5. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DO EMPREGADO VERSUSO DIREITO DE PROPRIEDADE DO EMPREGADOR NOS PROCEDIMENTOS DE REVISTA ÍNTIMA
Como já demonstrado nos capítulos anteriores, os direitos à intimidade, privacidade, honra, imagem e dignidade da pessoa humana, garantidos e assegurados pela Constituição Federal nos seus artigos 1º, caput e inciso III, 5º, inciso X e 170, são direitos indisponíveis e irrenunciáveis, além de terem oponibilidade erga omnes. A mesma Constituição ainda assegura o direito de propriedade no caput e inciso XXII do seu artigo 5º.
No ambiente laboral, o empregador possui o poder diretivo (artigo 2º da CLT), fundado no seu direito de propriedade, para assegurar a execução do trabalho e exigir que o serviço seja corretamente prestado por seus empregados.
De outro lado, os empregados, enquanto seres humanos, possuem assegurados os direitos da personalidade e a garantia de respeito a sua dignidade da pessoa humana, impondo algumas restrições ao exercício do poder diretivo do empregador, para que o serviço seja exigido de forma respeitosa e humanitária.
Os direitos da personalidade do trabalhador, por consequência, também sofrem algumas limitações naturais decorrentes da celebração do contrato de trabalho e aceitação do controle do empregador.
Assim, o legislador, ao reconhecer o poder diretivo do empregador, legitimou a limitação dos direitos da personalidade do empregado em decorrência das exigências do desenvolvimento da atividade laboral, entretanto, o poder de direção também é submetido a limites, em especial, o respeito à dignidade da pessoa humana do empregado e seus direitos à privacidade, intimidade, honra e imagem.
Essa relação entre poder diretivo do empregador, fundado no direito de propriedade,e direitos da personalidade do empregado, fundados na dignidade da pessoa humana, está presente em várias situações do cotidiano da prestação de trabalho. Ambos os direitos devem ser respeitados, todavia, por serem naturalmente antagônicos, acabam por surgir algumas controvérsias acerca da extensão da proteção a ser conferida a cada um deles.
Nesse contexto, acaba sendo inevitável a colisão entre o direito de propriedade do empregador, assegurado no caput e inciso XXII do artigo 5º da CF/88, com os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana do empregado, garantidos pelos artigos 1º, caput e inciso III, 5º, inciso X e 170 da CF/88 principalmente. Em outras palavras, o exercício do direito fundamental de propriedade do empregador aparentemente colide com o exercício do direito fundamental à honra, intimidade, privacidade, imagem e dignidade do empregado.
Edilson Pereira de Farias, citado por Sandra Lia Simón[78], afirma que esse conflito direto entre dois direitos fundamentais de titulares diferentes se caracteriza quando o pressuposto de fato de um direito “interceptar o pressuposto de fato de outro direito fundamental”. É o que acontece no caso em que o empregador, fundamentado no seu direito de propriedade, exige que seus empregados se submetam às revistas íntimas, afrontando seus direitos de intimidade, privacidade, honra, imagem e, em especial, dignidade da pessoa humana.
Para este caso do procedimento de revistas íntimas, em que se tem instaurado aparentemente um conflito entre o direito de propriedade do empregador e os direitos de personalidade do empregado, em especial o direito à dignidade da pessoa humana, entende a doutrina e jurisprudência de forma pacífica que o direito à privacidade, honra, intimidade, imagem e, sobretudo, dignidade do empregado enquanto pessoa humana, prevalecem sobre o direito de propriedade do empresário. Isto porque a dignidade da pessoa humana é um sobrepricípio constitucional que coordena e garante todo o Estado Democrático de Direito Brasileiro, sendo sua observância a própria condição para a existência humana.
Entende-se que todo o ordenamento jurídico brasileiro e, portanto, também o Direito do Trabalho, converge no sentido de proteger e salvaguardar os valores pessoais que são a própria condição da existência humana, visto que, sem a efetiva proteção deles, comprometer-se-ia a condição humana, a vida em sociedade e a existência do próprio Estado. Obviamente, diante da grande relevância, devem os direitos inerentes à personalidade prevalecer sobre os valores materiais, que se caracterizam como necessidade humana secundária.
A Constituição Federal de 88 colocou a dignidade da pessoa humana como o mais importante princípio a ser seguido, revelando-o como verdadeiro valor supremo a ser respeitado e protegido por todo o ordenamento.
Assim, no ambiente laboral, apesar de o empregador ter garantido seu poder de direção, fundado no seu direito de propriedade, para que possa garantir a efetivação da sua atividade empresarial, este poder jamais poderá se sobrepor as garantias humanas mínimas asseguradas por todo o ordenamento jurídico a todas as pessoas enquanto seres humanos, e, portanto, a todos os trabalhadores.
Sob este aspecto, afirma Maurício Godinho Delgado[79]:
“Sabiamente, a Carta Magna percebeu que a valorização do trabalho é um dos mais relevantes veículos de valorização do próprio ser humano, uma vez que a larga maioria dos indivíduos mantém-se e se afirma, na desigual sociedade capitalista, essencialmente, por meio de sua atividade laborativa.”
