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ADI nº 3510: a atuação da AGU na defesa das pesquisas com células-tronco

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24/10/2012 às 10:50
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O STF, por maioria, julgou improcedente a ADI 3510, declarando a constitucionalidade dos dispositivos impugnados, permitindo a pesquisa com células-tronco embrionárias, aceitando a implementação da política pública defendida pela AGU.

1. Apresentação do caso

Contra a Lei de Biossegurança, lei n. 11.105/2005, o Ministério Público Federal ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade, tombada sob o número 3510[1]. Referida ação visava à declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º e seus parágrafos[2] da citada lei, que permitia pesquisas científicas com o uso de células-tronco embrionárias.

O fundamento da referida ADI era a defesa do direito à vida, como sendo inato do embrião, ainda que conservado in vitro, bem como a dignidade da pessoa humana agregado ao princípio da isonomia, já que todos, brasileiros ou estrangeiros, residentes ou domiciliados no Brasil são iguais perante a lei[3].

Com efeito, a partir da premissa fixada na inicial de que a vida biológica começa no momento da concepção, os impetrantes desenvolvem todo o seu argumento no sentido de que não há diferença ontológica entre um embrião fecundado in vitro e não introduzido no útero materno e um embrião fecundado de modo natural ou fecundado in vitro e introduzido no útero materno, para os fins da aplicação das disposições constitucionais que prescrevem o direito fundamental à vida, bem como à dignidade da pessoa humana e igualdade de tratamento.


2. Dos argumentos da AGU

Antes de se apresentar a argumentação da AGU nas informações prestadas pelo Presidente da República e reafirmadas pelo Advogado-Geral da União[4], quando de sua manifestação nos termos do art. 103, § 3º da Constituição, importante destacar observação consignada naquela peça de que “as premissas biológicas utilizadas pelo requerente para fundamentar sua tese não foram proferidas de modo isento sob o aspecto religioso”. É que, como apontado na nota de rodapé n. 26 das informações do Presidente da República (p. 33), os estudos que embasaram as afirmações do Procurador-Geral da República são de autoria de pesquisadores ou financiados pela Igreja Católica ou próximos à doutrina Cristã em razão de convicções pessoais[5], senão observe-se:

De fato, importa destacar que a professora Elizabeth Kipman Cerqueira é representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB. Já a professora Alice Teixeira Ferreira integra o Núcleo de Fé e Cultura da PUC de São Paulo, uma iniciativa da Arquidiocese de São Paulo. Por sua vez, o professor Dalton Luiz de Paula Ramos, além de integrar o Núcleo de Fé e Cultura, é correspondente da Pontifícia Academia Pro Vita, entidade criada pelo Vaticano. Com referência aos cientistas Jerôme Lejeune e Gozalo Herranz se faz necessário aduzir que ambos são integrantes da Opus Dei – que é uma prelazia pessoal da igreja Católica que ajuda os cristãos comuns a procurarem a santidade no seu trabalho e na sua vida diária. Por derradeiro, seis dos nove cientistas brasileiros citados são autores de uma obra coletiva patrocinada pela Pastoral Familiar, da Igreja Católica. Informações baseadas na reportagem ‘Isso deve ser pecado’ In PETRY, André. Veja, Edição 1908, 8/06/2005, p. 46.

Com essas afirmações a AGU tenta desqualificar a inicial apresentada, pois a mesma veicularia um posicionamento embasado na doutrina Cristã. Assim, referidas teses não poderiam servir de parâmetro ao julgamento do Supremo Tribunal Federal, já que o Estado brasileiro não poderia se comprometer com posicionamentos religiosos[6] em razão de ser um Estado laico, como preconizado pela própria Constituição (arts. 5º, VI e 19, I)[7].

