Resumo: O presente artigo busca ressaltar a mudança de paradigmas nas famílias contemporâneas, cuja característica primordial passou a ser a afetividade. Sob esta ótica, e com apoio no princípio da dignidade da pessoa humana, o pátrio poder cedeu lugar ao poder familiar, que deve ser entendido como um munus público e não apenas como um poder dos pais sobre seus filhos. Nesse contexto, a conclusão a que se chega é a de que a criança e o adolescente passaram a ser sujeitos de direitos e, portanto, qualquer atitude dos pais tendente a prejudicar sua integridade física, psíquica ou moral, deve ser sancionada pelo Direito.
Palavras-chave: Poder familiar. Criança e adolescente. Sujeitos de direito. Princípio da afetividade e da dignidade da pessoa humana.
Sumário: 1.Considerações iniciais: do pátrio poder ao poder familiar.2. Dos princípios constitucionais e infraconstitucionais aplicáveis ao Direito de Família: repercussão na relação paterno-filial.2.1. Do princípio da dignidade da pessoa humana. 2.2. Do princípio da solidariedade. 2.3. Do princípio da paternidade responsável. 2.4. Do princípio da igualdade entre os filhos. 2.5. Do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. 2.6. Dos princípios da afetividade e da convivência familiar. Conclusão.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: DO PÁTRIO PODER AO PODER FAMILIAR
O modelo codificado de família de 1916 incorporava a visão patrimonialista, ruralista e patriarcal da realidade sociocultural brasileira, em que se reconhecia unicamente a família constituída pelo casamento. Nesse sentido, leciona Maria Berenice Dias, ao relatar que “[...] o código Civil anterior, que datava de 1916, regulava a família do início do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio.”[1]
À essa época, a sociedade conjugal tinha cunho econômico, sendo uma verdadeira produtora de riquezas e a única a merecer reconhecimento jurídico. O casamento, por sua vez, era uma forma de legalizar as relações sexuais, a partir do dever de coabitação, bem como a única forma de reconhecimento de filhos, já que todos os outros, concebidos fora do matrimônio, seriam considerados bastardos e não possuiriam quaisquer direitos, quer sejam estes sucessórios, quer sejam personalíssimos, como, por exemplo, direito ao nome do genitor.
Logo, como apenas eram reconhecidas as entidades familiares decorrentes do casamento, inúmeras relações, ainda que baseadas no afeto, no respeito e na cumplicidade, ficavam desprotegidas juridicamente, a exemplo do concubinato puro, constituído por duas pessoas que não fossem impedidas de casar.
Nesse momento, havia uma quase que completa desvalorização dos interesses pessoais dos membros da entidade familiar, prevalecendo sempre o interesse do pai provedor, detentor do poder marital e do pátrio poder, o qual exercia de modo exclusivo, cabendo à mulher apenas na sua falta. Diante disso, demonstrando haver um grande desequilíbrio entre os direitos e deveres dos cônjuges entre si e em relação aos seus filhos, não havia nenhuma preocupação com a felicidade dos membros da entidade familiar.
Endossa esse entendimento Paulo Luiz Netto Lôbo, para quem, “na família patriarcal a cidadania plena concentrava-se na pessoa do chefe, dotado de direitos que eram negados aos demais membros da família, a mulher e aos filhos, cuja dignidade humana não podia ser a mesma.”[2]
À essa época, a família era concebida como um fim em si mesmo e, seguindo a influência da poderosa Igreja Católica, deveria ser mantida, a todo o custo, até que a morte os separasse. Portanto, se antes desta cláusula resolutiva a mulher optasse pela separação, seria discriminada pela sociedade e afastada da criação dos seus filhos.
Impende destacar, ainda, que ao Estado incumbia proteger a família, mas não interferir nas suas relações. Por isso, a família era impenetrável e não admitia qualquer tipo de interferência das normas jurídicas que regulavam as diversas manifestações do comportamento humano. Destarte, os atos praticados pelo detentor do pátrio poder, ainda que lesivas a quaisquer de seus membros, não encontravam amparo no estudo da responsabilidade civil, cujo âmbito de atuação cingia-se às demais relações patrimoniais.
