1. Notas históricas sobre o assédio moral
O assédio moral, também conhecido como terrorismo psicológico, manipulação perversa, bullying, dentre outros termos similares, vem frequentando, com preocupante assiduidade, o cotidiano do Judiciário Trabalhista, a revelar que se trata de fenômeno que estende seus poderosos e deletérios tentáculos no âmbito das relações de trabalho.
Embora o interesse pelo tema, notadamente na área trabalhista, tenha sofrido recrudescimento, trata-se de problema antigo, inicialmente descoberto e estudado em área absolutamente estranha às relações de trabalho.
Coube ao etologista austríaco Konrad Lorenz, que viveu de 1903 a 1989, a identificação do fenômeno, que denominou de mobbing, palavra que traduz a noção de turba ou multidão desordeira. Lorenz analisou o comportamento de animais que viviam em grupo e constatou que, havendo invasão de seu território por animal de maior porte, modificavam seu comportamento, na tentativa de expulsar o invasor.
No âmbito das relações humanas, o pioneirismo é atribuído ao médico sueco Peter-Paul Heinemann. Estudando, na década de 60, crianças reunidas em grupo nas escolas, verificou que adotavam comportamentos agressivos e destrutivos contra colegas da mesma classe.
Passados vinte anos, na década de 80, estando o assunto ainda restrito à literatura psicológica, o alemão Heinz Leymann denunciou que o fenômeno também se fazia presente nas relações de trabalho, afirmando que nestas raramente era usada a violência física, sendo o assédio moral marcado por condutas insidiosas, de difícil demonstração, como o isolamento social da vítima.
A psicóloga francesa Marie France Hirigoyen, referência mundial no assunto, aprofundou as pesquisas, lançando, em 1998, o livro “Assédio moral: a violência perversa no cotidiano”. A obra, em razão de seu conteúdo e relevância, provocou a discussão sobre o assédio moral na esfera jurídica. Seu segundo livro, “Mal-Estar no Trabalho: Redefinindo o Assédio Moral”, cuja proposta, segundo informações da autora, foi redefinir o assédio moral, mostrando que comportamentos o caracterizam, e também o que não é assédio moral, além de acentuar adequadamente as diferenças de outras formas de sofrimento no trabalho, igualmente ocasionou o aprofundamento da temática, notadamente no âmbito trabalhista. Diz a pesquisadora na introdução de sua segunda obra, publicada em 2000[1]:
Ignorado na França até a publicação de meu livro precedente, o assédio moral no trabalho tornou-se, há dois anos, uma forte preocupação social. Pessoas assediadas, que, até então, sofriam em silêncio, readquiriram a esperança; ousam agora se expressar e denunciar as práticas abusivas de que são vítimas. Novas reivindicações deram origem a numerosos movimentos sociais importantes, pois os trabalhadores passaram a não mais aceitar ofensas e comportamentos que ofendam sua dignidade. Eles exigem ser respeitados.
Hirigoyen demonstrou, em sua pesquisa, que as consequências do assédio moral não estão circunscritas aos trabalhadores, atingindo também as empresas, na medida em que a prática pode ensejar pagamento de indenizações de valor expressivo e queda da produtividade, dentre outras repercussões, comprometedoras da saúde financeira dos empreendimentos econômicos. O mal também é problema de saúde pública, pois os governos são compelidos a suportar os custos do tratamento das doenças determinadas pelo assédio moral.
No Brasil, a médica do trabalho Margarida Barreto elaborou dissertação de mestrado intitulada “Uma Jornada de Humilhações”, a partir de pesquisa de campo, onde analisou as humilhações sofridas por trabalhadores dos setores químico, cosmético, farmacêutico e plástico de São Paulo. A pesquisadora, segundo informa Márcia Novaes Guedes[2], colheu o relato de cerca de 2.072 trabalhadores de 97 empresas, entre 1996 e 2000. Do número total de entrevistados, 870 pessoas (494 mulheres e 376 homens) narraram graves humilhações no trabalho ou assédio moral em razão de haverem sofrido acidente de trabalho ou simplesmente adoecido.
2. Terminologia e conceito de assédio moral
O assédio moral, ao ganhar relevância internacional, recebeu no mundo terminologias diversas. Entre as mais utilizadas está o termo mobbing, do verbo inglês to mob, que significa atacar, maltratar, perseguir e sitiar e que é empregado na Suécia, Dinamarca, Finlândia, Suíça, Itália e Alemanha, dentre outros países. Na Inglaterra, a preferência é pelo termo bullying, enquanto na Espanha utiliza-se a expressão acoso moral. Hirigoyen[3] alerta a respeito:
O interesse atual pelo assunto, aliás, não se limitou à França, pois os governos de outros países europeus foram solicitados a adotar medidas, às vezes com outras denominações. Pode-se apostar com segurança que, dentro em breve, regulamentações no âmbito europeu aplicarão sanções contra o assédio moral no trabalho.