A AGU, por sua vez, defendendo a política pública de saúde e da livre expressão da atividade científica, já que entende constitucional o dispositivo desafiado, alegou que a Lei da Biossegurança encontra esteio inclusive no artigo 5º da Constituição, eis que como visa promover pesquisas que levarão à cura de diversas doenças hoje tidas por incuráveis, promove e garante reflexamente o direito à vida de todos os brasileiros.

Nesse sentido, a Advocacia-Geral da União iniciou sua argumentação discorrendo sobre a importância das pesquisas com células-tronco a fim de permitir o avanço da medicina na busca da cura de doenças que atualmente não têm um tratamento satisfatório.

Com efeito, há dois tipos de células-tronco: as embrionárias e as adultas. Aquelas são encontradas nos óvulos fertilizados in vitro e não implantados no útero materno, estas são encontradas principalmente na medula óssea e no cordão umbilical (Informações do Presidente da República, p. 4).

Segundo argumentado pela AGU as células-tronco embrionárias[8] tem maior capacidade de se desenvolverem em diferentes tipos de células, ou seja, possuem uma plasticidade superior às células-tronco adultas, sendo, portanto, mais propícias às pesquisas científicas que as segundas (Informações do Presidente da República, p. 5).

Um segundo argumento utilizado pela AGU diz respeito ao momento em que se considera legalmente ocorrida a cessação da vida humana. Trata-se de um argumento fundado em tese eminentemente jurídica, ponto esse bastante reforçado pela Advocacia-Geral da União em sua manifestação[9].

O fato é que a lei n. 9.434/1997, que autoriza o transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano post mortem, considera como marco temporal exato a fim de caracterizar o fim da vida humana o diagnóstico de morte encefálica[10]. Utilizando um argumento a contrario sensu, a AGU sustenta que se a vida, consoante critério legal, se encerra com o fim da atividade encefálica, ela deve iniciar, com base nesse mesmo critério, com o surgimento da linha primitiva do sistema nervoso central, que se dá a partir do décimo quarto dia de desenvolvimento do embrião, fase conhecida como neurulação (Informações do Presidente da República, p. 6).

Assim, percebe-se que a fase em que se iniciam as pesquisas com as células-tronco embrionárias por anteceder a neurulação não implicaria em desrespeito à vida do embrião, com base em critérios adotados pelo legislador pátrio, porque, nessa fase de desenvolvimento celular, não se haveria de falar em vida, já que sequer surgiu a linha primitiva do sistema nervoso central.

Todavia, a AGU não se restringe em sua argumentação acerca do conceito jurídico de vida à análise isolada do art. 3º da lei n. 9.434/1997. Em sua defesa da constitucionalidade da Lei de Biossegurança promove um amplo diálogo, constitucional e legal, entre os mais diversos dispositivos normativos do ordenamento jurídico brasileiro a fim de chegar com uma margem de segurança mais larga ao conceito ou à ideia jurídica de proteção à vida que mais se adapte à realidade normativa nacional.

Nesse contexto passa a analisar o teor do art. 2º do Código Civil de 2002[11], que reproduziu texto normativo adotado pelo Brasil desde o Código Civil de 1916, especialmente quanto ao significado do vocábulo nascituro e o termo inicial da personalidade civil (Informações do Presidente da República, p. 21).

Segundo aponta, o nascimento com vida, ou seja, o momento em que o feto sai/desprende-se do ventre materno e autonomamente respira o ar externo, é o preciso instante em que se adquire a personalidade civil (Informações do Presidente da República, p. 25).

Todavia, embora tenha resguardado direitos (na verdade uma expectativa de direitos, como sustenta a AGU[12]), o feto, desde o momento da concepção até o último instante que antecede o nascimento, não é considerado juridicamente uma pessoa, mas um nascituro, desprovido de personalidade jurídica (Informações do Presidente da República, p. 24).

Assim, vê-se uma clara diferenciação legal entre o feto com vida intrauterina e aquele que já deixou o ventre materno e autonomamente se mantém sem mais depender biologicamente da mãe para desenvolver suas funções vitais básicas.

