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O decreto legislativo como instrumento de controle da atividade normativa das agências reguladoras

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11/01/2013 às 11:53
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Pode o Congresso Nacional sustar os atos normativos regulatórios das agências reguladoras por meio de decreto legislativo?

Resumo: Este estudo versa sobre o controle da atividade normativa das Agências Reguladoras pelo Congresso Nacional pela via do decreto legislativo. Examina-se: a) a função normativa regulamentar como o poder/dever de editar regulamentos destinados à execução da lei; b) a reserva de lei, a reserva de parlamento e a reserva de norma como vertentes do princípio da legalidade; c) a competência regulamentar como meio de disciplinar a discricionariedade administrativa; d) a sujeição das Agências Reguladoras ao regulamento expedido pelo Chefe do Poder Executivo; e) os regulamentos de execução, os regulamentos autônomos e os regulamentos delegados; f) a inconstitucionalidade do regulamento que ultrapassa os limites da lei; g) a deslegalização; h) a descentralização administrativa como origem da competência normativa das Agências Reguladoras; i) o ato normativo e os atributos de abstração, generalidade e impessoalidade; j) o decreto legislativo como ato normativo primário; k) o decreto legislativo como expressão da atuação do Congresso Nacional como legislador negativo; l) o efeito ex tunc do decreto legislativo que susta as consequências jurídicas do ato regulamentar; e m) a necessidade de que a atuação das Agências Reguladoras seja legitimada pela sua estrita vinculação às políticas públicas.

Palavras-chave: AGÊNCIAS REGULADORAS; FUNÇÃO NORMATIVA REGULAMENTAR; RESERVA DE LEI; RESERVA DE PARLAMENTO; RESERVA DE NORMA; REGULAMENTO DE EXECUÇÃO; REGULAMENTO AUTÔNOMO; REGULAMENTO DELEGADO; DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA; ATO NORMATIVO PRIMÁRIO; POLÍTICAS PÚBLICAS.

Sumário: Introdução. 1. Princípios reitores da relação entre a lei e o regulamento e os limites materiais dos atos normativos regulamentares. 1.1. Reserva de lei e competência regulamentar. 1.2. Competência regulamentar do Presidente da República. 1.3. Da delegação da competência regulamentar diretamente às Agências Reguladoras. 1.4. Regulamentos de execução. 1.5. Princípios reitores da relação entre a lei e o regulamento de execução. 1.6. Regulamentos autônomos. 1.7. Regulamentos autônomos no Brasil. 1.8. Regulamentos delegados. 1.9. Reserva de Regulamento. 1.10. Inconstitucionalidade do regulamento que exorbita do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. 1.11. Inconstitucionalidade na omissão do poder regulamentar. 2. Deslegalização e leis delegadas. 2.1. O instituto da deslegalização. 2.2. O instituto da delegação legislativa. 2.3. A deslegalização no Brasil. 2.4. Delegação legislativa. 3. A natureza da competência normativa das Agências Reguladoras brasileiras. 3.1. A descentralização administrativa. 3.2. A discussão acerca da competência normativa diferenciada das Agências Reguladoras que possuem sede constitucional. 4. O decreto legislativo como elemento do processo legislativo constitucional. 5. O decreto legislativo como instrumento de controle da atividade normativa do poder executivo. 5.1. Os atributos do ato normativo. 5.2. Efeitos da sustação do ato normativo por decreto legislativo. 5.3. O déficit democrático das Agências Reguladoras. Conclusão. Bibliografia e notas bibliográficas.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho vai tratar da possibilidade do fundamento constitucional e dos instrumentos de controle da atividade normativa das Agências Reguladoras pelo Congresso Nacional.

O art. 2º da Constituição prevê que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si. O Estado é governado por esse conjunto de órgãos supremos aos quais incumbe o exercício das funções do Estado e mediante os quais a vontade deste Estado é formulada, expressada e realizada. Governo é o conjunto de pessoas que exercem o poder político e que determinam a orientação política de uma determinada sociedade.[1]

O Estado possui três funções básicas: uma legislativa, geradora de atos normativos abstratos e gerais; outra administrativa, geradora de atos concretos destinados ao exercício das atividades administrativas do Estado; e uma terceira jurisdicional, destinada a solucionar os conflitos entre os cidadãos e entre estes e o Estado.

Acompanhando esse entendimento, o Ministro EROS GRAU[2] classifica as funções do Estado segundo o critério material, descrevendo-as da seguinte forma: função normativa, de produção das normas jurídicas (textos normativos); função administrativa de execução das normas jurídicas; função jurisdicional de aplicação das normas jurídicas.

Ao Poder Legislativo foi atribuída, em especial, a função legislativa, ao Executivo foi conferida de forma preponderante a função administrativa e, ao Judiciário, principalmente a função jurisdicional. Todavia, nenhum dos três Poderes exerce com exclusividade a sua função ou o governo do Estado. Além de sua função típica preponderante, os Poderes do Estado exercem funções atípicas, próprias de outro Poder, nos limites autorizados pela Constituição.

Assim, o Poder Legislativo exerce a função legiferante, que se subdivide em três subfunções: a legislativa dita; a representativa, que decorre da escolha do constituinte pelo modelo de Estado Democrático de Direito; e a fiscalizadora dos atos do Poder Executivo. Além da função legiferante, o Legislativo exerce também a função administrativa, pois lhe compete privativamente administrar seus servidores e seus serviços, e, eventualmente, a função jurisdicional, quando, por exemplo, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal participam do processo de julgamento do Presidente e do Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade.[I]

De igual forma, o Poder Executivo exerce a função administrativa e, também, a função legiferante, quando expede atos normativos, e a função jurisdicional quando atua, por exemplo, como juiz administrativo em órgãos como o CADE e as Agências Reguladoras.

No que diz respeito à função normativa, objeto deste trabalho, Miguel REALE[3] ensina que normas ou regras jurídicas são esquemas ou modelos de organização e de conduta. Na lição do Mestre, sendo a norma um elemento constitutivo do direito, “como que a célula do organismo jurídico”, é natural que nela se encontrem a natureza objetiva ou heterônoma e a exigibilidade ou obrigatoriedade daquilo que ela enuncia.