Esse panorama jurídico permaneceu quase inalterado até o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962), que foi responsável por dar início, ainda que timidamente, a era de igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, o que seria aperfeiçoado com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Nesses termos, Maria Helena Diniz destaca as principais conquistas do revogado Estatuto da Mulher Casada (Lei n.º 4.121/62):
Outrora o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/62, ora revogada) (a) outorgava à mulher a condição de colaboradora do marido, que ainda mantinha a chefia na direção material e moral da família, tendo em vista o interesse comum do casal e dos filhos; (b) estabelecia o exercício conjunto do pátrio poder; (c) conferia à mulher o direito de colaborar na administração do patrimônio comum; (d) autorizava a mulher a exercer a profissão que quisesse [...]”[3]
Não obstante a importância do referido estatuto, cumpre destacar que a era deigualdade entre os membros familiares apenas se consolidou com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Com efeito, enquanto no modelo codificado de família de 1916 os interesses tutelados eram fundamentalmente aqueles relacionados à figura do pai e marido, o perfil da nova família desconsidera tal interesse “para reconhecer todos os seus integrantes como pessoas humanas e, como tais, titulares de direitos e de interesses especialmente de natureza existencial, como os direitos da personalidade.”[4] Assim, a grande função da família atual é ser ambiente de realização de todos os seus integrantes, à medida que não mais se concebe a desigualdade de direitos e deveres entre os mesmos.
A mudança de paradigmas, encartada pela Constituição Federal de 1988, representa a nova interpretação que deve ser destinada ao direito de família e ao direito civil constitucionalizado, em que tem primazia os interesses pessoais dos integrantes da entidade familiar, com destaque para o respeito à dignidade da pessoa humana, em detrimento dos interesses meramente patrimoniais tutelados pelo antigo Código Civil. Esse fenômeno jurídico-social, segundo Paulo Lôbo, recebe o nome de repersonalização das relações civis.
Para o ilustre autor,
a realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função da família de nossa época. Suas antigas funções econômica, política, religiosa e procracional feneceram, desapareceram, ou desempenham papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua.[5]
Convém ressaltar que a Constituição de 1988, além de proteger a família e torná-la um locusde realização existencial dos seus membros, ampliou o conceito anterior, em queapenas merecia o status de família aquela entidade constituída pelo casamento, para também conceder proteção familiar à união estável entre homem e mulher (art. 226, § 3º, CF/88) e a entidade monoparental (art. 226, § 4º, CF/88). Contudo, não se pode olvidar que há outros tipos implícitos de família que merecem o mesmo tratamento das três formas expressamente tratadas pela Constituição Federal.
Compartilha desse entendimento Paulo Lôbo, ao relatar que todas as demais unidades de convivência encontradas na experiência brasileira atual, quer sejam estabelecidas entre pessoas do mesmo sexo, de sexos distintos ou entre pessoas de um dos sexos e seu (s) filhos (s), sendo estes biológicos ou não, possuem características comuns que a tornam entidades familiares, como a afetividade, a estabilidade e a convivência pública e ostensiva.
Para ele,
em todos os tipos há características comuns, sem as quais não configuram entidades familiares, a saber:
a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico;
b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida;
c) ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente.[6]
Diante disso, percebe-se que esses novos modelos expandem a proteção do Estado à família, que, como visto, passou a ser sujeito de direitos e obrigações.
Nesse novo cenário, emerge o poder familiar como um munus público, isto é, como um poder-dever exercido por ambos os pais em respeito ao melhor interesse da criança, matéria normatizada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu art. 21, in verbis:
Art. 21: O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução de divergências.
Essa Lei teve o mérito de retirar do mundo jurídico a ideia de submissão vivida pela figura materna nas relações entre pais e filhos, tendo em vista que “pai e mãe são, conjunta, igualitária e simultaneamente, os sujeitos ativos do exercício do poder familiar, como efeito da paternidade e da maternidade e não do matrimônio e da união estável”.[7]
Isso quer dizer que a situação jurídica dos pais não deve se confundir com o exercício do poder familiar, cujo escopo é atender o melhor interesse da criança. Por isso, “o regime de visitas, mesmo diminuindo o convívio entre os genitores, não pode restringir os direitos e deveres inerentes ao poder familiar [...]”.[8]
Convém destacar que os encargos dos pais para com os filhos não se limitam aos aspectos materiais, mas, sobretudo, dizem respeito ao aspecto existencial, devendo os mesmos satisfazerem não apenas a necessidade alimentar dos filhos, mas também mantê-los sob sua companhia, contribuindo para sua formação moral, e destinando todo o afeto necessário para o desenvolvimento moral dos menores.