Outra clara distinção legal existente entre um feto e um ser humano já nascido é colocada pelo art. 128, II do Código Penal[13], ao permitir o chamado aborto sentimental ou humanitário. Ora, sustenta a AGU, acaso a proteção constitucional à vida tivesse a estatura preconizada pelo requerente, fatalmente o referido dispositivo legal seria inconstitucional (Informações do Presidente da República, p. 27-28).

Ademais, a inalienabilidade do direito à vida também é excepcionada nos casos de pena capital, em caso de guerra declarada, consoante previsão da alínea “a”, do inciso XLVII, do art. 5º do próprio texto constitucional (Informações do Presidente da República, p. 29).

Dentro desse quadro, a AGU visou demonstrar que o direito à vida não é absoluto e que a própria legislação diferencia claramente os direitos ou expectativa de direitos de um nascituro com os direitos de um ser humano já nascido. Tanto no que se reporta à aquisição da personalidade jurídica, quanto no que se refere à ponderação de interesses entre permitir que se protraia no tempo a expectativa de vida do nascituro e a dignidade da mãe que engravidou em razão de uma violência sofrida.

Mas observe-se que se está sempre a falar de nascituro, ou seja, “o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo”[14], fato este (certeza do nascimento) que não se pode atribuir a um embrião concebido in vitro que não esteja implantado no útero materno[15].

Com efeito, o cerne da discussão, no nosso modo de ver, resume-se a saber se o embrião in vitro tem direito à vida e, num segundo momento, se essa vida é viável. Ainda que se chegasse à conclusão que embriões concebidos em laboratório, mesmo não introduzidos nos útero materno em momento posterior, têm direito à vida, o fato é que a Lei de Biossegurança não viola o referido direito, já que só permite pesquisas com células-tronco embrionárias daqueles embriões inviáveis, ou congelados a mais de três anos, situação essa que os torna inviáveis para nascimento com vida, consoante informa a AGU, por meio da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde[16].

Nesse sentido, nas informações apresentadas pela AGU em nome do Presidente da República, diz-se textualmente:

Ora, se o direito à inviolabilidade do direito à vida surte seus efeitos quando a pessoa pode ser sujeito de direitos e isso ocorre com o nascimento com vida, e se os direitos do nascituro garantidos por lei pressupõem a condição de poder nascer objetivamente, se não há nascimento com vida ou não há condições objetivas de nascer, não há direito à inviolabilidade do direito à vida por falta de pressuposto lógico necessário. Em outras palavras, não basta a existência de vida biológica para a inviolabilidade jurídica do direito à vida, em face de que não é verdadeira a afirmação do Autor da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510.[17]

Noutro giro, a AGU, por meio da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde (no Parecer indicado na nota de rodapé n. 403), tece interessante arrazoado acerca do fundamento Constitucional apontado pela parte autora. Inicialmente, com relação à dignidade da pessoa humana, consigna a AGU em seu parecer jurídico que a Constituição visa proteger a “pessoa”, o ser humano personificado nos termos do art. 2º do Código Civil, não havendo qualquer referência à “vida humana”, razão pela qual não se haveria de perquirir acerca da existência ou não da vida do embrião para o debate travado, nos termos propugnados pelo Ministério Público, mesmo porque vida sabe-se que há. O relevante é saber se o embrião é ou não considerado pessoa.

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Nesse sentido, citando o bioeticista e filósofo italiano Mori, a AGU pondera em seu parecer:

[...] da mesma forma que um estudante de engenharia é um engenheiro em potencial, mas não é um engenheiro, uma semente é potencialmente um carvalho, mas não é um carvalho, um embrião é potencialmente uma pessoa, portanto, não é uma pessoa.[18]

E mais a frente, desta feita citando o filósofo francês Lucien Sève, declina:

[...] quando se afirma que um embrião é uma pessoa em potencial se quer dizer precisamente que: a) não pode ser considerado como uma pessoa atual, pois, não é capaz de valer sua dignidade, sendo essa a primeira diferença entre uma pessoa no momento presente e uma pessoa a ser no futuro; b) falar de pessoa em potencial implica não lhe atribuir as mesmas propriedades éticas das pessoas em ato. Portanto, um embrião não possui em si toda a carga do ser correspondente à pessoa humana que nascerá, considerando que é uma pessoa possível, dependendo de fatores externos para se chegar ao seu nascimento.

