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Sobre a mutabilidade semântica das sobras em cooperativas e sua disciplina constitucional tributária

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16/11/2012 às 16:10
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Retirar da assembleia geral o poder de dizer qual destino das sobras (art. 4°, VII, da Lei das Cooperativas) importa subversão da lógica do sistema cooperativo e malogro de seus princípios mais elementares. O art. 1.094, VII, do Código Civil representa um retrocesso no direito cooperativo.

1 – Prolegômenos

A pesquisa científica sobre as sociedades cooperativas tem avançado significativamente no mundo. No Brasil houve um período (logo após a entrada em vigor da Lei n° 5.764/71) em que muito se escreveu sobre o assunto. Depois disso houve um hiato e, nos últimos anos, os estudos sobre as cooperativas têm tomado novo fôlego.

O interesse sobre o tema se justifica e se renova a cada dia em função do fato de que, não bastasse a pujança do modelo cooperativo em vários setores do cenário econômico,  é patente o sentimento de que muito ainda há que se avançar no campo teórico. Institutos devem ser criados, outros melhor definidos e madurecidos, nesse carrossel incessante que é a Ciência.

Pois bem. O presente ensaio se debruça sobre o tema das sobras (assim no plural) da atividade cooperativa[1]. Somos movidos pela azáfama de aprofundar tal conceito para, ao fim e ao cabo desse estudo, lograr surpreender o instituto das sobras na sua intimidade estrutural – que a nós nos parece oferecer desdobramentos insuspeitos. Para tanto iremos, inclusive, propor uma nova abordagem sobre o tema.

Como todo estudo, este é um ponto de vista sobre um tema delimitado após um corte epistemológico. Nosso referencial teórico tomara estribo na Teoria Geral do Direito e na Constituição Federal, sobretudo. Outrossim, emprestaremos, sempre que possível, uma abordagem pragmática ao tema, a fim de que possamos definir as implicações jurídicas, máxime as tributárias, suscitadas pelo objeto de estudo.


2 – Cooperativas e a Constituição Federal

Com o advento da Carta Constitucional em 1988, o tratamento legal do cooperativismo assumiu – pela primeira vez – a dignidade de matéria constitucional no Brasil. As alusões às cooperativas são feitas ao longo de todo o texto da Constituição, ora com maior grau de abstração, ora definindo especificamente o trato a ser dispensado a particulares espécies de cooperativas. Ao longo dessas menções enunciativas é possível construir uma série de conceitos-chave para o cooperativismo, como se verá em seguida.

Vejamos alguns dos enunciados constitucionais que, por ora, mais nos interessam, haja vista sua correlação com o objeto dessa pesquisa.

Art. 146 – Cabe à lei complementar:

III – (...)

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

No momento o que nos interessa é destacar o reconhecimento constitucional de que as cooperativas perfazem uma atuação própria, específica, só delas. É a ilação que nos toma de assalto quando a Constituição expressamente prescreve que a atuação própria realizada por essas sociedades deve ter um tratamento tributário apropriado.

Art. 174 - (...).

§ 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

§ 3º. O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.

§ 4º. As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o artigo 21, XXV, na forma da lei.

Este enunciado constitucional, somado ao anterior (do art. 146, III, c), demandaria um estudo monográfico, tamanha a sua importância para o Direito Tributário Cooperativo. Diremos aqui, somente, que a interpretação que se faz é a de que a norma constitucional prescreve (sob o modal deôntico obrigatório) um tratamento diferenciado às cooperativas, pois fala em incentivo e estímulo, e diretamente prescreve tal promoção às cooperativas de garimpo, o que, por si só, tem significação que excede a própria prescrição e seu particular objeto. Tal reconhecimento constitucional exsurge clarividente do labor exegético quando este toma espeque numa postura cognoscente preocupada com a sistematicidade do texto.


3 – Cooperativas no Código Civil

O diploma legal disciplinador do cooperativismo, por excelência, é a Lei n° 5.764/71. Merece menção o fato de que foi a primeira na América Latina a tratar expressamente do chamado “ato cooperativo”[2]. Após a mais recente reforma, o Código Civil também passou a disciplinar o tema, e o fez apenas pontualmente, porém de maneira a manejar algumas importantes alterações[3] no regime jurídico cooperativista.