Ademais, os novos paradigmas enfatizam a igualdade entre os membros da entidade familiar, principalmente com relação aos filhos, que passaram a gozar dos mesmos direitos, independentemente da origem. Assim, quer tenham estes filhos um vínculo biológico com os pais, quer tenham um vínculo puramente afetivo, serão filhos para todos os fins e direitos.
Endossa esse entendimento Maria Berenice Dias, para quem, “a filiação socioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do direito à filiação. A necessidade de manter a estabilidade da família, que cumpre a sua função social, faz com que se atribua um papel secundário à verdade biológica”.[9]
Contudo, para a concretização desta nova realidade, tornou-se imprescindível a elevação à categoria constitucional de certos princípios norteadores do direito de família, com destaque para o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade entre os filhos.
2. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS AO DIREITO DE FAMÍLIA: REPERCUSSÃO NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL
A doutrina tem destacado princípios que norteiam e embasam o direito de família. Alguns destes contam com referência expressa em diversos textos legais; já outros, embora não sejam mencionados de forma explícita, decorrem da ética e dos valores que permeiam todos os ordenamentos jurídicos, a exemplo do princípio da afetividade. Vale ressaltar, porém, que a doutrina não pretende ser taxativa na enumeração de tais princípios nem tampouco há consenso em relação à classificação dos mesmos.
Para Paulo Lôbo, destacam-se como princípios constitucionais aplicáveis ao direito de família os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, além dos princípios gerais da igualdade, liberdade, afetividade, convivência familiar e melhor interesse da criança. Contudo, não se pode deixar de mencionar o princípio da paternidade responsável, o qual tem despontado como um princípio de fundamental importância para a proteção integral da criança e do adolescente.
Com efeito, é pertinente, neste trabalho, a abordagem de alguns princípios que norteiam o direito de família, sobretudo, daqueles que têm reflexos na filiação, bem como daqueles que mantêm íntima ligação com a proteção integral da criança e do adolescente, tendo em vista que o tema ora proposto tem a preocupação de mostrar as sequelas que o abandono afetivo pode vir a provocar no desenvolvimento sadio da criança.
2.1. Do princípio da dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio mais geral do direito e encontra referência expressa no art. 1º, inciso III, bem como no art. 226, § 7º, que trata do planejamento familiar, ambos da CF/88.
Deve-se destacar, por oportuno, que embora a dignidade humana não seja criação constitucional, a partir do momento em que o legislador decidiu elevá-la à condição de fundamento da ordem jurídica, mostrou a preferência do nosso ordenamento pela pessoa humana e por sua dignidade. Na lição de Maria Celina Bodin de Moraes, “[...] a Constituição consagrou o princípio e, considerando a sua eminência, proclamou-o entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática”.[10]
A inclusão do princípio em tela no direito de família demonstra a mudança de paradigmas sofrida pelas famílias após o advento da Constituição Federal de 1988, sendo a entidade familiar o campo mais propício para que o indivíduo venha a exercer sua dignidade enquanto ser humano.
Paulo Lôbo, citando Kant, coloca em diâmetros opostos as coisas que têm um preço do que é dotado de dignidade. Assim, quando uma coisa tem um preço, isso implica dizer que ela pode ser trocada por outra equivalente, ao contrário do que ocorre com o que é dotado de dignidade, posto que é inestimável, indisponível. Sendo assim, “viola o princípio da dignidade da pessoa humana todo ato, conduta ou atitude que coisifique a pessoa, ou seja, que a equipare a uma coisa disponível, ou a um objeto”.[11]
Na família patriarcal, em que apenas gozava de dignidade a figura paterna, atrocidades eram cometidas contra os demais integrantes da entidade familiar sem que existisse o instituto da responsabilidade civil pelos atos praticados. Hoje, porém, para haver o pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas no âmbito familiar, não se pode falar em isenção de responsabilidade civil pelos atos praticados por quaisquer de seus membros.
Nesse contexto, a família assume a função de lugar de desenvolvimento da personalidade de seus membros, não se admitindo que uns sejam mais ou menos dignos do que outros. Diante disso, a entidade familiar deixa de ser um núcleo social fechado e individualista para ser o campo propício e destinado à realização da dignidade de todos os seus integrantes, inspirado sempre no afeto e respeito mútuo.