Em complemento, quanto ao princípio da igualdade, o dispositivo Constitucional fala em brasileiros e estrangeiros. Significa dizer, adotando-se uma interpretação sistemática da Constituição, que são iguais os brasileiros natos, naturalizados (art. 12 da Constituição) e os estrangeiros. Assim, o embrião ou feto por não ser nato (nascido) ou naturalizado (que pressupõe dentre seus requisitos o prévio nascimento) não pode ser considerado brasileiro, nem, portanto, estrangeiro. Desse modo, o princípio aventado restaria impossibilitado de vir a ser aplicado no caso previsto pelo art. 5º da Lei de Biossegurança[19].

Não se pode olvidar, destaca o Parecer da Advocacia-Geral da União, que a Constituição acolhe o direito à saúde tanto como direito fundamental, quanto como direito à livre expressão da atividade científica (art. 5º, IX), cabendo ao Estado, por consequência, prestar ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde de todos (art. 196, CF/88), além de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnologia (art. 218, CF/88), sendo que a referência aos dois últimos dispositivos serve de alicerce fundamentador para a análise acerca da permissão das pesquisas com células-tronco embrionárias, já que tais pesquisas podem representar a esperança para o tratamento de milhões de pessoas no Brasil[20].

Neste sentido e a título de conclusão, a AGU afirma que “com fulcro no direito à saúde e no direito de livre expressão da atividade científica, a permissão para a utilização de material embrionário, em vias de descarte, para fins de pesquisa e terapia consubstanciam-se em valores amparados constitucionalmente” (Informações do Presidente da República, p. 33-34)[21].


3. Do Acórdão do STF

No caso, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, julgou improcedente a ADI 3510, declarando, por conseguinte, a constitucionalidade dos dispositivos impugnados, permitindo a pesquisa com células-tronco embrionárias inviáveis, ou congeladas há mais de três anos, albergando deste modo a implementação da política pública defendida pela AGU em nome da União.

Observem-se os fundamentos condutores do posicionamento dos Ministros do STF, iniciando pelos argumentos propugnados no voto vencedor e condutor do acórdão, o do Ministro Carlos Ayres Britto, relator do feito.

O Ministro Ayres Britto conceitua o que são células-tronco embrionárias afirmando que são aquele conjunto de células encontradas em cada embrião humano de até 14 dias, sendo que alguns cientistas reduzem esse prazo para até 5 dias, fase em que se convencionou denominar esse aglomerado de células de blastocisto.  Mas, registra o relator, que o objeto das pesquisas permitidas pela legislação desafiada não alcança toda e qualquer célula-tronco, mas tão somente aquela produzida com manipulação humana, porquanto produzidos em laboratório (in vitro). Em seguida, o relator diz não ser missão do Supremo Tribunal Federal aferir quais das duas pesquisas é mais promissora, se a com células-tronco embrionárias ou a com células-tronco adultas, mesmo porque tais pesquisas não são excludentes uma da outra, mas, ao contrário, complementares.

Prossegue o relator afirmando que a Lei da Biossegurança, longe de desprezar o embrião in vitro, encurta caminhos para que se possa superar os infortúnios alheios[22]. Deste modo, permitindo a pesquisa científica com o objetivo de enfrentar e superar patologias e traumatismos que limitam severamente a vida dos seus detentores, promove no seu mais amplo significado a dignificação da pessoa humana. Princípio este que se potencializa uma vez se tenha em mente que as células-tronco utilizadas nas pesquisas ou são inviáveis, por natureza, ou se tornaram inviáveis em razão do tempo de congelamento (mais de três anos).