Para a teoria kelseniana[II], o ordenamento jurídico se subordina, a partir da lei constitucional, a uma gradação decrescente e prioritária de expressões de competência. Essa lei constitucional fixa a estrutura e os feixes de competência de todo o sistema normativo. Nesse quadro, escreve MIGUEL REALE[4], “somente a lei, em seu sentido próprio, é capaz de inovar no Direito já existente, isto é, de conferir, de maneira originária, pelo simples fato de sua publicação e vigência, direitos e deveres a que todos devemos respeito.” Assim, lei no sentido técnico da palavra, só existe quando a norma escrita é constitutiva de direito, quando introduz algo de novo com caráter obrigatório no sistema jurídico em vigor, disciplinando comportamentos individuais ou atividades públicas. A lei em sentido formal e material é o ato normativo primário.

O Poder Executivo investe-se na qualidade de legislador, quando atua no processo legislativo iniciando, requerendo urgência e sancionando ou vetando projetos de lei. Além disso, a Constituição permite ao Executivo inovar na ordem jurídica por meio de lei delegada[III] e de medida provisória[IV], pois confere a ambas força de lei  em sentido formal e material. O Chefe do Poder Executivo tem também o poder-dever de expedir atos normativos de segundo grau, denominados regulamentos, destinados a permitir a fiel execução da lei.[V] Destaque-se que essa competência é essencial ao desempenho da função administrativa do Estado, pois permite atender às mudanças que ocorrem no mundo contemporâneo, as quais muitas vezes não podem sujeitar-se ao processo legislativo normal.

A organização do Estado brasileiro sob o sistema capitalista exige que ele regulamente, fiscalize e oriente os agentes econômicos quanto à proteção da livre concorrência e defesa do consumidor.

A Constituição autoriza o Estado brasileiro a intervir no domínio econômico de forma direta ou de forma indireta. O art. 173 estabelece as bases para a atuação direta ao prever que, ressalvados os casos previstos na Constituição, “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.” Nessa hipótese, o Estado age como executor de atividades econômicas, intervindo diretamente na economia e na atividade produtiva, na qualidade de Estado Empresário, realizando ações estritamente econômicas ou como prestador de serviços públicos.

No âmbito da atuação direta, o Estado pode explorar a atividade econômica de forma direta ou de forma indireta. Na exploração direta, a atividade econômica se dá por intermédio de um dos órgãos da Administração Pública direta ou de autarquias. Já na exploração indireta, o Estado cria pessoas jurídicas a ele vinculadas e com atribuições específicas de execução de atividades mercantis, como no caso das empresas públicas e sociedades de economia mista.

Por seu turno, a intervenção estatal indireta na ordem econômica está prevista basicamente no art. 174 da Constituição, o qual prevê que, na qualidade de “agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”

O art. 175 da Constituição, ao estabelecer a disciplina da prestação dos serviços públicos, dispõe que incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre por intermédio de licitação, a prestação de serviços públicos. A norma constitucional prevê, também, que lei ordinária deverá dispor sobre: “I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado.”

No que concerne à definição do que é “serviço público”, a doutrina pátria traz várias conceituações. Em sentido amplo, são tão abrangentes que alcançam praticamente todas as atividades exercidas pela Administração Pública. Em sentido estrito, procuram associar o conceito de serviço público a um regime jurídico de direito público.

A União Europeia utiliza uma definição que nos parece mais eficiente e clara. A legislação comunitária divide os serviços em “serviços de interesse econômico geral” e em “serviços não-econômicos”. Os serviços de interesse econômico geral são atividades de natureza econômica, como os serviços postais, as telecomunicações, os transportes ou o fornecimento de eletricidade e de gás. São os chamados serviços uti singuli, ou seja, de fruição individual. Possuem uma clara dimensão econômica, sendo, por conseguinte, regulados por um quadro legislativo comunitário específico. Estão, além disso, subordinados às regras do mercado interno e da concorrência estabelecidas no Tratado que institui a Comunidade Europeia.

Já os serviços não-econômicos são aqueles chamados de fruição uti universi, serviços públicos gerais, prestados à comunidade como um todo, beneficiando um número indeterminado de pessoas, custeados por meio das receitas gerais do Estado, notadamente a segurança pública, a justiça e os regimes de segurança social obrigatórios, não sujeitos portanto à concorrência de mercado.

Para desempenhar sua função de Estado Regulador, estatuída no art. 174 da Constituição, o Brasil optou por importar o modelo das Agências Reguladoras do direito norte-americano e do direito europeu.

No direito norte-americano o Administrative Procedure Act[VI] (Lei do Procedimento Administrativo) utiliza a expressão agency (agência) em sentido amplo, abrangendo qualquer autoridade do Governo dos Estados Unidos que esteja ou não sujeita ao controle de outra agency, com algumas exceções como o Congresso dos Estados Unidos e os Tribunais.

Nos EUA, as agencies podem ser de dois tipos, em razão da atribuição de poderes normativos. As regulatory agencies (agências reguladoras) possuem competência normativa para inovar no mundo jurídico e afetar direitos, liberdades ou atividades econômicas dos cidadãos.  Já as non-regulatory agencies (agências não-reguladoras) possuem  atribuições que se limitam à prestação de serviços sociais, que não envolvem atividades de regulação de mercados.

Quanto à estabilidade dos dirigentes, as agencies norte-americanas dividem-se em executive agencies (agências executivas), de livre nomeação e exoneração do Presidente dos Estados Unidos da América, e independent regulatory agencies (agências reguladoras independentes) ou comissions (comissões), cujos dirigentes têm mandato fixo.

O modelo brasileiro também prevê dois tipos de Agências: as Agências Executivas e as Agências Reguladoras.

