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Insegurança pública: descaso ou crime?

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O acompanhamento presencial do representante do Ministério Público nos atos de polícia judiciária, sem a necessidade de repetição na fase judicial, proporcionaria economia processual, de tempo e de recursos, com efetivo ganho de credibilidade e valoração na investigação policial e promoção da justiça.

O Brasil vive uma das maiores crises na segurança pública, embora a grande maioria da população ainda não tenha se dado conta do que está ocorrendo. Esse desconhecimento decorre do marketing governamental, principalmente em relação aos governos estaduais, que tem vendido a falsa idéia de diminuição nos números indicativos de incidência de criminalidade. Além desse fator, há um alto índice de notificações de crimes não realizadas pela população em razão do descrédito nos órgãos policiais, que aliado a maquiadura dos índices estatísticos, produz os números satisfatórios alardeados pelo governo. O cidadão mediamente informado e, que lê as páginas policiais, sabe que nunca se viveu tão perigosamente, não somente nas grandes cidades, mas também no interior, onde o crime tem feito vítimas todos os dias. A falta de políticas públicas e de gestão profissional na área de segurança tem desperdiçado o dinheiro público com direcionamento inadequado e pouco producente nos órgãos policiais do estado. O crime não respeita ideologia ou classe social. A idéia de que a criminalidade somente atingia as classes sociais menos favorecidas, residentes nas periferias está escancaradamente desmentida. As residências de empresários, políticos e autoridades do executivo tem sido alvo da marginalidade. Ninguém mais está a salvo. O que está faltando acontecer para que as autoridades responsáveis acordem de seu sono esplêndido?

A situação merece uma reflexão e uma tomada de posição, pois o sistema de segurança pública no Brasil está falido. O descaso e o investimento insuficiente remontam de décadas de gestão política temerária e, em alguns casos até criminosa, nos órgãos policiais.

Paradoxalmente, após a abertura política no Brasil, houve um fortalecimento nas ações da Polícia Militar em detrimento da Polícia Civil, cujo sucateamento foi orquestrado em todo país. É cediço que as prisões em flagrante realizadas pela Polícia Militar, embora alimentem as estatísticas do governo, no sentido de mostrar uma ação enérgica no combate ao crime, não atingem o crime organizado de maneira eficaz. Em relação ao tráfico de entorpecente então, a realidade é assustadora. Diariamente são presos “traficantes” que comercializam algumas pequenas porções de entorpecentes, verdadeiras “formigas” que são imediatamente substituídas, quando de suas prisões. Os financiadores do tráfico e àqueles que importam a droga não são presos, pois não há uma investigação eficiente, uma vez que a polícia investigativa vem sendo alijada já há alguns anos. Será coincidência que isso esteja ocorrendo em todo o país? A quem interessa o enfraquecimento da investigação criminal no Brasil? O fato é que o crime organizado já se infiltrou em todos os seguimentos da sociedade. Empresários, políticos, agentes públicos, nenhuma dessas categorias está imune a cupidez pelo ganho ilícito da corrupção. A grande maioria da população pode até acreditar que os grandes traficantes são os “Beiras Mar” da vida. Para quem tem um pouco de noção dos fatos, sabe que esses são apenas “testas de ferro”.  A ponta de um grande “iceberg” do crime organizado no Brasil.

Infelizmente o nosso sistema normativo não prevê responsabilização de governantes por gestão medíocre nas áreas de educação, saúde e segurança pública. Um absurdo que ocorre nesse país, pois, a gestão temerária nessas áreas constitui verdadeiros crimes de lesa pátria, com milhares de vítimas sem voz todos os dias.

A sociedade está desamparada. Quem tem recursos investe em segurança particular; e quem não tem?

A segurança pública é direito do cidadão e dever do Estado, assim preceitua a Carta Magna. No âmbito estadual a atribuição é dividida entre a polícia militar e a polícia civil. A primeira compete o policiamento ostensivo com o objetivo maior de inibir o criminoso a cometer o crime, enquanto, a polícia civil cabe a investigação para apuração da autoria e a colheita de provas para prover o Ministério Público no oferecimento da denúncia. A alta incidência criminal e o baixo número de esclarecimentos de autoria de crimes denotam que as duas polícias não estão cumprindo suas funções eficientemente. A disputa entre as duas polícias é evidente, embora os governos insistam em jogar areia nos olhos da população, alegando que há um entrosamento nos órgãos policiais. As mazelas das duas polícias também são públicas e notórias. Corrupção, prevaricação e, numa enxurrada nacional, espocam notícias diárias da ação, por todo país, de grupos de extermínio, formados quase que invariavelmente por policiais militares. Há de se observar que essas ocorrências não são circunspectas a este ou aquele estado da federação. Portanto, o atual modelo de segurança pública nacional já não funciona mais. Apesar disso, quando se trata de se analisar a segurança pública, muitos “especialistas” dão seus palpites, dentre estes advogados, promotores, psicólogos e até bombeiros. Talvez sejam excelentes profissionais nas suas áreas de atuação, mas não entendem nada de segurança. Por incrível que pareça os profissionais de polícia que atuam nesse mister não são ouvidos.

A necessidade de uma reengenharia nos órgãos de segurança é premente. Alguns defendem a unificação das polícias estaduais, mas, face aos lobbys corporativistas contrários a essa proposta no congresso e a resistência da grande maioria dos governadores, dificilmente isso ocorrerá.

