7. Natureza da interrupção cautelar da estação. Competência.
Passa-se, agora, a analisar a natureza jurídica da interrupção cautelar de uma estação transmissora de radiocomunicação (lacre de estação). Ora, ao proceder ao lacre de determinada estação, a fiscalização pratica uma medida cautelar, que essencialmente não se confunde com a sanção em si. De início, convém registrar que tanto a LGT como o arcabouço normativo aplicável ao setor não faz referência à cautelar como sanção administrativa[12].
O art. 45 da Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo na esfera federal, trata da medida cautelar sob o rótulo de providências acautelatórias:
Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado. [grifo nosso]
Dessa forma, fica possibilitado à Administração Pública, in casu à Anatel, a adoção de medida cautelar consistente no lacre de estação, inclusive sem prévia manifestação do interessado, desde que a situação fiscalizada configure risco iminente ao interesse público[13]. Na mesma linha dispõe a LGT, em seu art. 175, parágrafo único, ao aduzir que apenas as medidas cautelares poderão ser tomadas antes da defesa. Para tanto, deve a Administração Pública motivar o lacre da estação.
Nessa esteira, ressaltando a lesividade do mau uso do espectro, vale colacionar trecho da obra de Agapito Machado e Agapito Machado Junior[14], no qual afirmam que é sabido e notório que a inobservância das regras técnicas, indispensáveis ao correto uso das frequências radioelétricas, pode ensejar situações de risco concreto à coletividade: prejudica serviços essenciais, interfere catastroficamente em voos de aeroportos e na navegação de embarcações marítimas e fluviais, perturba concessionários que se submetem à disciplina legal para funcionamento de suas emissoras. Além disso, degradam a qualidade das frequências próximas à sua.
Voltando à natureza do lacre da estação, é preciso deixar claro que a medida cautelar não pode ser confundida com a sanção administrativa. Celso Antônio Bandeira de Mello[15] diferencia bem a providência acautelatória da sanção, como se vê do ensinamento abaixo transcrito:
Cumpre discernir sanções administrativas de providências administrativas acautelatórias, que muitas vezes poderiam ser com elas facilmente confundidas. Importa – e muito – fazer tal distinção porque, como não se submetem à integralidade dos aludidos princípios, se fossem confundidas com as sanções administrativas causariam a impressão de que não se poderia falar em um regime uniforme para estas últimas.
Providências administrativas acautelatórias são medidas que a Administração muitas vezes necessita adotar de imediato para prevenir danos sérios ao interesse público ou à boa ordem administrativa e cuja finalidade não é – como a das sanções – intimidar eventuais infratores para que não incorram em conduta ou omissão indesejada, mas diferentemente, é a de paralisar comportamentos de efeitos danosos ou de abortar a possibilidade de que se desencadeiem. Susana Lorenzo aparta as duas figuras com suma brevidade e clareza.
Quase sempre tais providências precedem sanções administrativas, mas com elas não se confundem. Assim, e.g., a provisória apreensão de medicamentos ou alimentos presumivelmente impróprios para o consumo da população, a expulsão de um aluno que esteja a se comportar inconvenientemente em sala de aula, a interdição de um estabelecimento perigosamente poluidor, quando a medida tenha que ser tomada sem delonga alguma, são medidas acautelatórias e só se converterão em sanções depois de oferecida oportunidade de defesa para os presumidos infratores. Como se vê, em certos casos a compostura da providência acautelatória é prestante também para cumprir a função de sanção administrativa, mas só assumirá tal caráter, quando for o caso, após a conclusão de um processo regular, conforme dito.
Na verdade, a medida cautelar integra o chamado poder de polícia da Administração Pública, por meio do qual a atividade estatal condiciona a liberdade e a propriedade individuais, ajustando-as aos interesses da coletividade. Mais uma vez se vale das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello[16]:
As medidas de polícia administrativa frequentemente são autoexecutórias: isto é, pode a Administração Pública promover, por si mesma, independentemente de remeter-se ao Poder Judiciário, a conformação do comportamento do particular às injunções dela emanadas, sem necessidade de um prévio juízo de cognição e ulterior juízo de execução processado perante as autoridades judiciárias. Assim, uma ordem para dissolução de comício ou passeata quando estes sejam perturbadores para a tranquilidade pública, será coativamente assegurada pelos órgãos administrativos. Estes se dispensam de obter uma declaração preliminar do Judiciário, seja para declaração do caráter turbulento do comício ou da passeata, seja para determinar sua dissolução.