De acordo com o Código Civil (art. 982, parágrafo único) as cooperativas são sociedades do tipo simples. Eis aqui uma característica inarredável das sociedades cooperativas: debalde o nome que se dê, sua estruturação organizacional é típica de empresa. Já tivemos oportunidade de afirmar que “atividade societária organizada para a consecução de um objetivo comum e específico, de fim essencialmente econômico, em linhas gerais, não é outra coisa que não empresa”[4]. Empresa é antes um modelo de organização societária. Porém, há de ficar claro, desde já, que um tal aspecto econômico, inerente ao caráter empresarial, não importa necessariamente em lucro.

Fato é que o Código Civil lança luzes apenas sobre uma parcela do sistema cooperativo, pois não logra exauri-la, deixando boa parte do disciplinamento ainda sob a batuta da legislação especial[5], leia-se, Lei n° 5.764/71.

Assim é que as disposições do Código Civil, a despeito de diminuir a importância da Lei n° 5.764/71, vêm para lhe emprestar novo fôlego, na medida em que os dois diplomas se complementam. Por isso o intérprete, ao se debruçar sobre eles, deve ter o cuidado de, sempre que possível, conjugar tais disposições, manejando tanto o código quanto a lei para, a partir de ambos os textos, construir[6] as normas jurídicas cooperativas.


4 – As Peculiaridades Jurídicas das Cooperativas: cotejo do Código Civil com a Lei das Cooperativas

A atuação do legislador do Código Civil foi tímida. Parece que tentou evitar as polêmicas. Ainda assim, há novidades em relação à Lei n° 5.764/71. Destarte, cumpre tratar dos dois diplomas, traçando um paralelo entre ambos em seus pontos mais intimamente relacionados ao nosso objeto científico.

Art. 1.094 – são características da sociedade cooperativa:

I – variabilidade ou dispensa do capital social;

V – quorum, para a assembléia geral funcionar e deliberar, fundado no número de sócios presentes à reunião, e não no capital social representado;

VI – direito de cada sócio a um só voto nas deliberações, tenha ou não capital a sociedade, e qualquer que seja o valor de sua participação;

VII – distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado;

Tais disposições não esgotam o universo cooperativo. Há tão somente disposições gerais, dando conta de algumas características das cooperativas. É cediço que os componentes necessários à construção das normas jurídicas se encontram como que dispersos pelos mais diversos enunciados textuais normativos.

Cumpre transcrever, também, o art. 4° da Lei das Cooperativas. De ver está que a validade da maioria das suas normas subsiste.

Art. 4º - As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

II – variabilidade do capital social representado por quotas-partes;

VII - retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;

A ressalva feita pelo diploma civil a legislação especial (aart. 1.093) impõe ao intérprete um esforço no sentido de identificar as normas incompatíveis entre os dois diplomas. Mas mais importante do que isso é perceber os hiatos da novel legislação que devem ser sotopostos por outras proposições normativas, i.é., preenchidos pelas normas construídas a partir da legislação anterior. A relação, pois, entre os dois diplomas deve ser integrativa, naquilo, ao menos, em que não contrastam.

A posição, decerto, não é pacífica na doutrina. Alguns autores comungam da tese, em maior ou menor grau, quando outros simplesmente tomam por inconstitucional tudo o que está disposto no Código Civil sobre cooperativas[7].

Da leitura dos enunciados transcritos do Código Civil e da Lei das Cooperativas já se denota que esta última traz enunciados ausentes do corpo textual do primeiro. Será, então, que as características ali não existem mais? Pensamos que sim, elas subsistem.

No que pertine ao capital social houve novidade quanto à redação legal anterior. Acresceu-se a possibilidade de haver cooperativa sem capital social (art. 1.094, I). O capital social realmente só será elemento do qual não poderá se dissociar a cooperativa que, de acordo com seu objeto social, atua mais diretamente junto ao mercado. Ao que tudo indica agiu bem o legislador. Afinal, cuida-se de avanço e estímulo para as cooperativas, à moda do tratamento constitucionalmente dispensado.