Essa tomada de consciência é muito positiva. Por isso é importante o uso rigoroso do termo “assédio moral”, para se evitar a inclusão de elementos diferentes. A expressão, ao passar à linguagem corrente, terminou por englobar outros problemas que talvez não decorram, no sentido clínico do termo, do assédio moral, mas que expressam um mal-estar mais geral das empresas, que é importante analisar. É preciso colocar essa problemática ao lado de outras formas de sofrimento no trabalho e, em particular, dos atentados à dignidade dos trabalhadores. [...] (grifou-se).
Quanto ao conceito, a primeira significação é atribuída a Heinz Leymann, que definiu assédio moral como a “situação em que uma pessoa ou um grupo de pessoas exercem uma violência psicológica extrema, de forma sistemática e frequente (em média uma vez por semana) e durante um tempo prolongado (em torno de uns 6 meses) sobre outra pessoa, com quem mantêm uma relação assimétrica de poder no local de trabalho, com o objetivo de destruir as redes de comunicação da vítima, destruir sua reputação, perturbar o exercício de seus trabalhos e conseguir, finalmente, que essa pessoa acabe deixando o emprego”.[4] O conceito, em razão de seu rigor, sofreu críticas, em especial porque determinadas atitudes humilhantes podem provocar sérios danos em menos de seis meses.
Marie-France Hirigoyen, uma das maiores autoridades mundiais no assunto, afirma que “O assédio moral no trabalho é qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude ...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho"[5].
Para o Desembargador Federal do Trabalho Cláudio Armando Couce de Menezes, “assediar é submeter alguém sem trégua, a ataques repetidos. O assédio moral requer, portanto, a insistência, ou seja, condutas que se repetem no bojo de um procedimento destinado a atentar contra a dignidade, a saúde e o equilíbrio psíquico da vítima”[6].
Observa-se, dos conceitos transcritos, que o assédio moral não se caracteriza a partir de atos isolados. Exige reiteração, gravidade e intensidade da ofensa psicológica, segundo a concepção objetiva do chamado homem médio, além do intuito de provocar dano psíquico ou moral ao empregado.
A experiência demonstra que nem sempre estes aspectos são bem compreendidos. Não raro em ações trabalhistas observa-se relato de episódio único de constrangimento ou humilhação, erroneamente indicado como assédio moral. São verificadas, também, situações em que o estresse, as más condições de trabalho, a sobrecarga, as imposições profissionais são confundidos com assédio moral. Este, conforme salientou-se acima, exige, além da repetição dos atos de agressão, também o intento malévolo, o objetivo de desestabilizar a vítima, de prejudicar, de provocar-lhe sofrimento e de alijá-la do posto de trabalho.
Hirigoyen explica que no estresse, contrariamente ao assédio moral, não existe intencionalidade maldosa. “Já no assédio moral, o alvo é o próprio indivíduo, com um interesse mais ou menos consciente de prejudicá-lo. Não se trata de melhorar a produtividade ou otimizar os resultados, mas se livrar de uma pessoa porque, de uma maneira ou de outra, ela ‘incomoda’.” [...][7]
As más condições de trabalho, o que ocorre, por exemplo, quando o espaço é inadequado e exíguo, a iluminação e a ventilação deficientes, alcançando a generalidade dos trabalhadores da empresa, também não configuram assédio moral, embora caracterizem violação aos deveres do empregador, a quem incumbe proporcionar meio ambiente laboral adequado e salubre. Ressalva-se, contudo, a situação em que apenas um empregado é alvo deste tratamento ou se este é a ele dispensado com o manifesto intuito de depreciá-lo. Da mesma forma, a sobrecarga de trabalho não configura por si só o assédio, exceto quando notoriamente excessiva exagerada ou ainda quando tem por único objetivo prejudicar o trabalhador.
Há ainda situações em que o exercício do poder diretivo é confundido com assédio moral. Ao empregador, a quem incumbe suportar os riscos do negócio, também é assegurado pela ordem jurídica determinar as regras de caráter técnico e organizacional que devem ser observadas na execução dos serviços (CLT, art. 2º). Dito poder encontra limites no necessário respeito aos direitos fundamentais do trabalhador, com destaque para a dignidade humana. Por isso, a prescrição de normas e a exigência de sua observância, a mudança de função ou de local de trabalho por necessidade do serviço, assim como a análise da conduta e da produtividade, acompanhadas de eventual determinação de apropriação, dentre outras práticas similares, não podem ser confundidas com assédio moral, na medida em que representam exercício de um direito. Hirigoyen[8] explica: “O assédio moral é um abuso e não pode ser confundido com decisões legítimas, que dizem respeito à organização do trabalho, como transferências e mudanças de função, no caso de estarem de acordo com o contrato de trabalho. Da mesma maneira, críticas construtivas e avaliações sobre o trabalho executado, contanto que sejam explicitadas, e não utilizadas com um propósito de represália, não constituem assédio. É natural que todo trabalho apresente um grau de imposição e dependência.” Deve-se estar atento, neste particular, também a eventual particular suscetibilidade da suposta vítima.