No âmbito das entidades familiares, ainda, este princípio materializa a emancipação de seus membros, à medida que o planejamento familiar é livre decisão do casal, conforme dispõe o art. 226, § 7º, CF/88, devendo ser feito em proteção daquele que poderá vir a nascer. Portanto, na esfera da entidade familiar, incumbe a todos os seus integrantes promover “o respeito e a igual consideração de todos os demais familiares, de modo a propiciar uma existência digna para todos e de vida em comunhão de cada familiar com os demais.” [12]
2.2. Do princípio da solidariedade
O princípio da solidariedade apenas se tornou jurídico após a promulgação da Constituição Federal de 1988, de maneira que, anteriormente, a solidariedade era concebida apenas como dever moral e ético a ser cumprido pelos cidadãos.
A regra principal do princípio da solidariedade é o inciso I, do art. 3º, da CF/88, que traz os fundamentos da ordem jurídica. Já no núcleo familiar, a solidariedade deve ser tanto exercida reciprocamente entre os cônjuges ou companheiros (já que devem prestar assistência material e moral uns aos outros), quanto pelos pais no interesse dos filhos, uma vez que estes devem ser mantidos, instruídos e educados pelos pais até atingir a idade adulta. Assim, no capítulo destinado à família, o princípio encontra-se presente no dever imposto à sociedade, ao Estado e à família de proteção ao grupo familiar (art. 226), à criança e ao adolescente (art. 227) e às pessoas idosas (art. 230).
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança inclui a solidariedade como um dos princípios a serem observados, o que é reproduzido pelo art. 4º do ECA, inverbis:
Art.4º: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Nesse contexto, verifica-se que o princípio da solidariedade representa a negaçãodos valores individualistas mantidos pelo Estado Liberal, à medida que incumbe tanto à sociedade quanto a cada integrante desta reconhecer a responsabilidade pela existência de cada pessoa que compõe o corpo social.
Com fundamento explícito ou implícito no princípio da solidariedade, Paulo Lôbo destaca que
os tribunais brasileiros avançam no sentido de assegurar aos avós, aos tios, aos ex-companheiros homossexuais, aos padrastos e madrastas o direito de contato, ou de visita, ou de convivência com as crianças e adolescentes, uma vez que, no melhor interesse destas e da realização afetiva daqueles, os laços de parentesco ou os construídos na convivência familiar não devem ser rompidos ou dificultados.[13]
Ademais, ainda de acordo com referido autor, desenvolve-se no âmbito do direito de família estudos relativos ao “cuidado como valor jurídico”, o que estaria intimamente associado ao princípio da solidariedade. Assim, o cuidado com as pessoas vulneráveis, como a criança e o idoso, recebe a força subjacente do princípio da solidariedade, vez que incumbe à família o cuidado com aqueles membros.
2.3. Do princípio da paternidade responsável
O princípio da paternidade responsável está previsto no art. 226, § 7º, CF/88, e implica dizer que deve haver responsabilidade individual e social do homem e da mulher que decidem procriar uma nova vida humana, sendo dever dos mesmos priorizar o bem estar físico, psíquico e espiritual da criança que irá nascer.
Não obstante a utilização do termo “paternidade responsável”, sabe-se que o alcance desta expressão deve ser a mais ampla possível, englobando não apenas o pai, mas também a mãe. Por isso, para a doutrina, mais correto seria o uso da expressão parentalidade responsável[14].
De toda sorte, a despeito do termo empregado, sabe-se que a paternidade responsável implica num planejamento familiar para que o filho seja concebido e criado dentro de um lar que garanta todos os direitos atinentes à criança ou adolescente, como alimentação, educação, lazer, respeito, dignidade, e, sobretudo, afeto, na perspectiva de que filho é para toda a vida.
Assim, a responsabilidade dos pais em relação ao filho atual ou àquele que vai nascer se mostra vitalícia, vinculando os mesmos a todas as situações jurídicas existenciais e patrimoniais relacionadas aos seus filhos.
2.4. Do princípio da igualdade entre os filhos
Outro princípio constitucional aplicável ao direito de família é o princípio da igualdade entre os filhos, previsto no art. 227, § 6º, CF/88, instituído com o objetivo de pôr fim às discriminações existentes em relação à pessoa dos filhos, em razão do tipo de vínculo existente. Ora, todos os filhos possuem os mesmo direitos, independentemente da origem, consolidando-se, desta forma, dois tipos de filiação: a biológica e a socioafetiva.