As Agências Executivas foram idealizadas com a finalidade de conferir uma maior autonomia às pessoas jurídicas da administração direta e indireta, responsáveis por atividades e serviços exclusivos do Estado. A Agência Executiva não é uma nova espécie de entidade da Administração Pública brasileira, mas sim uma qualificação conferida por decreto às autarquias e fundações públicas, por meio do chamado contrato de gestão, previsto no § 8º do art. 37 da Constituição[VII]. Com a ampliação de sua autonomia de gestão, busca-se oferecer às instituições qualificadas como Agências Executivas melhores condições de adaptação às alterações no cenário em que atuam e de aproveitamento de situações e circunstâncias favoráveis ao melhor gerenciamento dos recursos públicos.[VIII]

Já as Agências Reguladoras são autarquias criadas com a finalidade de fiscalizar e regular os agentes do mercado nos setores em que atuam. As Agências Reguladoras exercem funções como a concessão e fiscalização de atividades e direitos econômicos, edição de normas, regras e procedimentos com força vinculante para o setor de sua atuação e imposição de penalidades e interpretação de contratos e obrigações.

No modelo de Estado Regulador escolhido pelo legislador constitucional derivado reformador, é imprescindível que os órgãos reguladores disponham de poder normativo e fiscalizador nos respectivos setores que atuam.

Este trabalho se propõe a esmiuçar a relação entre a lei e o regulamento, os limites materiais dos atos normativos, a deslegalização e a delegação legislativa à luz da Constituição, a natureza da competência normativa das Agências Reguladoras brasileiras e o instrumento legislativo de controle da atividade normativa das Agências.


1. Princípios reitores da relação entre a lei e o regulamento e os limites materiais dos atos normativos regulamentares

A Constituição de 1988 elevou o princípio da legalidade ao vértice de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de um princípio-garantia destinado a preservar o estado democrático de direito. O princípio da legalidade na Constituição engloba três vertentes que são desdobramentos deste instituto: a reserva de lei, a reserva de parlamento e a reserva de norma, as quais se passam a detalhar.

CANOTILHO[5] ensina que a reserva de lei comporta duas dimensões: uma positiva e outra negativa. A dimensão negativa significa que, nas matérias reservadas pela Constituição à lei, está proibida a intervenção de outra fonte de direito diferente da lei, a não ser que se trate de normas meramente executivas da Administração. Segundo CANOTILHO, em termos positivos, a reserva de lei significa que, nessas mesmas matérias, a lei deve estabelecer ela mesmo o respectivo regime jurídico, não podendo declinar de sua competência normativa em favor de outras fontes, numa clara proibição a que o legislador decline de sua competência.

O princípio da reserva legal exige que determinadas matérias só possam ser tratadas por lei em sentido material e, principalmente, por lei em sentido formal, com autonomia para inovar na ordem jurídica. Não se admite, nessa hipótese, a edição de normas secundárias para tratar da matéria.

Já a reserva de parlamento representa uma garantia maior para a sociedade, pois requer que a norma, além de ser lei em sentido formal e material, seja examinada e aprovada pelo Parlamento.[IX] A Constituição Federal exige reserva de parlamento para os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional; os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; para a matéria reservada à lei complementar; a legislação sobre a organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros, a nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais, os planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos, direito penal e processual penal e processual civil, dentre outros.

Por seu turno, a reserva de norma ou reserva de ato legislativo, no dizer de CANOTILHO[6], possui aspecto mais abrangente que os dois primeiros ao prever que a função normativa não se restringe ao Parlamento. Para CANOTILHO nem sempre a reserva de lei significa que o parlamento deva, ele próprio, disciplinar densificadamente determinadas matérias. Para o Jurista Português em alguns casos, “embora se preveja na constituição a competência do parlamento para legislar sobre determinadas matérias, pode o Governo ser autorizado a emanar decretos-leis incidentes sobre essas mesmas matérias. Fala-se aqui de reserva relativa.”

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Assim, segundo esse princípio, a competência para editar normas com regras de direito em sentido material pode ser utilizada pelos Poderes Executivo, Judiciário ou pelo Legislativo.

Especificamente em relação ao Poder Executivo, a Constituição permite no art. 62 que o Presidente da República possa adotar medida provisória para disciplinar matérias sujeitas à reserva de norma, ou de ato legislativo, que não exigem reserva de parlamento. Tais matérias estão expressas no § 1º do mencionado artigo.[X]

1.1. Reserva de lei e competência regulamentar

O Ministro Carlos VELLOSO[7] ensina que os regulamentos são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento editados em desenvolvimento da lei, referentes à organização e ação do Estado. Editados pelo Poder Executivo, visam a tornar efetivo o cumprimento da lei, propiciando facilidades para que a lei seja fielmente executada.

CANOTILHO[8] ensina que os regulamentos exprimem o exercício de uma competência normativa da Administração e alerta que uma “pura transferência da competência normativa genérica (mesmo infra legem) para o executivo contrasta com o princípio democrático e o princípio do Estado de Direito.” Para ele, isso explica o fato de, na atualidade, não se conceberem regulamentos independentes que, pelo menos, não tenham fundamento legal no que respeita à matéria a regular.

O Constitucionalista Português[9] afirma, ainda, que os cuidados a se ter na delimitação da competência regulamentar não dizem respeito apenas aos regulamentos propriamente ditos. Conforme o seu entendimento, esses cuidados devem estender-se aos chamados preceitos ou “comandos administrativos”, ou seja, a toda a série de preceitos emanados das autoridades administrativas superiores, destinados a definir, com mais precisão, os atos e a organização da administração, em todas as suas modalidades (ordens, instruções, circulares, despachos interpretativos, etc.). Isso porque muitas das chamadas prescrições administrativas não têm apenas um conteúdo interno instrumental. São “verdadeiros actos administrativos genéricos ou até regulamentos especiais, devendo sujeitar-se ao controlo jurídico normal.”

Sobre a competência regulamentar, BANDEIRA DE MELLO[10] escreve que o regulamento executivo, único existente no sistema brasileiro, é um meio de disciplinar a discricionariedade administrativa da Administração Pública, quando as normas da lei a executar lei demandem maior detalhamento. Em outras palavras, no entendimento de BANDEIRA DE MELLO, o regulamento “cerceia a liberdade de comportamentos dos órgãos e agentes administrativos para além dos cerceios da lei, impondo, destarte, padrões de conduta que correspondem aos critérios administrativos a serem obrigatoriamente observados na aplicação da lei aos casos particulares.”