A interrupção de um espetáculo teatral, por obsceno, será procedida, do mesmo modo, pela Administração Pública, sem que esta obtenha prévia declaração judicial reconhecendo e autorizando a paralisação de exibição teatral. A apreensão de gêneros alimentícios impróprios para o consumo, por deteriorados ou insalubres, também é medida coativa passível de ser posta em prática pelo Executivo, sem recurso às vias judiciárias, tão logo constate a irregularidade.
Em suma, tem-se que o lacre da estação se apresenta como uma medida cautelar, diferente da sanção e integrante do poder de polícia da Anatel, concretizado pelas ações de fiscalização. Confere-se à Agência, então, o poder para proceder ao lacre desde que possua poderes para fiscalizar a conduta infratora. É de se dizer: o poder para proceder ao lacre está inserido no poder fiscalizador.
Essa conclusão, vale mencionar, deriva da própria Lei nº 10.871, de 20 de maio de 2004, modificada pela Lei nº 11.292, de 26 de abril de 2006, a qual criou a carreira de Regulação e Fiscalização de Serviços Públicos de Telecomunicações e disciplinou as respectivas competências:
Art. 3º São atribuições comuns dos cargos referidos nos incisos I a XVI, XIX e XX do art. 1º desta Lei: (Redação dada pela Lei nº 11.292, de 2006)
I - fiscalização do cumprimento das regras pelos agentes do mercado regulado;
(...)
Parágrafo único. No exercício das atribuições de natureza fiscal ou decorrentes do poder de polícia, são asseguradas aos ocupantes dos cargos referidos nos incisos I a XVI, XIX e XX do art. 1o desta Lei as prerrogativas de promover a interdição de estabelecimentos, instalações ou equipamentos, assim como a apreensão de bens ou produtos, e de requisitar, quando necessário, o auxílio de força policial federal ou estadual, em caso de desacato ou embaraço ao exercício de suas funções. (Redação dada pela Lei nº 11.292, de 2006)
No mesmo sentido, existe jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF confirmando a competência da Anatel para lacrar equipamentos utilizados por rádios comunitárias, com fundamento no exercício de seu poder de polícia[17].
Dessa forma, inquestionável é o poder da Agência para lacrar estações em razão de infrações relacionadas com suas competências, dentre as quais se incluem o uso de radiofrequência e a certificação de equipamentos. O mesmo ocorre quanto aos aspectos técnicos das infrações relacionadas ao serviço de radiodifusão, cuja competência fiscalizadora da Anatel é expressa, consoante se observa do já mencionado parágrafo único do art. 211 da LGT.
A dúvida poderia surgir quanto aos demais aspectos das infrações relacionadas ao serviço de radiodifusão, cuja competência para outorga pertence ao Ministério das Comunicações. Ocorre, como já dito, que os poderes para fiscalização dos aspectos não técnicos dessas infrações foram delegados à Anatel, por meio de Convênio. Entende-se, então, que também se defere à Agência poderes para lacrar estações em razão de irregularidades relacionadas a aspectos não técnicos de infrações relacionadas ao serviço de radiodifusão, mesmo sem prévia solicitação do Ministério das Comunicações.
No caso, porém, de lacre realizado pela fiscalização da Anatel em razão de infrações relacionadas com o serviço de radiodifusão (aspectos técnicos ou não técnicos), o Ministério das Comunicações deve ser comunicado do lacre para que possa tomar as medidas que entender cabíveis (manter o lacre ou proceder ao deslacre). Isso porque o Regulamento de Fiscalização da Anatel, aprovado pela Resolução nº 596/2012, determina que a interrupção cautelar ocorra ad referendum da autoridade competente[18].
Salienta-se, no entanto, que se o lacre realizado pela fiscalização da Anatel tiver sido motivado pelo cometimento de uma infração relacionada às competências da Agência, não cabe ao Ministério das Comunicações proceder ao deslacre, caso venha a tomar conhecimento do lacre. Se o órgão ministerial pudesse, por exemplo, deslacrar estações lacradas em razão do uso não autorizado do espectro, a administração deste por parte da ANATEL restaria inviabilizada, pois não haveria qualquer controle sobre as radiofrequências que estariam sendo usadas pelos administrados.