No caput do artigo 4° da Lei n° 5.764/71 enuncia-se que as cooperativas são empresas criadas para prestar serviços aos seus associados. O mesmo dispositivo não se repete na legislação mais nova (C.C.). Contudo, apressamo-nos em afiançar que tal característica subsiste. O sistema cooperativista se funda precipuamente nesse elemento indissociável de sua arquitetura organizacional. Uma empresa só é cooperativa, dentre outros motivos igualmente fundamentais, porque criada para prestar serviços aos seus associados, e olvidar isso subverteria toda a lógica do sistema, descaracterizando-o. Esse é só um exemplo que atesta a tese da complementaridade entre as diversas disposições textuais dirigidas às cooperativas.

Assim, consubstancia-se indelével a dupla condição inerente ao associado: que é sócio e tomador dos serviços prestados pela cooperativa. Por outros torneios: sendo o fim da sociedade cooperativa prestar serviços a seus associados, perfaz-se como seu corolário lógico a posição de donos/clientes ínsita aos associados.

Em esforço analítico podemos decompor essa situação em duas relações jurídicas distintas, mas, ao mesmo tempo, indissociáveis: a de sócio/proprietário e a de usuário/tomador de serviços, ressalvados os contornos práticos dessa dupla condição (como o poder de voto ou a não tributação pelo ISS dos serviços prestado pela cooperativa ao associado[8]).


5 – As Sobras na Atividade Cooperativa e a Impossibilidade de Lucro

Empresas que atuam no ramo econômico manejam sempre a contingência de, ao final de seus exercícios financeiros, deparar-se com resultados positivos ou negativos. Com as cooperativas não é diferente. Pelo menos quanto a esta perspectiva pragmática e simplificadora.

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Em empresas mercantis, o resultado positivo se converte em lucro – que é o próprio fim da atuação nesta espécie societária. Em cooperativas não é assim. Há, inclusive, expressa vedação legal a este fim (art. 3° da Lei das Cooperativas). O elemento positivo por ventura havido ao final do exercício econômico em uma cooperativa perfaz-se em mera sobra – em tudo e por tudo diferente de lucro. O resultado negativo é prejuízo. PONTES DE MIRANDA[9] já afiançara que “a complexidade do suporte fático das sociedades cooperativas resulta de existir o elemento econômico sem a finalidade capitalística”.

Sublinhe-se que o lucro não é o objetivo da cooperativa, e nem a sobra o é[10]. De acordo com a sistemática de seu modelo, a finalidade econômica se dirige ao incremento do status sócio-econômico do cooperado, não da cooperativa, que só existe para prestar-lhes os serviços necessários para tanto. A atuação cooperativa visa o ganho em razão do esforço individual e através da ajuda mútua em benefício de todos. O ganho sobre os esforços alheios é contra a lógica cooperativista.

Com efeito, a não lucratividade das cooperativas pode ser entendida como uma decorrência lógica das características que engendram a tessitura jurídico-cooperativa como uma estrutura que não comporta o lucro. É dizer: a estrutura operacional e, sobretudo, jurídica da cooperativa, consubstanciada pelas normas e princípios cooperativos, implica na sua impossibilidade (jurídica) de auferir, em qualquer caso, lucro.

Sobre a distinção entre lucro e sobra vale citar RUI NAMORADO[11], baseado nas palavras de FRANCESCO GALGANO:

Como contraponto, pela simplicidade e clareza com que foi exposta, pode recordar-se a lição de Francesco GALGANO, para quem: “os retornos distribuídos pelas cooperativas não se confundem com os lucros distribuídos pelas sociedades lucrativas, ainda que uns e outros apresentem a característica comum de serem somas de dinheiro periodicamente repartidas entre os sócios. Os lucros representam uma remuneração do capital, e são repartidos entre os sócios na proporção do capital, com que cada um deles entrou; os excedentes são pelo contrário, o equivalente monetário da vantagem mutualística: nas cooperativas de consumo, de cuja prática nasceu o termo ‘retorno’, eles são o reembolso aos sócios do maior preço pago relativamente ao custo do bem ou do serviço recebido; são, nas cooperativas de trabalho, somas atribuídas aos sócios para completar o menor salário recebido relativamente ao que levaram para a sociedade”.

Na atuação econômica que desenvolve em favor de seus associados a cooperativa presta serviços. Esses serviços têm, por certo, um custo. Então, a operação cooperativa é urdida no sentido de minorá-lo ao máximo e, por fim, distribuí-lo entre os associados, em geral, na proporção de suas relações com a cooperativa, não objetivando resultados positivos ao final, mas o “zeramento” de suas contas.

