme de Souza Nucci: “há finalizações de tipos penais incriminadores, que provocam a indevida extensão do núcleo, de modo a abranger situações incompatíveis com o propósito da norma”[25].

Como já dito, o artigo 288-A do Código Penal reza que é crime de “constituição de milícia privada”: “Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código” (grifos nossos).

Frisa-se que as milícias privadas do artigo 288-A do Código Penal, em razão da falta de conceituação legal, chegam a se confundir com o crime de quadrilha ou bando, em especial porque ambos os crimes tem por finalidade praticar crimes.

Aparentemente verifica-se que o artigo 288-A do Código Penal ultrapassou o verdadeiro sentido do mandado de criminalização contido na Resolução 44/162 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que pretende a proibição por lei de todas as execuções extralegais, arbitrárias ou sumárias, e a punição mais severa para execuções realizadas por milícias privadas.

O item nº 1 da referida Resolução reza que:

"Os governos proibirão por lei todas as xecuções extralegaisarbitrárias ou sumárias, e zelarão para que todas essas execuções se  tipifiquem como delitos em seu direito penal, e sejam sancionáveis como penas adequadas que levem em conta a gravidade de tais delitos. Não poderão ser invocadas, para justificar essas execuções, circunstâncias excepcionais, como por exemplo, o estado de guerra ou o risco de guerra, a instabilidade política interna, nem nenhuma outra emergência pública. Essas execuções não se efetuarão em nenhuma circunstância, nem sequer em situações de conflito interno armado, abuso ou uso ilegal da força por parte de um funcionário público ou de outra pessoa que atue em caráter oficial ou de uma pessoa que promova a investigação, ou com o consentimento ou aquiescência daquela, nem tampouco em situações nas quais a morte ocorra na prisão. Esta proibição prevalecerá sobre os decretos promulgados pela autoridade executiva." (grifos nossos).

As atividades das milícias privadas certamente perambulam pelos diversos tipos penais previstos no Código Penal Brasileiro, tendo sido, portanto, parcialmente correta a postura do legislador em ter inserido no artigo 288-A do Código Penal que reza ser possível que a milícia privada pratique “qualquer dos crimes previstos neste Código”.

O termo “qualquer” leva a falsa acepção de que a milícia privada poderia inclusive praticar crimes de bigamia, ato obsceno, violação de direito autoral, simulação de casamento, crimes culposos, preterdolosos entre outros crimes totalmente desvinculados à atividade miliciana.

De tal modo, entendemos que o artigo 288-A do Código Penal deve sofrer uma interpretação restritiva (ocorre quando a lei diz mais do que deveria – Lex plus scripsit[26])

Como assevera Cezar Roberto Bitencourt: “em tais casos, o intérprete, valendo-se de elementos lógicos, sistemáticos, teleológicos ou históricos deve procurar limitar a amplitude da lei, restringindo sua aplicação”[27].

O termo “qualquer” deve ser interpretado no sentido de praticar qualquer dos crimes do Código Penal ligados à atividade de milícia privada. Então, a leitura do dispositivo ficaria da seguinte forma: “constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”, desde que ligados às suas atividades.

Assim, por exemplo, um crime de extorsão praticado pela milícia privada com o fim de angariar recursos para a sua autuação poderia ser abrangido pelo artigo 288-A do Código Penal, pois ligado à atividade típica de uma milícia privada.

Importante frisar que o artigo 288-A do Código Penal, incompreensivelmente, não abrange contravenções penais e nem crimes previstos em legislações penais extravagantes, o que entendemos ser uma aberração, pois “[28]a finalidade da milícia ficou reduzida aos crimes previstos no Código Penal (a quadrilha fala em qualquer outro crime); crimes como exploração ilegal de TV por assinatura, venda ilegal de GLP, parcelamento irregular do solo urbano, usura, tortura etc. não estão no CP (logo, a reunião de várias pessoas para cometer esses crimes não configura o art. 288-A)”.


4.    Ponderações gerais acerca do artigo 288-A do Código Penal

O artigo 288-A do Código Penal é um crime de concurso necessário (ou plurissubjetivo) de condutas paralelas, ou seja, “os agentes se auxiliam, mutuamente, com o objetivo de produzirem o mesmo resultado”[29].

Ademais, trata-se de crime necessariamente permanente, sendo admitida, portanto, a prisão em flagrante. E o prazo prescricional da pretensão punitiva só começa a correr na data em que se der o encerramento das condutas expressas nos núcleos do tipo.

Importante lembrar que como o crime em estudo se trata de crime permanente ou continuado. De tal maneira, se a milícia privada já era constituída antes mesmo do advento e vigência da lei 12.720/2012 irá incidir o artigo 288-A do Código Penal (crime de constituição de milícia privada) – norma penal mais grave-, e não o crime do artigo 288 do Código Penal (crime de quadrilha ou bando), em especial em razão da súmula 711 do Supremo Tribunal Federal[30].

