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Nova Lei Seca: mais da mesma falta de técnica legislativa

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Na lei consta um nível de tolerância de alcoolemia. Portanto, o cidadão não pode ser incriminado de forma alternativa, ao sabor das duas modalidades de constatação previstas nos dois incisos do paragrafo único do artigo 306 (sinais clínicos ou alcoolemia).

Em 28 de março de 2012, o STJ proferiu decisão do Resp. 1.111.566 deixando assentado, por maioria de votos, que a caracterização do crime previsto no artigo 306 do CTB exigia prova técnica suficiente de que o incriminado conduzia veículo automotor com a taxa de alcoolemia fixada na descrição do tipo penal. Tendo em vista que esta prova técnica somente poderia ser obtida com a colaboração do próprio cidadão investigado (teste de bafômetro ou exame de sangue), a decisão do STJ foi recebida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral como um verdadeiro sepultamento da chamada “lei seca”, pelo menos em seu aspecto penal, pois a utilização prática do crime de embriaguez no trânsito passou a depender da improvável colaboração do próprio infrator.

O julgamento foi decido por apenas um voto de maioria e naquela ocasião os ministros da 3a. Seção do STJ manifestaram preocupação com a falta de cuidados técnicos na elaboração da lei penal, tendo em vista que a inserção da alcoolemia na descrição típica inviabilizava a utilização prática do crime. O Ministro Og Fernandes chegou a declarar ser “extremamente tormentoso para o juiz deparar-se com essa falha”, muito embora não pudesse dar ao caso outra solução porque “a matéria penal se rege pela tipicidade, e o juiz deve se sujeitar à lei.” No mesmo sentido foram as observações externadas pelo relator do caso, Adilson Macabu, declarando que “cabe ao Legislativo estabelecer as regras para punir, e não ao Judiciário ampliar as normas jurídicas...Não se pode fragilizar o escudo protetor do indivíduo em face do poder punitivo do estado. Se a norma é deficiente, a culpa não é do Judiciário”[1].

Esta decisão do STJ teve impactos imediatos no Poder Legislativo, que se mobilizou pondo em andamento diversos projetos de lei já apresentados com o objetivo de alterar a redação do artigo 306 do  CTB. Desta mobilização, surgiu a Lei 12.760,  pela qual a descrição do crime previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro passou por significativa reformulação, buscando-se dar efetividade à criminalização da conduta de dirigir veículo automotor sob efeito de álcool.

A nova descrição típica principia por definir, no caput do artigo 306 do CTB, que a infração penal estaria caracterizada pela condução de veículo automotor com “capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”. Em seguida, em dois incisos acrescentados ao artigo 306, a nova lei estabelece que as condutas descritas no caput poderão ser “constatadas” pela presença das seguintes situações: a) concentração de álcool no sangue do motorista de 0,6 decigramas por litro de sangue (ao qual equivaleria a concentração de 0,3 miligramas de álcool por litro de ar expulso dos pulmões); b) sinais externos no condutor que evidenciem, conforme norma regulamentar do CONTRAN, a embriaguez alcoólica ou por uso de entorpecentes.

Seguindo a trilha já iniciada pela primeira Lei Seca (Lei 11.705/2008), o artigo 306 do CTB permanece definindo uma forma de responsabilização penal com base na geração de perigo abstrato, aproximando-se da responsabilização penal objetiva, pois considera como suficiente para o enquadramento penal do agente o simples fato de dirigir com a capacidade psicomotora alterada em função do consumo de álcool ou outros entorpecentes, da mesma forma como antes descrevia como crime a simples conduta de dirigir com a taxa de alcoolemia agora presente no inciso I.  É que na descrição básica do novo tipo penal (caput), o elemento essencial para qualificar a conduta de dirigir como penalmente punível é a presença de alteração na capacidade psicomotora do motorista em razão da ingestão de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência. Não foi consignado na descrição típica nenhuma elementar referente a geração de perigo na condução veicular, sendo que nem toda afetação da capacidade psicomotora do indivíduo provoca uma necessária afetação de sua capacidade de direção a ponto de gerar perigo efetivo à segurança viária. Assim, entende-se que o crime permanece sendo de perigo abstrato.