Ademais, sustenta que, em que pese seja passível de proteção, o embrião não é pessoa, eis que a nossa legislação adotou a teoria “natalista” e não a “concepcionista” a fim de conceder a personalidade civil ao indivíduo humano. Deste modo, e seguindo lição de José Afonso da Silva, defende que a personalidade jurídica adquirida com o nascimento com vida não se adstringe à concepção eminentemente biológica do termo, mas, ao contrário, congrega a concepção biográfica da expressão, senão observe-se:

Se é assim, ou seja, cogitando-se de personalidade numa dimensão biográfica, penso que se está a falar do indivíduo já empírica ou numericamente agregado à espécie animal-humana; isto é, já contabilizável como efetiva unidade ou exteriorizada parcela do gênero humano. Indivíduo, então, perceptível a olho nu e que tem sua história de vida incontornavelmente interativa. Múltipla e incessantemente relacional. Por isso que definido como membro dessa ou daquela sociedade civil e nominalizado sujeito perante o Direito. Sujeito que não precisa mais do que de sua própria faticidade como nativivo para instantaneamente se tornar um rematado centro de imputação jurídica. Logo, sujeito capaz de adquirir direitos em seu próprio nome, além de, preenchidas certas condições de tempo e de sanidade mental, também em nome próprio contrair voluntariamente obrigações e se pôr como endereçado de normas que já signifiquem imposição de “deveres”, propriamente. O que só pode acontecer a partir do nascimento com vida, renove-se a proposição[23].

E em seguida arremata com uma “ainda provisória definição jurídica”: “vida humana já revestida de personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte”[24].

É certo, diz o relator, que a tão só potencialidade de “algo” vir a se tornar pessoa humana justifica por si só a necessidade de proteção jurídica, a fim de afastar as tentativas levianas e frívolas – palavras do Ministro relator – de interrupção do seu natural desenvolvimento. Mas, isso não nos legitima a confundir três realidades diversas: embrião, feto e pessoa humana. Não existe, portanto, segundo aponta, pessoa humana embrionária, mas, sim, embrião de pessoa humana[25].

Não nega o Ministro, e nem poderia, que a vida do ser humano tem seu mais remoto início com a fecundação do óvulo feminino pelo espermatozoide masculino, absolutamente. “Não pode ser diferente”, sustenta o relator. “Não há outra matéria prima da vida humana ou diverso modo pelo qual esse tipo de vida animal possa começar, já em virtude de um intercurso sexual, já em virtude de um ensaio ou cultura em laboratório”[26]. Todavia, prosseguindo, pondera que de igual modo não há manhã sem madrugada anterior e não há decisão judicial sem pedido inicial, mas nem por isso a madrugada se confunde com a manhã, nem o pedido com a sentença ou acórdão. “Cada coisa tem o seu momento ou a sua etapa de ser exclusivamente ela, no âmbito de um processo que o Direito pode valorar por um modo tal que o respectivo clímax (no caso, a pessoa humana) apareça como substante em si mesmo”[27].

Declina, ainda, tal qual apontado pelo parecer da Advocacia-Geral da União, que muito embora a constituição não determine quando começa a vida humana, quando fala em dignidade da pessoa humana, está falando dos direitos e garantias do indivíduo-pessoa, um ser humano já nascido. Tanto que ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição trata do brasileiro residente no País (“não em um útero materno ou menos ainda em um tubo de ensaio ou ‘placa de Petri’”), de igual modo ao falar de nacionalidade a Constituição considera ou brasileiro “nato”, reportando-se expressamente à ideia de nascimento e não de concepção, ou brasileiro “naturalizado”, sendo que para a naturalização é necessário o prévio nascimento com vida[28].