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Tendo em vista essa natureza permanente, se a atuação das milícias privadas passar por território de mais de uma jurisdição, a competência será firmada pelo juiz em que primeiro atuar no processo[31].

Uma questão interessante é saber se a competência para julgar tais crimes envolvendo grupos de extermínio seria da competência da justiça federal, sob a alegação de que constituiriam crimes de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (artigo 5º, XLIV da Constituição Federal de 1988). A nosso ver tais crimes são ainda da competência da justiça estadual, pois não afrontam a ordem constitucional e nem o Estado Democrático.

Tendo em vista que na grande maioria das vezes os grupos de extermínio acabam ficando “invisíveis” às investigações devido à inação (qualificada pelo temor que geram tais grupos), convivência ou mesmo o envolvimento direto de autoridades dos poderes  públicos, culminando em mortes não identificadas, vítimas desaparecidas, ausência de inquéritos, testemunhas atemorizadas e insuficiência de provas, será possível que, mediante um Incidente de Deslocamento da Competência (IDC- criado pela EC 45/2004, previsto no artigo 109, V-A e artigo 109, § 5º, ambos da Constituição Federal de 1988), haja o deslocamento da competência da justiça estadual para a federal para o julgamento e apuração dos crimes envolvendo grupos de extermínio, desde que restem caracterizados dois requisitos cumulativamente: 1º) crime praticado com grave violação aos direitos humanos (este requisito sempre estará preenchido para os crimes envolvendo grupos de extermínio, pois sempre haverá grave violação aos direitos humanos – trata-se de requisito de “preenchimento automático”); 2º) Risco concreto de descumprimento de Tratados Internacionais firmados pelo Brasil em virtude da inércia do Estado-Membro em proceder a persecução penal.

Salienta-se que a competência para julgar o IDC é do Superior Tribunal de Justiça, e a legitimidade para o seu requerimento é do Procurador Geral da República.

Importante frisar que o primeiro caso que ocorreu o deslocamento de competência envolveu grupos de extermínio. Trata-se do IDC nº 2, cuja Ementa do julgado segue abaixo:

INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA.  JUSTIÇAS ESTADUAIS DOS ESTADOS DA PARAÍBA E DE PERNAMBUCO. HOMICÍDIO DE VEREADOR, NOTÓRIO DEFENSOR DOS DIREITOS HUMANOS, AUTOR DE DIVERSAS DENÚNCIAS CONTRA A ATUAÇÃO DE GRUPOS DE EXTERMÍNIO NA FRONTEIRA DOS DOIS ESTADOS. AMEAÇAS, ATENTADOS E ASSASSINATOS CONTRA TESTEMUNHAS E DENUNCIANTES. ATENDIDOS OSPRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS PARA A EXCEPCIONAL MEDIDA.

1. A teor do § 5.º do art. 109 da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional n.º 45⁄2004, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal fundamenta-se, essencialmente, em três pressupostos: a existência de grave violação a direitos humanos; o risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas.

2. Fatos que motivaram o pedido de deslocamento deduzido pelo Procurador-Geral da República: o advogado e vereador pernambucano MANOEL BEZERRA DE MATTOS NETO foi assassinado em 24⁄01⁄2009, no Município de Pitimbu⁄PB, depois de sofrer diversas ameaças  e vários atentados, em decorrência, ao que tudo leva a crer, de sua persistente e conhecida atuação contra grupos de extermínio que agem impunes há mais de uma década na divisa dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, entre os Municípios de Pedras de Fogo e Itambé.

3. A existência de grave violação a direitos humanos, primeiro pressuposto, está sobejamente demonstrado: esse tipo de assassinato, pelas circunstâncias e motivação até aqui reveladas, sem dúvida, expõe uma lesão que extrapola os limites de um crime de homicídio ordinário, na medida em que fere, além do precioso bem da vida, a própria base do Estado, que é desafiado por grupos de criminosos que chamam para si as prerrogativas exclusivas dos órgãos e entes públicos, abalando sobremaneira a ordem social.

4. O risco de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais aos quais o Brasil anuiu (dentre eles, vale destacar, a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecido como "Pacto de San Jose da Costa Rica") é bastante considerável, mormente pelo fato de já ter havido pronunciamentos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com expressa recomendação ao Brasil para adoção de medidas cautelares de proteção a pessoas ameaçadas pelo tão propalado grupo de extermínio atuante na divisa dos Estados da Paraíba e Pernambuco, as quais, no entanto, ou deixaram de ser cumpridas ou não foram efetivas. Além do homicídio de MANOEL MATTOS, outras trêstestemunhas da CPI da Câmara dos Deputados foram mortos, dentre eles LUIZ TOMÉ DA SILVA FILHO, ex-pistoleiro, que decidiu denunciar e testemunhar contra os outros delinquentes. Também FLÁVIO MANOEL DA SILVA, testemunha da CPI da Pistolagem e do Narcotráfico da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, foi assassinado a tiros em Pedra de Fogo, Paraíba, quatro dias após ter prestado depoimento à Relatora Especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais. E, mais recentemente, uma das testemunhas do caso Manoel Mattos, o Maximiano Rodrigues Alves, sofreu um atentado a bala no município de Itambé, Pernambuco, e escapou por pouco. Há conhecidas ameaças de morte contra Promotores e Juízes do Estado da Paraíba, que exercem suas funções no local do crime, bem assim contra a família da vítima Manoel Mattos e contra dois Deputados Federais.