Cita-se abaixo algumas ementas atuais do Tribunal Regional de São Paulo (2ª Região) que demonstram o entendimento no sentido acima mencionado, in verbis:
“REVISTA ÍNTIMA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. No confronto entre o direito de propriedade do empregador e o direito à dignidade da pessoa humana do empregado, este deve prevalecer sobre o primeiro, pois traduz princípio fundamental sobre o qual se esteia o próprio Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF), e do qual decorre, necessariamente,outro direito fundamental, o da inviolabilidade da intimidade, que encontra assento constitucional no art. 5º, X, da Constituição da República, que assegura, expressamente,o direito à indenização pelos danos materiais e morais decorrentes da sua violação. Assim, é manifesto que as revistas íntimas realizadas pela ré, exigindo que os empregados ficassem em trajes sumários diante de seguranças ou de seus prepostos, ocasionava constrangimento de ordem moral ao reclamante, pois a situação é nitidamente vexatória, decorrendo daí o dever de indenizar o dano moral causado.”[80]
“DANO MORAL. REVISTA ÍNTIMA. Violação do princípio da dignidade humana. Indenização. Desde o advento do Direito do Trabalho, a proteção à pessoa do trabalhador era a pedra de toque desse ramo especializado da ciência jurídica. Some-se a isso a evolução dos ordenamentos jurídicos, notadamente após a segunda metade do século XX, em que se constatou que assegurar apenas a igualdade formal não era o bastante para garantir os ideais tão caros aos liberais do século XIX (igualdade, fraternidade e solidariedade). A adesão do Brasil à ONU e a conseqüente Declaração Universal dos Direitos Humanos impõe ao operador do direito diretrizes na interpretação e aplicação das normas jurídicas.Nesse contexto, a intangibilidade pessoal do empregado é direito cuja proteção não se limita ao trabalhador enquanto tal, mas a qualquer ser humano. A relação de trabalho subordinada confere alguns poderes ao empregador, mas não autoriza a relativização do direito à incolumidade física.Destarte, a revista íntima não se justifica, seja pelo poder diretivo, seja pelo direito de propriedade, cuja construção doutrinária teve por fundamento a vetusta concepção do empregado como um dos elementos de produção, e não como ser humano.”[81]
“DANO MORAL. REVISTA ÍNTIMA. PROVA TESTEMUNHAL. OFENSA À DIGNIDADE HUMANA (artigo 1º, III, CF), A HONRA E A IMAGEM (artigo 5º, X, CF). CONFLITO COM DIREITO DE PROPRIEDADE. Aplicação da técnica do sopesamento, da ponderação, pois nenhum direito constitucional pode derrogar outro. Prevalece o direito à honra e à imagem do trabalhador, com vistas à valorização da dignidade humana, verdadeiro superprincípio constitucional, em aplicação, inclusive, da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Recurso da reclamada parcialmente provido.”[82]
Além disso, no conflito envolvendo o direito de propriedade, a própria Constituição Federal apresenta a solução, visto que o referido direito de propriedade está submetido ao cumprimento de sua função social, isto é, ao seu uso sempre de acordo com o interesse social de forma a não servir para atos atentatórios à lei, seus princípios e aos próprios valores sociais, conforme artigo 5º, inciso XXIII e artigo 170 da Carta Maior. A observância da função social da propriedade nada mais visa do que proteger o seu uso de forma indevida e contra o que todo o ordenamento jurídico visa proteger.
Assim, utilizando o empregador do seu direito de propriedade para proceder revistas íntimas em seus empregados, em total afronta a seus direitos de intimidade, privacidade, honra, imagem e dignidade, age em desconformidade com a função social de sua propriedade, em total afronta ao valor do trabalho humano. Nesse sentido é o ensinamento de Sandra Lia Simón[83]:
“Em alguns casos, a própria Constituição dá a solução para o conflito. Por exemplo, o direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII) convive com a possibilidade de desapropriação, condicionada está última à necessidade ou utilidade pública, ou ao interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5º, inciso XXIV).”
Portanto, o empregador que se utiliza do seu poder diretivo, e por consequência, de seu direito de propriedade, a fim de justificar procedimento atentatório aos direitos e garantias mínimos assegurados aos seus empregados enquanto seres humanos, não atua em conformidade com a exigência do inciso XXIII do artigo 5º e artigo 170 da CF/88de cumprimento da função social da propriedade, deixando, por consequência, de ser amplamente protegida pelo direito.
Verifica-se, assim, que o poder de direção do empregador, fundado no seu direito de propriedade, encontra limites que visam proteger os direitos fundamentais do empregado enquanto pessoa humana, direitos estes fundados no próprio princípio norteador de todo o ordenamento jurídico pátrio, que é a dignidade da pessoa humana, visto que a Constituição Federal de 88 colocou o ser humano como valor supremo a ser respeitado, sendo nítida a prevalência do ser em detrimento do ter.