Prosseguindo, acentua que o silêncio da constituição no que se refere à proteção do ser humano desde a sua concepção tem uma forte significação hermenêutica no sentido de que restou delegado à legislação infraconstitucional essa missão. Se assim não fosse o art. 128, I e II do Código Penal seria inconstitucional ante a previsão Constitucional de proibição da pena de morte, eis que a vida dos embriões ou fetos, tendo a mesma estatura Constitucional que a vida da mãe, não poderia ser relativizada ao se permitir o abortamento[29]. Tal, consoante consignado pela AGU (com muito mais razão no caso do art. 128, II, já que em tese não há risco de morte para mãe), demonstra a opção legislativa, constitucionalmente alicerçada, de diferenciação quanto à abrangência protetiva que se dedica a uma vida extrauterina e a uma vida intrauterina.

Nesse sentido, destaca que o embrião referido pela Lei de Biossegurança é aquele que não detém a capacidade de caminhar para formação de uma nova vida, já que faltam as possibilidades de desenvolver as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível e, para tanto, promove paralelo com a disposição normativa constante da lei n. 9.434/1997, em seu artigo 3º. Assim, sustenta o relator, como a morte decorre do fim da atividade cerebral, a vida, por sua vez, deve decorrer do início desta mesma atividade. Em assim sendo, como o embrião in vitro não possui cérebro, não há que se falar em pessoa humana, nem que em potencialidade[30], argumento este expressamente consignado na manifestação da Advocacia-Geral da União.

Ademais, o relator afasta qualquer pseudossemelhança que se possa querer impingir à pesquisa com células-tronco embrionárias, fecundadas in vitro, ao aborto: a um porque não se trata de ser humano em estado embrionário, já que não introduzido no útero, único ambiente capaz de possibilitar o seu pleno crescimento, mas de entidade embrionária de ser humano; a dois porque o aborto é a retirada ou extirpação do ser humano em estado embrionário do ambiente que lhe possibilitará o pleno desenvolvimento, o útero materno. Assim, a utilização das células-tronco embrionárias, fecundadas in vitro e não introduzidas no ambiente uterino não pode ser equiparado à interrupção de uma gravidez, simplesmente porque, antes de sua introdução no ventre materno, de gravidez não se pode falar.

Em seguida aborda o tema dos princípios da paternidade responsável e da autonomia da vontade, aduzindo-se que um casal é tanto livre para optar pela fertilização in vitro quanto para planejar sua família responsavelmente. Daí advém que não se pode coagir a mulher a ter em si implantados (tentativa de nidação) todos os óvulos fertilizados artificialmente, mesmo porque tal prática, além de afrontar a dignidade da mulher, iria de encontro à autonomia da vontade e ao princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, CF/88). Deste modo, a fim de se garantir, como pretende o autor, o pleno direito à vida ao embrião fertilizado in vitro haveria de se lhe assegurar o “direito a um útero”, interpretação essa que não comporta guarida pelo texto Constitucional[31].

Registre-se que o Ministro Carlos Ayres Britto sustenta que a Lei de Biossegurança caminha ao encontro dos preceitos constitucionais que garantem o direito à saúde, na medida em que o próprio texto Constitucional, em seu art. 199, § 4º, incorpora à seção normativa que trata da “saúde” a “pesquisa com substâncias humanas para fins terapêuticos”, o que transforma a referida lei em instrumento de encontro do direito à saúde com as ciências médica, biológica e correlatas[32].

Por fim, e ainda em sintonia com a tese defendida pela Advocacia-Geral da União, sustenta que a Lei de Biossegurança é a concretização do preceito constitucional[33] que estipula ser obrigação do Estado promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas, compatibilizando-se a liberdade de expressão científica, com estatura de direito fundamental (art. 5º, IX), com os deveres estatais de propulsão da ciência ao serviço da melhoria das condições de vida para todos os indivíduos, assegurada sempre a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o referido Ministro entende presente no art. 5º da Lei de Biossegurança o bloco normativo constitucional necessário a afastar-lhe qualquer pecha de invalidade jurídica.