5. É notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas próprias. Há quase um pronunciamento uníssono em favor do deslocamento da competência para a Justiça Federal, dentre eles, com especial relevo: o Ministro da Justiça; o Governador do Estado da Paraíba; oGovernador de Pernambuco; a Secretaria Executiva de Justiça de Direitos Humanos; aOrdem dos Advogados do Brasil; a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado da Paraíba.

6. As circunstâncias apontam para a necessidade de ações estatais firmes e eficientes, as quais, por muito tempo, as autoridades locais não foram capazes de adotar, até porque a zona limítrofe potencializa as dificuldades de coordenação entre os órgãos dos dois Estados. Mostra-se, portanto, oportuno e conveniente a imediata entrega das investigações e do processamento da ação penal em tela aos órgãos federais.

7. Pedido ministerial parcialmente acolhido para deferir o deslocamento de competência para a Justiça Federal no Estado da Paraíba da ação penal n.º 022.2009.000.127-8, a ser distribuída para o Juízo Federal Criminal com jurisdição no local do fato principal; bem como da investigação de fatos diretamente relacionados ao crime em tela. Outras medidas determinadas, nos termos do voto da Relatora. (Relatora: Ministra Laurita Vaz. Suscitante: Procurador Geral da República. Suscitados: Justiça Estadual da Paraíba e Justiça Estadual do Pernambuco. Data do julgamento: 27 de outubro de 2010).

Tratando-se de crime formal ou de perigo abstrato, consuma-se com a simples prática dos verbos (“convergência de vontades”), não sendo necessário que se efetivem os crimes[32]. “A simples associação é o suficiente. Ou seja, pune-se o simples fato de se figurar como integrante da associação. Ao contrário,no concurso de pessoas, pune-se apenas se há a concretização do delito (consumado ou tentado)[33]”.

O sujeito passivo é a coletividade.

É possível que o agente pertença a mais de uma milícia privada, só que se o agente tiver ligação por qualquer dos núcleos do tipo com mais de uma milícia privada não se poderá negar a pluralidade de crimes[34].

Os crimes cometidos pela milícia privada geram concurso material de crimes – nesse sentido STF e STJ (HC 157862/SP, STJ) ao tratar acerca do crime de quadrilha ou bando.

“Convém salientar que, se todos os associados elaboraram o plano, mas nem todos participaram da prática do crime, somente aqueles que de ambos fizeram parte respondem por concurso material[35]”. Os outros são responsabilizados somente pelo delito de milícia privada.

Cumpre salientar que a manutenção de mais de uma milícia privada após a condenação ou denúncia constitui novo crime de Constituição de Milícia Privada, não se cogitando de bis in idem[36].

A pena para o delito em estudo é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, ocasião em que o agente não terá direito à suspensão condicional do processo, haja vista que a pena mínima ultrapassa 1 (um) ano, e a infração penal passará a admitir prisão preventiva, mesmo para o agente primário[37].

A efetiva associação deve ser demonstrada por elementos sensíveis, demonstrando a convergência de vontades. Pode haver também consumação naquele que ingressa em organização já formada[38]

Entendemos ser possível que a milícia privada organize-se por meio de forma societária. Neste caso, conforme informativo 645 do STF, não cabe presunção de que determinada sociedade empresária seja constituída com o fim de cometer crimes e apenas por isso imputar-se o crime de constituição de milícia privada, uma vez que tal fato tem que ser provado, ou seja, que a sociedade é destinada, exclusivamente, para a prática de crimes.

A ação penal é pública incondicionada para o delito do artigo 288-A do Código Penal.

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Sobre o autor
Marcelo Rodrigues da Silva

Advogado. LL.M ("Master of Laws") em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em direito público com ênfase em direito constitucional, administrativo e tributário pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Especialista em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Especialista em direito público pela Escola Damásio de Jesus. Extensão Universitária em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito. Extensão Universitária em Recursos no Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor conteudista do Atualidades do Direito dos editores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Possuiu vários artigos em revistas jurídicas, tais como Lex, Magister, Visão Jurídica, muitas das quais com matéria de capa. Colaborador permanente, a convite, da Revista COAD/ADV. Ex-Representante do Instituto Brasileiro de Direito e Política da Segurança Pública (IDESP.Brasil). Ex-estagiário concursado do Ministério Público de São Paulo. Fiscal do Exame Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcelo Rodrigues. Constituição de milícia privada. Artigo 288-a do Código Penal: uma lei fadada ao fracasso?: Comentários à Lei nº 12.720/2012. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3394, 16 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22822. Acesso em: 22 dez. 2024.

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