Há algum tempo atrás defendemos, em artigo amplamente divulgado na internet, o Ciclo Completo de Polícia Judiciária. Nesse modelo, a polícia civil estaria encarregada do policiamento ostensivo, com parte de seu efetivo uniformizado, como também da investigação dos crimes e dos procedimentos de polícia judiciária, com atuação harmônica. À polícia militar caberiam as ações de enfrentamento tático a grupos criminosos armados, ações de defesa civil e controle de distúrbios civis. Evidentemente os efetivos e as atribuições das duas polícias teriam que ser reformulados. Dentre as alterações normativas, a Carta Magna teria que ser emendada. As dificuldades para isso já foram acima elencadas.

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Recentemente surgiu a idéia de se integrar as delegacias aos gabinetes dos promotores de justiça, com o fito de se preparar o inquérito policial com o suporte probatório mais eficiente ao oferecimento da denúncia, com o acompanhamento pelo parquet, sendo que as atividades de direção da polícia judiciária e os procedimentos de investigação continuariam sob responsabilidade do Delegado de Polícia. O Promotor de Justiça teria a incumbência de indicar de imediato as provas necessárias para a denúncia, bem como funcionar como fiscal da lei na formalização dos depoimentos, quebra de sigilos, etc.

Na esteira dessa idéia, talvez se encontre uma solução para alguns entraves de ordem administrativa no entrosamento das polícias civil e militar, e outro de ordem legal no âmbito dos procedimentos judiciais. Em face do sistema inquisitorial adotado na investigação policial no Brasil, todos os depoimentos têm que ser novamente repetidos em juízo, onde há o contraditório. Não raramente, testemunhas que prestam informações valiosas nas delegacias, mudam seus depoimentos em juízo, quer por medo dos autores dos crimes, quer por orientação de seus advogados em razão de seu grau de comprometimento com os fatos objeto do procedimento judicial. Não pode se olvidar ainda os casos de testemunhas que são constrangidas a prestar depoimentos para validar teses investigativas. Não importa, em quaisquer dessas circunstâncias o prejuízo é grande para a justiça.

Assim nos parece que um sistema misto compreendendo o sistema inquisitorial na fase de investigação com contraditório nos depoimentos seria extremamente interessante. O depoimento prestado perante o Delegado de Polícia, com o acompanhamento presencial do representante do Ministério Público, bem como a gravação desses procedimentos em vídeo, tornaria dispensável a repetição do depoimento em juízo, exceto em caso de dúvida suscitada com base em provas supervenientes ou a critério do Juiz.

O sistema proposto funcionaria da seguinte forma:

1.     Polícia Militar responsável pelo policiamento ostensivo, inclusive com a atribuição dos registros de notícias-crime para apreciação da autoridade de polícia judiciária e alimentação do banco de dados criminais, a ser utilizado pelos órgãos de segurança. No desempenho dessas atribuições não há necessidade de nenhuma alteração de norma federal.

2.     Polícia Civil responsável pela investigação, apuração de autoria das infrações penais, e demais atos concernentes a polícia judiciária sob a direção do Delegado de Polícia, com o acompanhamento presencial de representante do Ministério Público nas oitivas de testemunhas e procedimentos destinados a violação legal de sigilo de telecomunicações e bancário.  As delegacias de polícia passariam a funcionar em sede de fóruns nas comarcas, com Delegados de Polícia e Promotores de Justiça, designados para funcionarem junto à polícia judiciária. Atualmente os Ministérios Públicos dos estados já têm promotores designados para o acompanhamento de alguns procedimentos de polícia judiciária, portanto, não haveria dificuldade em se criar um seguimento funcional para o acompanhamento específico das atividades diuturnas de polícia judiciária. Em alguns sistemas estrangeiros, o representante do Ministério Público desenvolve suas funções em conjunto com a polícia antes da apresentação do caso para apreciação judicial. As alterações necessárias no código de processo penal, no que tange as mudanças nas atribuições do Ministério Público e da Autoridade Policial são de rito legislativo ordinário, sem a extrema dificuldade que ocorre numa alteração da Carta Magna.

Sedimentadas as atribuições das polícias, civil e militar, poder-se-á, quem sabe nesse novo modelo, haver um real entrosamento nas atividades de segurança pública. O acompanhamento presencial do representante do Ministério Público nos atos de polícia judiciária, sem a necessidade de repetição na fase judicial, proporcionaria, nesse modelo proposto, economia processual, de tempo e de recursos, com efetivo ganho de credibilidade e valoração na investigação policial e promoção da justiça.

Apesar do quadro caótico atual dos órgãos policiais em todo país, ainda há uma gama enorme de homens e mulheres que amam e desempenham suas funções com o sacrifício do bem estar e segurança de suas famílias. Esses policiais brasileiros são massacrados diariamente no exercício de suas funções em condições de trabalho desumanas e salários aviltantes, com o vilipêndio moral da pecha de corruptos, imposto pela imprensa, em face do comportamento de alguns que se desviaram do caminho da lei.

O alerta está aí. A sociedade precisa acordar e exigir mudanças nas políticas governamentais, do contrário nossos filhos e netos amargarão um estado de violência e morte comparável a uma guerra civil.

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Sobre o autor
Juvenal Marques Ferreira Filho

Bacharel em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos - turma de 86. Sócio proprietário do escritório de advocacia MF - Marques Ferreira. Ex-Sargento da Polícia Militar e Delegado de Polícia aposentado. Estudioso da Segurança Pública, onde militou por 40 anos, tem diversos arigos sobre o tema publicados nos sites da rede mundial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA FILHO, Juvenal Marques. Insegurança pública: descaso ou crime?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3428, 19 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23044. Acesso em: 19 abr. 2024.

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