A conclusão lógica que deflui desse entendimento é que se houver mais de uma interpretação possível do texto da lei, o Chefe do Poder Executivo poderá optar discricionariamente por aquele que julgar mais conveniente e vincular toda a Administração Pública à sua decisão.

BANDEIRA DE MELLO defende a ideia de que o regulamento somente se justifica quando a lei deixa intencionalmente um espaço para que a Administração exerça a sua discricionariedade, escolha o procedimento, os critérios, e as formas a serem adotadas para o fiel cumprimento da lei.

1.2. Competência regulamentar do Presidente da República

ENTERRIA e Ramon Fernandez[XI], citados por ROMAN, escrevem que hoje em dia não há possibilidade de se governar uma sociedade, com relações que estão se tornando mais complexas, sem dotar o Poder Público de uma ampla gama de poderes, dentre eles, o poder regulamentar que é absolutamente essencial.[11]

O inciso IV do art. 84 da Constituição estabelece a competência do Presidente da República para expedir decretos e regulamentos para a correta aplicação da lei, com força para obrigar e vincular, valendo-se do princípio da reserva de norma. Conforme NUNES LEAL, a competência para expedir regulamentos destinados à execução da lei é uma constante das constituições brasileiras.[12] Com efeito, o art. 48 da Constituição de 1891[XII], o art. 56 da Constituição de 1934[XIII], o art. 74 da Constituição de 1937[XIV], o art. 87 da Constituição de 1946[XV], o art. 83 da Constituição de 1967[XVI] e o art. 81 da Emenda Constitucional nº 1, de 1969[XVII], traziam a competência privativa do Presidente da República para expedir regulamentos.

PONTES DE MIRANDA[13], comentando a Constituição de 1967, ensina que o poder regulamentar de que dispõe o Presidente da República não constitui delegação concedida pelo Poder Legislativo, mas poder que lhe foi outorgado pela própria Constituição e que deve ser exercido "sem criação de regras jurídicas que alterem as leis existentes e sem alteração da própria lei regulamentada".

Segundo o Ministro EROS GRAU[14], a função normativa compreende a funções legislativa e regulamentar e caracteriza-se por “emanar instituições primárias, seja em decorrência de exercício do poder originário para tanto, seja em decorrência do poder derivado, contendo preceitos abstratos e genéricos”. Ainda conforme o mesmo Autor[15], examinando o princípio da legalidade e a competência para editar atos normativos regulamentares é possível distinguir duas situações, a saber: i) a vinculação da Administração às definições da lei; ii) a vinculação da Administração às definições decorrentes, isto é, fixadas em virtude da lei. “No primeiro caso estamos diante da reserva da lei; no segundo, em face da reserva da norma (norma que pode ser tanto legal quanto regulamentar ou regimental)”

É preciso observar que “decreto” é o ato administrativo típico do Chefe do Poder Executivo. LOPES MEIRELLES ensina que decretos são atos administrativos da competência exclusiva do Chefe do Executivo, destinados a prover situações gerais ou individuais, abstratamente previstas, de modo expresso ou implícito, na lei.[16]

Trata-se, portanto, da forma do ato. Já o vocábulo regulamento implica em matéria, conteúdo. Assim, enquanto o decreto é a forma do ato, o regulamento é o conteúdo material deste mesmo ato.

O Presidente da República pode editar dois tipos de decreto, o singular e o regulamentar. O decreto singular contém regras singulares ou concretas como, por exemplo, nomeação, aposentadoria, abertura de crédito, desapropriação, cessão de uso de imóvel, indulto e perda de nacionalidade. Já o decreto regulamentar é ato normativo subordinado.

1.3. Da delegação da competência regulamentar diretamente às Agências Reguladoras

Entende-se que há possibilidade constitucional da lei autorizar diretamente a Agência Reguladora a expedir regulamentos sobre determinada norma. Isso, no entanto, não afasta ou impossibilita que o Chefe do Poder Executivo, no uso de sua prerrogativa constitucional, inscrita no inciso IV do art. 84, expeça decreto regulamentar, norma regulamentadora primária, disciplinando a matéria com observância obrigatória pela Agência. Com efeito, a competência regulamentar é conferida pela Constituição ao Chefe do Poder Executivo e não pode ser afastada pelo legislador ordinário.

Recentemente, a propósito do art. 21 da Lei nº 11.943, de 2009[XVIII], com redação dada pela Lei nº 12.431, de 2011, o Advogado-Geral da União aprovou nota técnica[XIX] na qual consignou o entendimento de que a ANEEL tem competência para expedir regulamento destinado a definir os critérios para a prorrogação, até 30/12/2011, da data de início de funcionamento das instalações de geração de energia elétrica, prevista na alínea “a” do inciso I do art. 3º da Lei nº 10.438, de 2002.

Destaque-se que a Nota nº 118/2011/DENOR/CGU/AGU, de 19/12/2011, do Departamento de Análise de Atos Normativos da Consultoria-Geral da União, da Advocacia-Geral da União, sugeriu a não publicação de Decreto para regulamentar o aludido art. 21 da Lei nº 11.943, de 2009, e propôs a delegação à ANEEL da competência para a regulamentação destes critérios e expedir os atos necessários ao cumprimento das normas estabelecidas pela legislação em vigor.

No caso acima citado, e mesmo na situação de delegação por lei, os atos regulamentares das Agências Reguladoras permanecem como atos regulamentares secundários, ou seja, sujeitos à disciplina de atos regulamentares primários emitidos pelo Chefe do Poder Executivo. Entender de forma diferente equivaleria a conferir às Agências Reguladoras independência normativa em face da supervisão ministerial e da competência constitucional privativa do Presidente da República.[XX]

O Despacho do Advogado-Geral da União entende que é possível constitucionalmente conferir uma competência atípica às Agências Reguladoras. Atípica porque não conferida pela Constituição. Por óbvio, isso não significa que foi dada competência às Agências para alterar políticas públicas estabelecidas em lei. Assim, qualquer regulamento expedido em função dessa competência atípica deve estar conformada dentro dos estritos limites impostos pela norma legal que está sendo alvo de regulamentação.