O que se veda à Anatel, quanto às infrações relacionadas ao serviço de radiodifusão em si, é a aplicação de sanção. Tendo em mente, porém, que o lacre de estação não é espécie de sanção, inserindo-se, na verdade, no poder de fiscalização, tal vedação não se aplica à Agência nesse ponto, que pode, sim, proceder ao lacre.
Deve-se chamar a atenção, por fim, para a necessidade de que o lacre seja sempre motivado pela autoridade administrativa, sendo utilizado com responsabilidade e tendo em mente que se trata de medida excepcional, não devendo ser encarada como sendo ordinária. Deve sempre restar demonstrada a urgência da medida cautelar.
8. Conclusão.
A divisão de competências entre Administração Pública Federal Direta e Indireta se dá, num aspecto mais amplo, em razão da própria divisão realizada pelo texto constitucional entre serviço de telecomunicações e serviço de radiodifusão.
Assim, o Ministério das Comunicações permanece responsável pelos serviços de radiodifusão, ao passo que a Anatel surge como a agência reguladora responsável pelos demais serviços de telecomunicações e pela administração do espectro radioelétrico, o que abrange a expedição de autorização para uso de radiofrequência e a certificação de produtos.
Com isso, pode-se dizer, em suma, que atualmente à Anatel compete (i) proceder à outorga para exploração dos serviços de telecomunicações; (ii) expedir autorização de uso de radiofrequência; (iii) certificar produtos emissores de radiofrequência; (iv) fiscalizar as irregularidades relacionadas ao uso de radiofrequência, à certificação de produtos, ao serviço de radiodifusão em si e aos demais serviços de telecomunicações; (v) instaurar e instruir processos sancionadores que tenham como objeto irregularidades relacionadas ao uso de radiofrequência, à certificação de produtos, ao serviço de radiodifusão em si e aos demais serviços de telecomunicações; e (vi) aplicar sanção às irregularidades relacionadas ao uso de radiofrequência, à certificação de produtos e aos demais serviços de telecomunicações[19].
Ao Ministério das Comunicações, por sua vez, compete (i) proceder à outorga para exploração do serviço de radiodifusão; e (ii) aplicar sanção às irregularidades relacionadas ao serviço de radiodifusão em si.
No que se refere à fiscalização levada a cabo pela Anatel, havendo constatação de que se trata de irregularidade relacionada ao serviço de radiodifusão, a Agência deve, em razão da delegação de competência, instaurar e instruir o processo sancionador e encaminhá-lo ao Ministério das Comunicações para que este aplique, se for o caso, a sanção administrativa.
Registra-se, então, que a discussão sobre as competências da Anatel e do Ministério das Comunicações não deve centrar-se na diferenciação entre entidades outorgadas (regulares) e não outorgadas (clandestinas) para o serviço de radiodifusão. O foco deve ser direcionado à natureza das infrações apuradas. Se relacionadas ao serviço de radiodifusão, a competência para aplicar a sanção é do Ministério das Comunicações; se relacionadas às competências da Agência, é da Anatel.
Nessa esteira, cada infração deve ser tratada isoladamente, com base em sua autonomia. Assim, sempre que a Anatel, em sua fiscalização, detectar, por exemplo, entidade de radiodifusão clandestina, deve autuá-la por uso não autorizado do espectro e, em processo separado, autuá-la por exploração do serviço de radiodifusão sem a correspondente outorga ministerial. Quanto a esta infração, a Anatel deve instruir o feito e encaminhá-lo ao Ministério das Comunicações para aplicação de sanção. Quanto àquela, a própria Anatel deve instruir o feito e ela própria proceder à aplicação da sanção. Realmente, o fato de ela estar prestando o serviço sem a necessária roupagem formal impede que ela seja considerada, regular e legalmente, uma entidade outorgada. Não impede, contudo, seu sancionamento na esfera punitiva da Administração, uma vez que, materialmente, estava prestando o serviço.
Por fim, tem-se, ainda, que o a interrupção cautelar de estação (lacre) se apresenta como uma medida cautelar, de natureza jurídica distinta da da sanção administrativa, e integrante do poder de polícia da Anatel, concretizado pelas ações de fiscalização. Confere-se à Agência, então, o poder para proceder ao lacre desde que possua poderes para fiscalizar a conduta infratora, ainda que o objeto de fiscalização se relacione, por exemplo, ao serviço de radiodifusão. É de se dizer: o poder para proceder ao lacre está inserido no poder fiscalizador.
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