O que nos dizem os ensinamentos da medicina legal é que a reação de cada indivíduo ao consumo de substâncias psicoativas é muito influenciado por circunstâncias pessoais, de maneira que a mesma concentração alcoolica pode significar, em pessoas mais tolerantes, pouca afetação da capacidade de coordenação dos movimentos e dos reflexos sensoriais; havendo ainda outros indivíduos que, mesmo em baixas concentrações de alcool no sangue, já manifestam sensíveis alterações na tal “capacidade psicomotora”. Portanto, a ciência médica afirma que qualquer concentração de álcool no sangue tem potencial para, conforme as condições pessoais de cada um, afetar a capacidade psicomotora. Ademais, é evidente que a afetação da capacidade psicomotora também pode variar desde graus que não se traduzem em manifestações sintomáticas relevantes, até outros estados de embriaguez em que o comprometimento das atividades motoras do indivíduo é evidente, produzindo os sinais de embriaguez que são até característicos e bastante conhecidos pelo senso comum.

Ademais, é consabido que a afetação da capacidade psicomotora em níveis mais brandos, a depender também das condições pessoais do indivíduo, nem sempre vai provocar uma afetação de sua habilidade para a direção veicular a ponto de provocar uma condução geradora de efetivo perigo para a segurança do tráfego nas vias públicas. E tanto é assim que, na redação original do tipo penal em questão (antes das duas “leis secas”), a embriaguez em si não era tão relevante para a infração penal, pois o elemento diferenciador entre a infração administrativa e a criminal era a geração de “dano potencial à incolumidade pública”, que era manifestada pela condução anormal do veículo.

Estas noções advindas do conhecimento médico indicam que podem acontecer situações fáticas em que determinado indivíduo, mesmo apresentando sintomas de embriaguez e até apresentando condução automotiva geradora de efetivo perigo à segurança viária, submeta-se ao teste do bafômetro e apresente nível de alcoolemia dentro do limite de previsto no inciso I do paragrafo primeiro (6dg/l). Enquanto que outras pessoas, mesmo sem apresentar sinais exteriores de comprometimento da capacidade psicomotora, já estejam fora deste limite.

O caput do artigo 306 tem como elementar mais relevante a alteração da capacidade psicomotora.  Assim, a leitura desta descrição típica está a indicar que poderia ser punido penalmente o ato de conduzir veículo automotor após o consumo de qualquer quantidade de alcool ou entorpecentes. Ocorre que foi consignada pela nova lei uma determinada concentração de alcool no sangue (6 dg/l) cuja leitura aponta para a definição do momento a partir do qual a ingestão de alcool passou a produzir no indivíduo, por expressa presunção legal, uma alteração da capacidade psicomotora a níveis relevantes para caracterização do crime. Ora, como já dito, não há uma correlação exata (ou sequer aproximada) que se possa estabelecer, com base em critérios científicos, entre afetação da capacidade psicomotora e alcoolemia. Qualquer ingestão de alcool é capaz de afetar a capacidade psicomotora e esta afetação, além de estar sujeita às características pessoais de cada indivíduo, comporta elástica gradação. Assim, penso que este nível de alcoolemia (6 dg/l) somente terá sentido lógico se funcionar como um limite de tolerância, implicando em uma  redução do âmbito de alcance da descrição típica constante do caput, incluindo-se assim no campo da própria tipicidade do delito e não apenas como (suposto) meio de prova da infração penal.

Com efeito, se o tipo penal estivesse integralmente descrito no caput do artigo 206, ou seja, bastando a elementar “capacidade psicomotora alterada”, que sentido haveria na permanência da alcoolemia no inciso I do paragrafo primeiro? Como já destacado, esta elementar pode ser eficientemente comprovada por exame do aspecto externo e pelo comportamento do condutor do veículo. Logo, como é fato que na lei consta um nível de tolerância de alcoolemia, não se pode conceber que o cidadão possa ser incriminado de forma alternativa, ao sabor das duas modalidades de constatação previstas nos dois incisos do paragrafo único do artigo 306 (sinais clínicos ou alcoolemia).

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O noticiário das operações desencadeadas já sob vigência da nova lei informa que o critério adotado pelas autoridades policiais foi realmente de enquadrar criminalmente as pessoas que tenham apresentado nível de alcoolemia acima do tolerado em testes de bafômetro[2], liberando aqueles que estavam dentro do limite. Entretanto, o meio de prova mais adequado, do ponto de vista técnico-científico, para aferição do comprometimento da capacidade psicomotora são os sinais clínicos, ou seja, as manifestações exteriores de embriaguez. Assim, tudo indica que os cidadãos que eventualmente tenham se recusado a fazer o teste podem ser enquadrados criminalmente por meio de provas testemunhais, já que este é um meio eficiente para tanto, submetendo-se assim a uma análise subjetiva por parte das autoridades, dado a largo espectro de situações fáticas que podem ser enquadradas.