Não há possibilidade de conflito de competência entre a disciplina estabelecida pela Agência e o regulamento aprovado pelo Presidente da República, uma vez que se encontram em patamares jurídicos diferentes. Enquanto o regulamento do Chefe do Poder Executivo é norma regulamentar primária, destinada ao “fiel cumprimento da lei”[XXI], os regulamentos da Agência Reguladora são atos normativos secundários, subordinados hierarquicamente aos regulamentos primários.

Assim, se o Presidente da República expedir regulamento, no uso da competência privativa do inciso IV do art. 84 da Constituição, automaticamente estará derrogado qualquer dispositivo de regulamento expedido por Agência Reguladora, no exercício da competência regulamentar atípica, reconhecida no Despacho do Advogado-Geral da União.

Com referência aos regulamentos, a doutrina ensina que estes se dividem, em três tipos: os regulamentos de execução, os autônomos e os regulamentos delegados. O que os distingue é a sua relação hierárquica com a lei, como se passa a demonstrar.

1.4. Regulamentos de execução

Os regulamentos de execução são normas secundárias que se destinam a desenvolver ou pormenorizar o conteúdo de uma lei. O regulamento de execução não se impõe por virtude própria, não pode por isto ampliar ou restringir o âmbito de aplicação da lei. Limita-se a explicitar o conteúdo da lei para que seja executada da maneira correta.

Sobre esses CANOTILHO[17] ensina que são normas emanadas da Administração Publica, no exercício da função administrativa e, regra geral, com caráter executivo e/ou de complementar a lei. “É um acto normativo, mas não um acto normativo com valor legislativo. Como se disse, os regulamentos não constituem uma manifestação da função legislativa, antes se revelam produtos da função administrativa.”

FERRAZ JUNIOR[18] relaciona, também, o chamado regulamento de complementação, que ocorre quando o Poder Legislativo estabelece normas gerais, princípios e critérios diretores, sob cuja égide ocorrerão especificações de natureza executiva que não apenas particularizam o conteúdo de regras gerais, mas, de algum modo, criam regras dentro das linhas fixadas pelo legislador.

1.5. Princípios reitores da relação entre a lei e o regulamento de execução

Segundo RAO[19], o Poder Executivo ao exercer a função regulamentar não deve: criar direitos ou obrigações novas, que a lei não criou; ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações constantes da lei; ordenar ou proibir o que a lei não ordena ou não proíbe; facultar ou vedar de modo diverso do estabelecido em lei; extinguir ou anular direitos ou obrigações que a lei conferiu; criar princípios novos, diversos, alterar a forma que, segundo a lei deve revestir um ato, atingindo por qualquer modo o espírito da lei.

CLÉVE[20] ensina que é possível extrair oito princípios reitores das relações entre a lei e o regulamento de execução. O primeiro princípio é o da primazia ou da preeminência da lei. A lei está hierarquicamente acima do regulamento executivo. Logo, este não pode contrariar a lei. A consequência disso é que o direito brasileiro não tolera regulamentos revocatórios (ab-rogatórios ou derrogatórios) e suspensivos da eficácia de normas legais.

Conforme o mencionado Autor, o segundo princípio é o da precedência da lei. Em sua opinião, o Estado Democrático de Direito exige não apenas uma vinculação negativa, entendida como o dever de não contrariar, mas também uma vinculação positiva, ou seja, o dever de apontar o fundamento legal do regulamento. Assim, de acordo com CLÉVE, não é legítima a edição de regulamento de execução sem a prévia existência de lei, pois o regulamento executivo presta-se à aplicação da lei e não para contrariá-la.

O terceiro princípio relacionado por CLÉVE é o da acessoriedade dos regulamentos de execução. São acessórios em relação à lei porque não podem tomar o seu lugar. O regulamento executivo não pode assumir o papel que a Constituição reservou à lei, tendo em vista que são atos normativos sujeitos à lei e dela dependentes.

Oswaldo Aranha BANDEIRA DE MELLO, citado por CLÉVE[21], escreve em relação ao regulamento executivo que "os seus preceitos constituem regras técnicas de boa execução da lei, para melhor aplicação. Complementar os seus preceitos, neles apoiados, como meros elementos de sua execução, como procedimentos de sua aplicação”. São, ainda, acessórios, segundo Oswaldo Aranha BANDEIRA DE MELLO, porque os seus preceitos formam um direito adjetivo e um direito processual do direito substantivo instituído pela lei.

O quarto princípio é o do congelamento da categoria. Segundo CLÉVE dele decorre que disciplinada determinada matéria por meio de lei, apenas por lei ou por ato de hierarquia superior poderá sofrer alteração. Da hierarquia normativa, extrai-se a regra, segundo a qual, um ato normativo só pode ser revogado (derrogado ou ab-rogado), modificado ou substituído, por meio de outro ato normativo de igual ou superior qualidade formal.

O quinto princípio é o da identidade própria do regulamento de execução. CLÉVE defende que, mesmo expressamente previsto pela lei, as normas regulamentares guardam a hierarquia que lhes é própria, não alcançando, com a simples previsão legal, promoção hierárquica ou deslocamento de regime jurídico (do regulamentar para o específico da lei). Em sua opinião, ainda que o Legislativo pretenda que a norma regulamentar integre o diploma legal, isto não pode ocorrer em face da Constituição. Ao que parece, CLÉVE não admite no direito brasileiro o fenômeno da deslegalização.

O sexto princípio é o da autonomia da atribuição regulamentar. CLÉVE advoga que o regulamento de execução independe de autorização legislativa, pois encontra seu fundamento não na lei, mas na própria Constituição. Segundo o Autor: a) com ou sem previsão legal da edição de regulamento executivo, poderá o Chefe do Poder Executivo regulamentar as leis cuja aplicação desafiem a ação administrativa; b) não pode o Legislador proibir a atuação do poder regulamentar do Presidente da República, do Governador ou do Prefeito; e c) para a manifestação da ação regulamentar, basta a existência prévia de lei não autoexecutável.