Porém, em virtude da hipercomplexidade das relações negociais e econômicas experimentadas no mercado atualmente, nem sempre a cooperativa consegue fixar com precisão os termos de seus custos. Os custos para a sociedade cooperativa são o somatório dos custos de aquisição de bens, mais os custos de sua administração (com empregados, ativo imobilizado, energia elétrica etc.), para ficar no exemplo de uma cooperativa de consumo. Só estes custos são repassados ao cooperado, sem qualquer ganho para a cooperativa.

Este, como cediço, não é o modelo operacional das empresas mercantis, onde o lucro é embutido/somado no custo (valor de aquisição + custos operacionais), para assim definir o valor final. Então, temos o seguinte para a empresa mercantil do ramo de supermercados: Valor final = custo de aquisição + custos operacionais + lucro.

Tome-se o caso de cooperativa de consumo, onde a cooperativa compra os produtos no mercado e opera de maneira a distribuí-los a seus associados a preço de custo (valor final = valor de aquisição + custos operacionais), onde é dificílimo, na prática, delimitar o custo final e realizar a distribuição proporcional dos custos operacionais, posto que as variáveis alteram-se a cada dia, ao sabor do mercado.

Pela mesma dificuldade passam as outras espécies de cooperativa. Numa cooperativa de produção agropecuária, v.g., cuida-se de tomar o conjunto das produções dos associados, eventualmente fazendo-as passar por algum melhoramento (processos de industrialização), agregando-se valor para vendê-las no mercado pelo melhor preço para o associado. Nesses casos há uma espécie de adiantamento do valor para o cooperado, com base em projeções mercadológicas. Assim é que ao final do exercício as cooperativas podem ter resultados positivos – com sobras, ou resultados negativos, donde advirá o prejuízo.


6 – Sobra e a Mutabilidade de seu Conteúdo Semântico e Pragmático

A questão fundamental que se põe a esta altura desse breve ensaio é: há coincidência na significação que a sobra assume nas diversas espécies de cooperativas e em seus mais diversos ramos de atuação no mercado? Ou, sob um viés mais pragmático: jurídica e contabilmente a sobra, em qualquer cooperativa considerada, representa a mesma coisa? Enfim, só existe uma sobra no modelo cooperativista, entendida pelo senso comum da dogmática cooperativista como o resultado positivo (e satisfatório) ao final do exercício? Cremos que não.

Jungidos por uma perspectiva pragmática do fenômeno cooperativo, e atentos às conseqüências práticas que cada detalhe nesse ramo tem para o aspecto nevrálgico da sua tributação, passamos a sublinhar a pulsante complexidade do subsistema jurídico cooperativo – que não cessa de nos surpreender, dando conta do emblemático caso das sobras (assim mesmo, no plural). Vejamos analiticamente alguns casos paradigmáticos.

Na cooperativa de produção agropecuária – via de regra – é proporcionalmente antecipado ao cooperado o valor projetado para a sua produção no momento em que este a entrega. Uma tal projeção se baseia em dados instantâneos do mercado. Então, no momento do fechamento das contas em nosso exemplo, constata-se a ocorrência de sobra, como o resultado positivo advindo diretamente dos negócios realizados com o mercado, onde se conseguiu um preço melhor do que o projetado anteriormente. Os cooperados, nesse caso, recebem a diferença sobre o que receberam a menor. Tem-se, enfim, um ganho financeiro efetivo.

Pois bem. Em uma cooperativa de consumo – via de regra – adquire-se mercadorias junto ao mercado para, então, oferecê-las aos cooperados. O preço de entrega (afinal, não se trata de venda, pelo que não incide o ICMS) desses produtos aos cooperados é composto pelo valor de aquisição, somado aos custos operacionais da cooperativa (os quais são aplicados a título de projeção no momento de fixação daquele custo final). Não há margem de ganho para a cooperativa. Ao final do exercício, portanto, poderá advir sobra ou prejuízo. Seguindo a hipótese de haver sobra, dir-se-á apressadamente que estamos diante da mesma hipótese do exemplo anterior, ou seja, diante de resultado positivo.

Mas será que a sobra, nesse último caso, consubstancia-se realmente no mesmo resultado encontrado na cooperativa agropecuária, sob o ponto de vista pragmático?