Ora, como é consabido, o exercício responsável do poder punitivo estatal em matéria penal não se coaduna com o uso de descrições de crimes que se mostrem imprecisas ou dúbias. O devido respeito ao princípio da legalidade exige que o legislador tenha o cuidado de inscrever nos tipos penais condutas que sejam conhecidas em todas as suas elementares e circunstâncias (princípio da taxatividade). Os cidadãos não podem ficar sujeitos à descrições de típicas que não deixem perfeitamente conhecido qual o fato punível, ou que admitam um espaço fático de punição em bases alternativas (alcoolemia ou sinais clínicos), pois assim a sociedade ficaria exposta um estado de intolerável insegurança jurídica, além de dar-se amplo ensejo à prática de arbítrio por parte das autoridades encarregadas da persecução penal.

Ante o exposto, penso que o âmbito de tipicidade penal que se pode extrair da assim denominada “nova lei seca”, no que se refere ao artigo 306 do CTB, é composto pela necessária combinação de duas elementares, a saber: afetação da capacidade psicomotora do condutor (prevista no caput e que pode ser constata pelos meios de prova do inciso II do paragrafo primeiro) + nível de alcoolemia acima do limite tolerável de 6dg/l (previsto no inciso I do paragrafo segundo).

Caso prevaleça este entendimento, será lamentável concluir que o esforço legislativo para dar efetividade à repressão penal da realmente nefasta conduta de dirigir alcoolizado terá resultado nulo, pois a permanência da alcoolemia na descrição típica traz de volta a mesma incontornável necessidade de contar com a colaboração do próprio infrator para conseguir a prova necessária à materialidade da infração.

A sociedade brasileira há tempos vem sendo assustada por estatísticas sempre crescentes de acidentes de trânsito, dos quais resultam quantidades alarmantes de mortes e outras tragédias. Este quadro tem gerado um intenso sentimento de insegurança que, por sua vez, traduz-se em pressão social por medidas do Poder Público. Porém, a repressão penal deveria ser apenas um dos instrumentos (e não o único) de uma política pública seria e eficaz de enfrentamento deste grave problema social[3].

Na verdade, a repressão penal da embriaguez ao volante tem sido prejudicada pela sucessão de leis penais de duvidosa qualidade técnica, editadas sob a denominação midiática de “lei seca”. Ouso afirmar que nunca precisamos de reformulação alguma do tipo penal que constava da redação original do artigo 306 do CTB, que baseava a configuração do crime na geração de perigo concreto à segurança viária, deixando para a seara da responsabilização administrativa (multa, cassação do direito de dirigir, etc) a punição da embriaguez em níveis menores. A intensificação das ações de fiscalização e massificação de campanhas para conscientização dos motoristas, que foram realmente implementadas após a edição o apelo midiático das “leis secas”, certamente teriam conseguido resultados positivos e redução de mortes e acidentes, mesmo com o uso do tipo penal em sua redação original.


Notas

[1]  Notícia publicada no site do STJ <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105218>

[2]    E tão difundido está o entendimento de que a alcoolemia de 6dg/l é relevante para a caracterização do crime que a polícia de trânsito no Rio Grande do Norte, desde a edução da Lei 12.760/12, está utilizando uma tabela que relaciona alcoolemia e as diversas sanções aplicáveis. [http://glauciapaiva.com/2012/12/29/oficial-do-cpre-fala-sobre-nova-lei-seca/], publicado em 29.12.2012.

[3]    “A União Europeia, que de 1996 a 2009 reduziu em 42% o número de mortes , descobriu o caminho correto e passou a levar a sério a fórmula EEFPP: Educação, Engenharia (das estradas, das ruas e os carros), Fiscalização, Primeiros socorros e Punição”. (Luiz Flavio Gomes, Nova lei seca não será eficaz sem severa fiscalização, CONJUR, 26.12.2012)

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Sobre o autor
Antônio Cláudio Linhares Araújo

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Ex-Procurador Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Antônio Cláudio Linhares. Nova Lei Seca: mais da mesma falta de técnica legislativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3482, 12 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23448. Acesso em: 19 abr. 2024.

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