O sétimo princípio é o da colaboração necessária entre a lei e o regulamento de execução. CLÉVE propõe que, havendo dispositivos não autoexecutáveis, deverá o Presidente da República regulamentá-los, sob pena, inclusive, de praticar crime de responsabilidade.[XXII]

O oitavo e último princípio é o da autonomia da lei. CLÉVE, citando PONTES DE MIRANDA e Diógenes GASPARINI, afirma que: a) a vigência da lei não pode ficar condicionada à edição de regulamento executivo e qualquer previsão legal neste sentido fere a Constituição, importando delegação vedada de poder; b) a eficácia (execução) da lei pode ficar condicionada à edição do regulamento, desde que seja fixado prazo para a ação normativa do Executivo, pois o princípio da separação dos poderes não admite deixar-se ao inteiro arbítrio do Executivo a suspensão ou adiamento da execução da lei; c) não previsto prazo para a edição de regulamento, então a lei será eficaz desde a sua vigência em tudo aquilo que não depender do ato complementar e inicial da execução; e d) definido o prazo da regulamentação e esgotado sem sua edição, a lei será eficaz em tudo o que não depender do regulamento executivo, já que antes de vencida a dilação temporal, era totalmente ineficaz.

MOREIRA NETO[22] escreve que, sob o aspecto material, a regulamentação é uma função política, no exercício de ser uma prerrogativa do poder político de impor regras secundárias, em complemento às normas legais, com o objetivo de explicitá-las e de dar-lhes execução, sem que possa definir quaisquer interesses públicos específicos nem, tampouco, criar, modificar ou extinguir direitos subjetivos.

CARVALHO FILHO[23] explica que existe uma variedade de atos que integram a concepção de poder regulamentar e defende que existem diversos graus de regulamentação, conforme o patamar em que se aloje o regulamentador. Segundo o Autor, os decretos e regulamentos executivos podem ser considerados como atos de regulamentação de primeiro grau; outros atos que a eles se subordinem e que, por sua vez, os regulamentem, evidentemente com maior detalhamento, podem ser qualificados como atos de regulamentação de segundo grau, e assim por diante. CARVALHO FILHO cita como exemplo de regulamentação de segundo grau as instruções expedidas pelos Ministros de Estado, que têm por objetivo regulamentar as leis, decretos e regulamentos.

1.6. Regulamentos autônomos

Os regulamentos autônomos extraem sua validade e legitimidade diretamente da Constituição, dispensando a necessidade de lei anterior. Ou seja, são considerados atos legislativos primários e por isto podem inovar diretamente no ordenamento jurídico, criando ou restringindo direitos, pois possuem força impositiva própria.

Sobre o tema, CANOTILHO[24] escreve que o problema de autonomia e, consequentemente, da competência regulamentar autônoma, é de relevância política e com dimensão constitucional. Em outras palavras, os regulamentos autônomos são os regulamentos que pessoas jurídicas de direito público emitem no âmbito da autonomia constitucionalmente reconhecida. Conforme o Autor, os regulamentos autônomos são justificados pela ideia de autonomia, que outra coisa não é senão a expressão do princípio de autoadministração, que permite a essas pessoas jurídicas de direito público abarcar todos os assuntos específicos de sua competência.

Para Oswaldo Aranha BANDEIRA DE MELLO[25] os regulamentos autônomos são verdadeiras leis e são “assim chamados tão-somente porque emanados do Poder Executivo, pois não constituem desenvolvimento de qualquer lei ordinária, mas correspondem ao exercício da prerrogativa de legislar a ele reconhecida com base no Direito Constitucional.”

O Ministro Carlos VELLOSO[26] ensina que o regulamento autônomo, ou independente, é a faculdade regulamentar praeter legem e mesmo contra legem para regular qualquer matéria que constitucionalmente não tenha sido reservada aos órgãos legislativos. Segundo o Ministro Carlos VELLOSO, os regulamentos autônomos (independentes) subdividem-se em internos, que abrangem os regulamentos orgânicos e regimentais, e externos, que engloba os regulamentos de polícia administrativa.

1.7. Regulamentos autônomos no Brasil

Em regra, a função regulamentar no Brasil estará sempre adstrita à lei anterior, ou seja, os regulamentos de execução. Excepcionalmente, admite-se regulamentos autônomos de efeitos internos, como na hipótese do inciso VI do art. 84 da Constituição.

PONTES DE MIRANDA[27] escreve que mesmo na hipótese da regulamentação do Poder Legislativo prever a permissão ao Executivo para revogar, alterar leis, ou criar direitos, deveres, pretensões, obrigações, ou ações, tal delegação de poderes é nula.

Corroborando esse entendimento, DI PIETRO[28] assevera que no “direito brasileiro, excluída a hipótese do art. 84, VI, com redação dada pela EC nº 32, só existe o regulamento de execução, hierarquicamente subordinado a uma lei prévia, sendo ato de competência privativa do Poder Executivo”. Assim, também na opinião de DI PIETRO[29], o regulamento de execução não pode inovar na ordem jurídica, criar direito, obrigação, proibição, medida punitiva, devendo limitar-se a estabelecer normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração.

A Constituição não admitia regulamentos autônomos até a alteração no inciso VI do art. 84 da Constituição[XXIII]. A partir da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, passou-se a permitir ao Presidente da República, sem a necessidade de lei anterior, editar decretos para extinguir funções ou cargos públicos, quando vagos, e alterar a organização e funcionamento da administração pública federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos.

Para muitos, a EC nº 32 corrigiu uma distorção da Constituição Federal. Enquanto a Carta permite ao Legislativo[XXIV] e ao Judiciário[XXV] organizarem-se a si próprios, o Poder Executivo necessitava de autorização legislativa, mesmo nos casos em que não havia aumento de despesa e nem criação ou extinção de órgãos públicos. A partir da alteração constitucional, o decreto tornou-se o único instrumento normativo apto a versar sobre as atribuições e a estrutura dos Ministérios e órgãos do Poder Executivo, desde que não implique o aumento de despesa ou extinção ou criação de órgãos.