7 – Nossa Proposta: a Sobra Stricto Sensu e a Sobra Lato Sensu – Implicações Tributárias

Por certo, na cooperativa de produção agropecuária, se houver sobra, é porque o valor antevisto para a venda da produção foi superado na relação negocial com o mercado, de modo que houve efetivo ganho ao final para o cooperado, ou seja, resultado positivo. Mas na cooperativa de consumo, o que é tido ao final do exercício como sobra – sob o manto insuspeito de resultado positivo –, nada mais é, em verdade, do que a mera devolução de valores que o cooperado pagou a maior na aquisição dos bens e produtos junto a cooperativa. Ou seja, sobra há em cooperativas de consumo somente nas ocasiões em que a cooperativa cobra do cooperado valor que está para além do efetivo custo final. Destarte, a sobra não será comemorada como resultado “positivo” ao final do exercício pelo cooperado[12]. É como se houvesse duas sobras distintas, uma para cada espécie de cooperativa de nosso exemplo.

Em sendo assim, havemos de constatar criticamente o seguinte: a sobra assume conteúdo semântico distinto vinculado à arquitetura estrutural e organizacional de uma cooperativa, de acordo com o ramo em que atua e conforme sua posição no ciclo econômico do mercado.

Com efeito, o resultado final nos dois casos, do ponto de vista contábil, é o mesmo: sobra. Mas a sistemática operacional que a ocasiona finda por alterar sutilmente sua significação de base, e tal distinção é suficientemente relevante para que possamos afirmar a existência de duas espécies de sobra. Cremos, pois, seja-nos permitido, no sítio apropriado desse ensaio, propor uma classificação jurídica das sobras, em: sobra stricto sensu ou em sentido estrito e sobra lato sensu ou em sentido amplo.

A primeira espécie, a sobra stricto sensu, diz respeito ao resultado final efetivamente positivo sob a perspectiva do cooperado, onde a sobra se traduz num acréscimo de valor, um ganho real, ao seu trabalho ou produção, como acontece relativamente à sistemática realizada numa cooperativa como a de produção agropecuária. A outra espécie, qual seja, a sobra lato sensu, aplica-se ao resultado contábil “positivo” ao final do exercício, mas que não se manifesta como efetivo ganho do ponto de vista do cooperado, pois que não há ali acréscimo real em sua condição sócio-econômica.

A relevância de uma tal distinção se impõe para além do aspecto da precisão terminológica que a ciência reclama: logra surpreender o fenômeno jurídico cooperativo em dois elementos distintos para possibilitar, a partir daí, o aprofundamento teórico desta distinção e o conhecimento das conseqüências jurídicas daí decorrentes, como o tratamento tributário adequado a cada espécie de sobra.

Obtempere-se, por oportuno, que não nos passa despercebida a sobra existente em função das relações que a cooperativa trava com não-associados (entendidos aqui como os que poderiam sê-lo, mas não o são por qualquer motivo). Nesses casos a lei é taxativa ao dispor sobre a sua tributação, de acordo com a dicção dos artigos 85, 86 e 87 da Lei n° 5.764/71.

O importante é dizer que, conforme nosso entendimento, nos dois casos de sobra, stricto sensu e lato sensu, quando consideradas apenas as relações com associados, estas não devem sofrer tributação – uma vez considerada a posição da cooperativa. Isto porque tais valores apenas transitam em seu caixa e não correspondem a faturamento ou lucro, por exemplo.

Agora, quanto aos cooperados, entendemos que as sobras stricto sensu auferidas devem sofrer a tributação, v.g., do Imposto de Renda Pessoa Física. O mesmo não podemos afirmar quanto aos associados que percebem sobra lato sensu. Nesse caso a melhor solução jurídica seria a não incidência do IRPF, simplesmente porque não configurada a sua hipótese de incidência. Afinal, não há ganho tributável (como efetivo acréscimo patrimonial – o que obsta as retenções na fonte por substituição tributária).

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Sobre o autor
Helder Gonçalves Lima

Professor de Direito Tributário da Universidade Federal de Alagoas - UFAL Mestre e Doutorando em Direito Tributário pela PUC/SP Ex-Vice-presidente da Comissão de Estudos Tributários da OAB/AL Advogado e Consultor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Helder Gonçalves. Sobre a mutabilidade semântica das sobras em cooperativas e sua disciplina constitucional tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3425, 16 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23029. Acesso em: 19 nov. 2024.

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