CONCLUSÃO
Em conformidade com toda a pesquisa, análise e estudo realizado acerca do tema do presente trabalho monográfico, conclui-se que o direito de propriedade é entendido como aquele direito individual, pleno e absoluto no sentido de que o proprietário detém amplos poderes jurídicos sobre o que lhe pertence. Éassegurado a todos os indivíduos, inclusive àquele na qualidade de empregador, enquanto empresário, a fim de proteger todo o seu patrimônio de eventuais turbações.
Referido direito autoriza e assegura ao empregador o uso do poder diretivo para que possa determinar como deverá ocorrer a prestação de serviços por parte de seus empregados, segundo os seus interesses particulares empresariais.
Contudo, o direito de propriedade não é absoluto e deve seguir os limites impostos por sua função social, isto é, seu uso em conformidade não apenas com os interesses particulares do empregador, mas também os dos trabalhadores enquanto partes do organismo empresarial e da própria sociedade como um todo.
O poder diretivo, por consequência, também se limita à função social da propriedade, devendo ainda ser utilizado pelo empregador sempre em respeito aos direitos do empregado assegurados por todo o ordenamento jurídico, em especial, seu direito à intimidade, privacidade, honra, imagem e, sobretudo, dignidade.
Sob outra face, a dignidade da pessoa humana é um atributo intrínseco do próprio ser humano e à sua essência, com ele se desenvolvendo. É indissociável ao ser humano.
Exatamente por isso a Constituição Federal de 88 conferiu-lhe o status de princípio fundamental, integrando-a a parte do rol imutável de seu texto. Colocou-a ainda como atributo intrínseco do Estado Democrático de Direito, sendo valor supremo a ser respeitado e garantia mínima a todo indivíduo.
Da dignidade da pessoa humana desdobram-se os direitos à intimidade, privacidade, honra e imagem, que são direitos intrínsecos a todos os seres humanos, fazendo parte da proteção mínima necessária para que toda pessoa possa viver com dignidade e desenvolver plenamente sua personalidade. Exatamente em decorrência da importância destes direitos, a Carta Maior também lhes conferiu o status de direito fundamental e cláusula pétrea, tendo oponibilidade erga omnes, sendo, ainda, indisponíveis e irrenunciáveis.
O empregado, exatamente por ser pessoa humana na qualidade específica de trabalhador tem assegurado todos estes direitos que devem ser respeitados pelo seu empregador.
Por outro lado, o procedimento de revista é aquele utilizado por alguns empregadores a fim de proteger seu patrimônio empresarial de eventual depreciação. Pode ser realizada em caráter pessoal, entendida como aquele exame feito nos pertences do trabalhador como bolsas, sacolas e mochilas, ou em caráter íntimo, entendida como aquela realizada no próprio corpo do empregado com toques e/ou exigência que se dispa.
A legislação acerca do procedimento de revista no ordenamento jurídico brasileiro é ainda singela, limitada ao quanto disposto no artigo 373-A da Consolidação das Leis do Trabalho. Referido dispositivo legal deixa dúvidas interpretativas acerca da abrangência de sua aplicação, bem como da extensão dos limites que impõe, principalmente no que concerne as sua aplicabilidade ao empregado do sexo masculino, visto referir-se apenas à empregada mulher, e quanto ao significado da expressão íntima.
Acerca da sua aplicabilidade aos empregados do sexo masculino, a doutrina e jurisprudência são pacíficas quanto à extensão da referida legislação ao trabalhador do sexo masculino por analogia, posto que a Constituição Federal assegura a igualdade entre homens e mulheres nos termos do princípio da isonomia.
Já quanto à extensão da expressão íntima, apesar de ainda existir discussão, a doutrina e jurisprudência dominante têm entendido ser relativa tão somente àquela revista realizada no corpo do empregado, com toques e/ou a exigência que se desnude, sendo, portanto, tão somente esta proibida pelo artigo celetista.
Referido entendimento decorre da análise como um todo do ordenamento jurídico brasileiro, posto que a revista de caráter íntimo, independentemente da forma como é realizada, mesmo que respeitosa, já é atentatória aos direitos à intimidade, privacidade, honra e imagem do empregado, sobretudo, sua dignidade da pessoa humana.
Apesar de, aparentemente, existir um conflito entre o direito de propriedade do empregador e os direitos personalíssimos do empregado, fundados na dignidade da pessoa humana, o próprio ordenamento jurídico oferece a solução, posto que, limita o uso da propriedade empresarial conforme sua função social e coloca a dignidade da pessoa humana como sobreprincípio constitucional, que coordena e garante todo o Estado Democrático de Direito Brasileiro, sendo sua observância e respeito a própria condição para a existência humana.
Assim, apesar do empregador ter garantido seu direito de propriedade, este direito apenas será coberto pela proteção jurídica se seu uso sempre for de acordo com o interesse social de forma a não servir para atos atentatórios à lei e aos próprios valores sociais, jamais se sobrepondo as garantias individuais mínimas, em especial, a dignidade da pessoa humana, objetivo maior de proteção de todo o ordenamento jurídico pátrio e própria condição de existência do Estado Democrático de Direito Brasileiro.