Além da hipótese do suso inciso VI do art. 84 da CF, o STF reconhece a competência do Poder Executivo para regulamentar autonomamente ou independentemente matérias afeitas unicamente a sua economia interna. Segundo GALVÃO, esses regulamentos guardam semelhança com o regulamento de execução, pois qualquer disposição sobre a organização da Administração derivará, em última análise, da busca pela consecução de algum fim legal.[30]

A jurisprudência do STF tem precedente que reconhece a competência regulamentar autônoma interna ao Poder Executivo. Cite-se o julgamento da ADI/MC 1.946-DF[31] que buscou a declaração de inconstituicionalidade de Portaria do Ministro da Previdência Social, por considerar que a mesma atuava, no caso concreto, na função de lei federal, tendo em vista que o ato normativo do Ministro previa a regulamentação da EC nº 20, de 1998. Naquela assentada o STF decidiu que Portaria ministerial não pode regulamentar norma constitucional e que se a mesma vem a ser baixada é de ser interpretada como de efiácia apenas interna. Em outras palavras, a Corte reconheceu a existência do regulamento independente de efeitos internos, ou seja, restrita ao âmbito da Administração Pública e destinada somente a orientar os servidores.[XXVI]

1.8. Regulamentos delegados

Os regulamentos delegados, também denominados autorizados ou habilitados, são aqueles emanados do Poder Executivo, em decorrência de delegação legislativa para prover matéria sujeita à reserva de lei. Tal como os regulamentos autônomos, os regulamentos delegados podem inovar na ordem jurídica, pois há uma ampliação da atribuição regulamentar, limitada, porém, à matéria e aos termos fixados na delegação.

A diferença é que o regulamento autônomo retira sua competência diretamente da Constituição, ao passo que o regulamento delegado retira sua competência do ato de delegação de poderes aprovado pelo Parlamento.

No Brasil, a Constituição estabelece que o Congresso Nacional aprovará uma Resolução delegando poderes e fixando o prazo e o alcance da delegação para o Poder Executivo promulgar Leis Delegadas. Por consequência, ultrapassados os contornos dessa autorização, a norma regulamentar delegada será inconstitucional.

Ribeiro BASTOS[32] afirma quanto aos regulamentos delegados, que estes “não se amoldam ao nosso direito, porque se trata de transferir competência legislativa, o que só se pode pela única via constitucionalmente aceita, que é a da lei delegada”.

1.9. Reserva de regulamento

Conforme o inciso IV ao art. 84[XXVII] e o art. 174[XXVIII], ambos da Constituição, o poder regulamentar é exercido essencialmente através de regulamentos expedidos pelo Poder Executivo. Não se confundem a competência regulamentar prevista no inciso IV da Constituição com o princípio da “reserva de regulamento”. A competência regulamentar refere-se à expedição de atos normativos abstratos, secundários e destinados a complementar o conteúdo da lei e à sua fiel execução. Já o princípio da “reserva de regulamento” implica que a lei não pode ultrapassar um determinado nível de pormenorização ou particularização, de modo a deixar sempre ao Presidente da República, como titular do poder regulamentar, um nível de complementação normativa relativamente a cada uma das leis.

Também não há, fora da hipótese do inciso VI do art. 84, uma limitação de matérias que a lei pode tratar, tal como ocorre na Constituição Francesa. Com efeito, o art. 34 da Constituição Francesa estabelece que a lei trate dos direitos civis, das garantias fundamentais, das restrições a serem impostas em razão da defesa nacional, da nacionalidade, do estado e capacidade das pessoas, do regime matrimonial, do direito de herança, da determinação dos crimes e delitos e das sanções aplicáveis, da anistia, da criação de novos níveis de competência e do estatuto dos magistrados. Fora isso, todas as demais matérias serão tratadas por regulamento, segundo o art. 37 da Constituição Francesa[XXIX].

Sobre a reserva de competência regulamentar, a Corte Constitucional Portuguesa consolidou jurisprudência no sentido de que a “a reserva de competência regulamentar do Governo redundaria necessariamente num limite da competência legislativa da Assembleia da República quanto a certas matérias, limite que a Constituição não permite deduzir perante um preceito como o da alínea c) do artigo 161º que expressamente atribui à Assembleia da República competência para fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas ao Governo. E estas, as competências legislativas reservadas ao Governo, não são outras senão as respeitantes à sua própria organização e funcionamento (nº 2 do artigo 198º da Constituição)”[XXX].

A Constituição brasileira de 1988 não restringe o âmbito da competência legislativa geral do Poder Legislativo e nem confere ao Executivo uma reserva de competência originária regulamentar em certas matérias, a exceção do mencionado inciso VI do art. 84, introduzido pela Emenda Constitucional nº 32.

1.10. Inconstitucionalidade do regulamento que exorbite do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa

Por se tratarem de normas secundárias, os regulamentos e os decretos não podem invadir a competência da lei que especificam ou a cuja execução se destinam. Tudo o que nas normas regulamentares ultrapasse esse limite não tem validade e é suscetível de impugnação.

A discussão hoje posta é: Quando o regulamento desborda de seus limites estamos diante de uma inconstitucionalidade direta ou de ofensa constitucional indireta, reflexa, quando a lei é constitucional, mas a norma regulamentadora desobedece ao inciso IV do art. 84 da Constituição.

A jurisprudência tradicional do STF é no sentido de que se há necessidade de se fazer uma ponte entre a norma regulatória e o direito ordinário, não se estaria diante de uma inconstitucionalidade, mas de uma ilegalidade. Assim, ao se entender que os atos normativos das Agências Reguladoras têm caráter de regulamento de execução, não se poderia buscar a impugnação destes pela via da declaração de inconstitucionalidade, seja pela via concentrada ou pela difusa.

Esse entendimento está sofrendo questionamentos especialmente em razão do elevado grau de produção normativa das Agências Reguladoras. O Ministro EROS GRAU[33] defende que a ilegalidade de um regulamento importa, em última análise, num problema de inconstitucionalidade, pois é a Constituição que distribui as esferas e a extensão do poder de legislar, conferindo a cada categoria de ato normativo a força obrigatória que lhe é própria.