Convém destacar, por oportuno, que, dando ênfase a este princípio, o Código Civil de 2002 reproduziu em seu art. 1.596 a mesma regra contida no art. 227, § 6º, CF/88.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama propõe que o preceito contido no art. 227, § 6º, CF/88, seja desdobrado em dois importantes aspectos que estão relacionados, mas que não se confundem: a igualdade de qualificações entre filhos e a igualdade de direito entre estes.[15]
Em relação à igualdade de qualificações, tem-se que não há mais espaço para utilização de termos que importem em discriminação entre os filhos, como, por exemplo, as designações de filhos ilegítimo, espúrio, bastardos, adulterinos, incestuosos. Portanto, todos os filhos são filhos independentemente da origem, não cabendo mais o uso de designações discriminatórias.
Ao lado da igualdade de qualificações entre os filhos, a Constituição Federalde 1988impôs a necessária igualdade de direitos entre os mesmos. Assim, independentemente da origem da filiação, se matrimonial ou extramatrimonial, se fundada em vínculo civil (por adoção, reprodução assistida heteróloga ou posse de estado de filho) ou natural, todos terão os mesmos direitos.
Logo, para Guilherme Calmon, “uma vez existente o vínculo jurídico de parentalidade-filiação, todos os filhos do mesmo pai ou da mesma mãe têm, estritamente, os mesmos direitos reconhecidos no ordenamento jurídico brasileiro, sem possibilidade de qualquer diferenciação”.[16]
2.5. Do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente encontra previsão no art. 227 da CF/88, que estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente “com absoluta prioridade” os direitos nele previstos.
Referido princípio também encontra previsão nos arts. 4º e 6º do ECA, o que demonstra a ênfase dada pelo legislador infraconstitucional ao princípio em tela. Outrossim, está previsto no art. 3.1 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, com força de lei no Brasil desde 1990.
Paulo Lôbo assim leciona acerca do que vem a ser o princípio do melhor interesse da criança:
O princípio do melhor interesse significa que a criança – incluído o adolescente, segundo a Convenção Internacional dos Direitos da Criança – deve ter seus interesses tratados com prioridade, pelo Estado, pela sociedade e pela família, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito, notadamente nas relações familiares, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade.[17]
Com efeito, o referido princípio representa a mudança de paradigmas existente nodireito de família, sobretudo na relação paterno-filial, à medida que a criança e o adolescente deixam de ser objeto de direito para alçarem a condição de sujeito de direitos, enquanto pessoa humana merecedora de tutela jurídica, com absoluta prioridade, comparativamente aos demais integrantes da entidade familiar.
Nas palavras de Viviane Girardi,
a revelação sociológica da significativa contribuição da prole para o crescimento e satisfação pessoal dos pais ajudou a abrir espaço no cenário familiar para o reconhecimento do filho (criança ou adolescente) como sujeito de direitos dotado de autonomia pessoal e ética, pois, na medida em que merece e recebe especial atenção dos demais membros familiares como ser em desenvolvimento, ao crescer e expandir-se vai transformando a família à qual pertence e dotando a vida dos pais de novos sentidos e significados.[18]
Por outro lado, importa salientar que o princípio em epígrafe, além de ser diretrizfundamental nas relações desenvolvidas entre a criança e o adolescente com seus pais, parentes, sociedade e Estado, é de fundamental importância para hermenêutica jurídica, à medida que, em caso de conflito de normas e/ou princípios nas relações familiares, deve-se optar sempre por aquela que preservar o melhor interesse da criança.
Ademais, em razão do referido princípio se localizar na CF/88, no art. 227, caput, e seus parágrafos, ele deve ser analisado em sede de planejamento familiar ao lado dos princípios da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana, a fim de que se preservem os direitos inerentes à criança.
De fato, nesse cenário de mudança no eixo das relações paterno-filiais, a criança e o adolescente passam à condição de protagonistas, sendo o Estatuto da Criança e do Adolescente importante ferramenta na proteção dos direitos fundamentais dos sujeitos vulneráveis.