3. Tipos de assédio moral
O assédio moral no trabalho pode ser vertical (descendente ou ascendente), horizontal, estratégico e organizacional.
O assédio vertical descendente é aquele praticado pelo superior hierárquico, sendo a forma mais frequente. “Verifica-se o assédio moral do tipo vertical durante a execução do contrato de trabalho, quando a violência psicológica é praticada de cima para baixo, deflagrada pela direção da empresa ou por um superior hierárquico contra o empregado”.[9]
O assédio vertical ascendente ocorre quando empregados assediam o superior hierárquico. É de rara ocorrência e pode acontecer em empresas com grupos de subordinados mais velhos submetidos a chefia de pessoas mais jovens, com o intuito de afastar o superior. Também pode se verificar quando o chefe vem de fora e seu estilo e métodos são rejeitados pelo grupo.
-
O assédio estratégico é aquele idealizado pela empresa com o intuito de afastar pessoas de seus quadros, para reduzir despesas ou incorporar outros talentos. “Nos últimos vinte anos do século passado, o mobbing estratégico foi largamente utilizado por empresas e instituições financeiras para eliminar do quadro os empregados considerados inadequados para o novo modelo de produção flexível inaugurado”.[10]
-
O assédio organizacional é tido como “técnica gerencial” por meio da qual os empregados são conduzidos ao limite de sua produtividade por força de ameaças, que incluem a humilhação e a ridicularização em público e até a despedida. Trata-se de política institucional para incremento dos lucros, em prejuízo à dignidade humana dos trabalhadores.
José Affonso Dallegrave Neto[11] assevera a respeito:
Como se vê, enquanto o mobbing tem como objetivo a exclusão da vítima do mundo do trabalho, discriminando-a a estigmatizando-a perante o grupo, no assédio moral organizacional o que se visa é a sujeição de um grupo de trabalhadores às agressivas políticas mercantilistas da empresa. O que ambas as figuras têm em comum é a ofensa aos direitos fundamentais do cidadão e a caracterização de dano moral decorrente de insistentes métodos espúrios do empregador.
4.Efeitos do assédio moral
Os nefastos efeitos do assédio moral são amplamente conhecidos. A prática compromete a saúde do trabalhador, que apresenta, segundo as pesquisas, desde sintomas físicos, que incluem dores generalizadas, dentre outros males, até sintomas psíquicos importantes, com destaque para distúrbios do sono, depressão e ideias suicidas. Alice Monteiro de Barros[12] assinala a respeito:
Com relação à vítima, os efeitos são desastrosos, pois o assédio moral, além de conduzi-la à demissão, ao desemprego e à dificuldade de relacionar-se, causa sintomas psíquicos e físicos, que variam um pouco entre as vítimas, dependendo do sexo. As mulheres, em geral, são sujeitas a crises de choro; são também sujeitas a palpitações, tremores, tonturas e falta de apetite, enquanto os homens (100% deles) têm sede de vingança, ideia e tentativa de suicídio, falta de ar e passam a fazer uso de drogas.
Há também prejuízos para a empresa, em razão do absenteísmo decorrente das doenças desencadeadas pelo assédio moral, da baixa produtividade e das despesas consequentes aos processos judiciais.
Os danos não se circunscrevem às vítimas e às empresas, havendo alto custo para o Estado, em razão do tratamento das doenças e das aposentadorias precoces.
5.Responsabilidade do empregador
O assédio moral no trabalho, quando provocar a incapacidade, pode ser equiparado a doença ocupacional.
Com efeito, doença do trabalho, nos termos do disposto no art. 20, II, da Lei nº 8.213/91, é aquela adquirida ou desencadeada em razão das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente. Subdivide-se em:
a) Típica
Está prevista no art. 20, II, da Lei 8.213/91. Serão consideradas doenças do trabalho típicas aquelas constantes no Anexo II do Decreto nº 3.048/99. Prescindem de comprovação do nexo de causalidade com o trabalho, pois há presunção legal nesse sentido.
b) Atípica
Também chamada de mesopatia, está prevista no art. 20, § 2º da Lei 8.213/91, nos seguintes termos: “Em caso excepcional, constatando-se que a doença não incluída na relação prevista nos incisos I e II deste artigo resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.” Trata-se das denominadas mesopatias, que exigem comprovação do nexo de causalidade com o trabalho.