Nessa linha, Roman defende que no caso do regulamento ultrapassar os limites da lei o que se verifica não e tão-só ilegalidade e mera inconstitucionalidade indireta. Há, em verdade, ilegalidade e inconstitucionalidade concomitante e o ato legal e apenas aparentemente interposto. “Afinal, é a própria Constituição que determina que o regulamento obedeça ao texto legal”.[34]

O Ministro GILMAR MENDES[35], em Palestra proferida no Seminário “As Agências Reguladoras”, organizado pela Escola de Magistratura Federal da 1ª Região (ESMAF) e pelo Centro de Memória Jurídica (MEMORY), relembrou que HANS KELSEN, em sua célebre palestra sobre a Jurisdição Constitucional, dizia que não via como separar o controle constitucionalidade das leis e o controle de constitucionalidade do ato regulamentar. “Se se afirma que o regulamento há de se fazer intra-legem, dentro do quadro da lei, o regulamento que o desborda não será apenas um regulamento ilegal, mas também inconstitucional.”

Todavia, o Ministro GILMAR MENDES reconhece que, no sentido tradicional do termo, as Agências Reguladoras assumem as funções administrativas de órgãos da Administração e exercem, também, um poder regulamentar. Entende o Ministro GILMAR MENDES que, diante desse universo normativo, é de se esperar que o STF venha a reconhecer o caráter meramente regulamentar da disposição e, assim, venha a afirmar a inadmissibilidade do exame em sede de controle abstrato de normas, porque estaríamos diante de um modelo tipicamente regulamentar.

O Ministro GILMAR MENDES[36] alerta, contudo, que as atribuições legais das Agências são muitas das vezes definidas dentro de marcos normativos mais ou menos amplos, o que suscitaria a discussão da “justeza da delegação, e, ainda, a questão do ato de concretização desta delegação”. Para o Ministro GILMAR MENDES[37], algumas dessas delegações são tão amplas que já se permitiria afirmar estar-se diante do “desenho de algum tipo de regulamento autônomo”.

Afirma o Ministro GILMAR MENDES[38] que o poder regulatório, em algumas áreas, é tão amplamente reconhecido, que não se questiona se a norma regulatória está a observar um marco institucional determinado, sob o argumento de que a norma decorre do mister institucional da Agência. Arrematando a questão, o Ministro escreve que, nessa hipótese, “seria quase um estelionato intelectual dizer-se que se está diante de um regulamento de execução, o que disso não se trata”. Para o Ministro GILMAR MENDES “ficou possível identificar que o Tribunal não deveria adotar a jurisprudência tradicional e deveria tratar dentro do universo dos atos autônomos, suscetíveis de discussão no âmbito do controle de constitucionalidade.”

Particularmente, entede-se que haverá sempre inconstitucionalidade quando o regulamento inovar o sistema jurídico e adentrar nos limites reservados à lei. Isso porque a Constituição distribui de forma exauriente a competência das diversas espécies normativas. Assim, será inconstitucional o ato normativo que tratar de matéria estranha à competência fixada na Constituição. Da mesma forma, se o regulamento adentra no limite de qualquer dos atos legislativos relacionados no art. 59 da Constituição será inconstitucional e não meramente ilegal.

Não se pode olvidar que, com o advento da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista no art. 102, § 1°, da Constituição, e regulamentada pela Lei nº 9.882, de 1999, a discussão sobre a impossibilidade do STF apreciar a inconstitucionalidade reflexa está mitigado. De fato, na ADPF, o exercício do controle concentrado é mais amplo, abrangendo a inconstitucionalidade direita e a indireta, atos normativos autônomos e subordinados e até mesmo atos normativos anteriores à Constituição de 1988[XXXI].

1.11. Inconstitucionalidade na omissão do poder regulamentar

Há inconstitucionalidade tanto no regulamento que ultrapassa o limite da lei, quanto na omissão da Administração Pública em sua função regulamentar. Com efeito, a Constituição prevê no inciso LXXI do art. 5º a possibilidade de se manejar o mandado de injunção sempre que a “falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.

O mandado de injunção, conforme José Afonso da SILVA[39], constitui remédio constitucional destinado a garantir direitos, liberdades ou prerrogativas inviabilizados pela falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição.

A Constituição prevê que os legitimados passivos do mandado de injunção devem ser os entes estatais que são responsáveis pela edição de normas regulamentares. O mandado de injunção pode ser impetrado no STF[XXXII], quando a competência regulamentar for do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, da Mesa de uma destas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais superiores ou do próprio STF; e no STJ[XXXIII], quando a omissão for de entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, excetuados os casos de competência do STF e dos órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal.

A jurisprudência do STF é no sentido de que o mandado de injunção pressupõe a existência de preceito constitucional dependente de regulamentação por outra norma, de categoria infraconstitucional, e a demonstração, no caso concreto, da inviabilidade do exercício dos direitos e liberdades constitucionais por ausência da norma regulamentadora infraconstitucional. Nessa linha de entendimento, o STF, após o julgamento dos Mandados de Injunção 721/DF e 758/DF, passou a adotar o posicionamento de que essa garantia constitucional destina-se à concretização, caso a caso, do direito constitucional não regulamentado[40].

A ausência de norma regulamentadora pode também ser controlada pelo STF, por meio da ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, na qual, se for considerada ausente a medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias[XXXIV].

Como se observa, a Constituição considera inconstitucional a omissão em regulamentar a lei, pois, em última análise, seria o mesmo que atribuir ao Poder Executivo o poder negar efetividade à lei, por meio de sua inércia, ofendendo o princípio da separação dos poderes.

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Sobre o autor
Alexis Sales de Paula e Souza

Economista, advogado e servidor público em Brasília (DF). Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduado em direito público pelo Instituto Processus/DF. Pós-graduado em Direito da Regulação pelo IDP/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Alexis Sales Paula. O decreto legislativo como instrumento de controle da atividade normativa das agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3481, 11 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23428. Acesso em: 19 abr. 2024.

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