Compartilha desse entendimento Rodrigo da Cunha Pereira ao dispor que “[...] o ECA, além de ser um texto normativo, constitui-se também em uma esperança de preenchimento e resposta às várias formas de abandono social e psíquico de milhares de crianças.”[19]
Portanto, nesse novo cenário, embora o princípio do melhor interesse da criança não importe em exclusão dos interesses dos demais membros da família, é certo que, em colisão de dois ou mais interesses, deve prevalecer o interesse da criança e do adolescente em razão da posição de vulnerabilidade vivenciada por estes.
2.6. Dos princípios da afetividade e da convivência familiar
O princípio jurídico da afetividade é um dos fundamentos do direito de família constitucionalizado, sendo o mesmo responsável por dar primazia às relações socioafetivas, baseadas na comunhão de vida. Esse princípio está implícito na Constituição Federal de 1988, sendo decorrência direta dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e da solidariedade (art. 3º, I, CF/88), bem como dos princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos entre si, demonstrando que no direito de família pós-moderno se sobressai a natureza cultural e não apenas biológica da família[20]. Neste contexto, Paulo Lôbo é enfático ao afirmar que
a família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto, à frente, da pessoa humana nas relações familiares.[21]
Com efeito, por meio desse princípio, a família passa a ser o locus de realização existencial de seus membros, à medida que deve ter o objetivo de estimular os laços afetivos e acomunhão de vida entre eles. Sob esta ótica, Tartuce assevera que “[...] o afeto talvez seja apontado atualmente como o principal fundamento das relações familiares”[22].
Vale salientar, porém, que Paulo Lôbo entende ser necessária a distinção entre a afetividade (princípio) e o afeto (fato psicológico ou anímico). Para ele, a afetividade deve perdurar entre pais e filhos até o falecimento de um destes ou até que ocorra a perda do poder familiar, pois “a afetividade é dever imposto aos pais em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre eles”.[23]
Destarte, a despeito de existir afeto entre pai e filho, deve sempre haver afetividade, compreendida enquanto princípio jurídico, ao lado da igualdade na filiação e da prioridade absoluta da convivência familiar. Desta forma, o princípio implícito da afetividade assegura a convivência familiar e proporciona condições favoráveis ao desenvolvimento social da criança, uma vez que é a partir da convivência duradoura que as crianças e os adolescentes se sentem recíproca e solidariamente protegidos.
Convém destacar que o direito à convivência familiar e comunitária, além de ser assegurado constitucionalmente, é disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente como um direito fundamental que envolve muito mais do que viver em uma família. Nestes termos,
a convivência familiar envolve um feixe de circunstâncias que possibilita o desenvolvimento saudável da fase infantil e juvenil. Isso permite à criança a percepção de que é amada, de que alguém dela se ocupa e com ela se preocupa. Envolve esse direito mais do que a possibilidade de ter pai e/ou mãe, a prerrogativa de receber deles atenção, cuidados e carinho. Importa na possibilidade de ter espaço para se ser criança, ou seja, para brincar, pois essa é a forma salutar de o mundo infantil se desenvolver e compreender o que o cerca e também de se fazer por ele compreender.[24]
Sob essa perspectiva, tem-se que a proteção da criança e do adolescente foi assegurada internacionalmente em período bem anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988. Assim, a proteção integral à criança foi estabelecida na Convenção de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924, e na Declaração sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959, e reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Posteriormente, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, teve como tema central a preocupação com o bem-estar da criança e do adolescente e com o seu desenvolvimento completo e harmonioso.
Nesse contexto, Wlademir Paes de Lira assevera que o objetivo da referida convenção foi incentivar os países signatários a implementarem uma política de proteção à criança, com destaque para o desenvolvimento completo e harmonioso da sua personalidade, o que apenas se torna possível em um ambiente familiar, em que haja amor, cuidado e compreensão. Para ele, o que se enaltece na Convenção sobre os Direitos da Criança é
[...] a importância assinalada à unidade familiar como suporte para o crescimento social e emocional, harmônico e saudável da criança, atribuindo aos pais ou outras pessoas encarregadas, a responsabilidade primordial de proporcionar, de acordo com suas possibilidades e meios financeiros, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança (art. 27, item 2).[25]
Tudo isso destaca a importância do direito fundamental da criança à convivência familiar, assegurado no art. 227 da CF/88, bem como nos arts. 4º e 19 do ECA, na medida em que é imprescindível ao desenvolvimento sadio e harmonioso da personalidade de qualquer indivíduo.