Acompanharam na integralidade o voto do Ministro Relator, sem falar em interpretação conforme ou fazer qualquer ressalva por mínima que seja, os Ministros Ellen Gracie, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello, razão pela qual se apontará pontos específicos de seus votos que guardam correspondência à argumentação da Advocacia-Geral da União[34].

Das Ministras Ellen Gracie[35] e Cármen Lúcia[36] extraem-se ponderações interessantes que têm por base um argumento utilitarista pragmático: ora, se os embriões são inviáveis para os fins de formação de um futuro ser humano, sendo seu destino natural o descarte, empresta-lhes dignidade o fato de serem utilizados como fonte de pesquisa que visa alcançar o bem “vida” numa esfera maior que a que se pretende defender com a ação direta de inconstitucionalidade. De igual modo, se o seu destino final é o descarte, não há que se falar, por consequência, em ofensa a um provável direito à vida dos embriões, já que ao fim e ao cabo tal direito não lhes será resguardado com a procedência da ADI.

Já o Ministro Joaquim Barbosa[37] expõe em seu voto o pensamento de que o ordenamento jurídico brasileiro confere gradações diversas de tutela da vida, a depender do seu estágio de desenvolvimento (se embrião, se feto, se recém-nascido etc.), para tanto traz os exemplos das penas aplicadas aos crimes de aborto, infanticídio[38] e homicídio, a fim de comprovar sua afirmação. Neste particular, guarda congruência o voto do Ministro com a argumentação da AGU no exato ponto em que esta trata das diferenciações promovidas por nossa legislação nos casos em que o aborto é permitido (art. 128, I e II, Código Penal). Se a proteção da vida do embrião inviável ou congelado a mais de três anos tivesse a estatura que se lhe pretende conferir, por consequência o aborto terapêutico e especialmente o aborto sentimental seriam flagrantemente inconstitucionais, como, analogamente, também os seriam as penas diferenciadas impostas aos crimes de aborto e homicídio.

De igual modo sustenta o Ministro Marco Aurélio[39] em seu voto a inexistência de similaridade sob a ótica protetiva do Estado entre os nascituros e aqueles que já nasceram. Acrescenta ademais que a personalidade jurídica, somente adquirível por meio do nascimento com vida, sequer pode ser considerada, potencialmente, nos embriões fecundados in vitro (inviáveis ou congelados por três anos ou mais), já que não lhes é garantido o direito ao útero materno, ambiente que poderia vir a lhes conferir a possibilidade de desenvolver uma potencialidade adormecida. Contudo, no caso, ainda que garantido o ambiente uterino, tal não proporcionaria o esperado crescimento, já que referidos embriões são ou se tornaram inviáveis.

Por fim, o Ministro Celso de Mello[40], utilizando como marco normativo o art. 3º da lei 9.434/1997, defendeu abertamente, tal qual a AGU em sua manifestação, a teoria neurológica de modo a fixar os termos inicial e final da vida humana. Nesse sentido, por coerência argumentativa, não se poderia garantir a plenitude do direito à vida a embriões produzidos em laboratório e que, além de inviáveis ou congelados a mais de três anos, não têm ainda desenvolvido os primeiros rudimentos de um sistema nervoso central, sendo esse o momento em que as pesquisas são efetivadas.

Adotando esses fundamentos, o STF, por maioria de votos, julgou improcedente a ADI e declarou constitucionais os dispositivos legais atacados[41].

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Sobre o autor
Filipo Bruno Silva Amorim

Procurador Federal, atualmente exercendo o cargo de Vice-Diretor da Escola da Advocacia-Geral da União. Bacharel em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Filipo Bruno Silva. ADI nº 3510: a atuação da AGU na defesa das pesquisas com células-tronco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3402, 24 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22877. Acesso em: 2 nov. 2024.

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