Portanto, havendo comprovação de que a doença do trabalhador decorre do assédio moral praticado no ambiente de trabalho, será considerada doença do trabalho atípica, atraindo a responsabilidade civil do empregador, nos termos do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal, e dos artigos 186, 187 e 927, do Código Civil.
Relevante salientar que o empregador responde por atos praticados por seus empregados ou prepostos, nos termos do disposto no art. 932, III, do Código Civil. Trata-se de responsabilidade objetiva, que independe de culpa, sendo bastantes a prova do ato ilícito, o dano e a relação de causalidade.
A par de tais efeitos, a prática também pode ensejar a despedida indireta, na medida em que implica descumprimento das obrigações do contrato e ainda ato lesivo da honra e da boa fama, faltas patronais capituladas nas alíneas “d” e “e” do art. 483, da CLT.
6.A dificuldade da prova
6.1.O ônus da prova
Objeto da prova, como é cediço, são os fatos controvertidos. “Aos litigantes incumbe demonstrar apenas a veracidade dos fatos articulados, a fim de que o juiz faça incidir, concretamente, a regra jurídica apta para reger a espécie e, com isso, solver a controvérsia: da mihi factum, dabo tibi ius (dá-me o fato e te darei o direito) – proclama o vetusto aforismo latino, que constitui uma espécie de síntese feliz da própria função juridiscional.”[13]
A finalidade da prova é formar o convencimento do juiz, a fim de que este, valendo-se do sistema da persuasão racional, também chamado livre convencimento motivado, albergado pelo ordenamento jurídico pátrio (CPC, art. 131), profira decisão final justa.
A mera alegação, desacompanhada de prova, é insuficiente para formar a convicção do juiz (alegatio et non probatio quasi non allegatio). É preciso provar a existência do fato apontado como suporte da pretensão. “Como afirma Mascardus, “quem não pode provar é como quem nada tem; aquilo que não é provado é como se não existisse; não poder ser provado, ou não ser é a mesma coisa” (apud ALMEIDA JR., João Mendes de. Direito judiciário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1960. P. 172). A prova é o coração do processo (Carnelutti).”[14]
À necessidade de provar a doutrina denomina ônus da prova (onus probrandi). Trata-se de dever processual que gera, quando não cumprido, situação desfavorável à parte a quem incumbia o ônus de provar e favorável à parte contrária, relativamente à pretensão posta em juízo.[15]
A Consolidação das Leis do Trabalho contém dispositivo único a respeito, qual seja, o art. 818, com a seguinte redação: “A prova das alegações incumbe à parte que as fizer”. Trata-se de regra de manifesta insuficiência, o que determina a aplicação também do art. 333, do CPC, que prescreve: “O ônus da prova incumbe: I. ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II. ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”, o que é autorizado pelo art. 769, da CLT.
Ao autor cumpre provar o fato constitutivo de seu direito, ou seja, aquele fato apto a gerar o direito pretendido e que, uma vez demonstrado, determinará a procedência do pedido. “Por fatos constitutivos se entende os que têm a eficácia jurídica de dar vida, de fazer nascer, de constituir a relação jurídica e, geralmente, também a função de identificar os seus elementos. Por exemplo: um empréstimo, uma compra e venda, uma sucessão”[16] O réu, por sua vez, tem o encargo de provar eventual fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, erigido na defesa. Fatos impeditivos são aqueles que representam obstáculo a um ou alguns dos efeitos que naturalmente decorreriam da relação jurídica. Apresenta-se, como exemplo, na seara trabalhista, a hipótese em que o trabalhador, na petição inicial, afirma que trabalhou para o réu, na condição de empregado, postulando os direitos próprios desta condição. O demandado, na defesa, admite a prestação laboral, aduzindo, entretanto, que esta aconteceu na condição de trabalho autônomo. Trata-se, portanto, de fato impeditivo do direito do autor, na medida em que este postula verbas próprias da relação de emprego, do que decorre a atribuição do ônus da prova ao réu. Fatos modificativos são aqueles que, “sem excluir ou impedir a relação jurídica, à qual são posteriores, têm a eficácia de modificá-la”[17]. Aponta-se, como exemplo, eventual pedido de indenização de férias formulado pelo trabalhador, em razão da falta de concessão e pagamento, admitindo o réu o fato, com a ressalva de que o autor teria direito a apenas 24 dias, em razão de ter faltado injustificadamente ao trabalho por 14 dias (CLT, art. 130, II). Fatos extintivos, por sua vez, são aqueles aptos a fazer cessar a relação jurídica e consequente expectativa de um bem, o que se verifica, exemplificativamente, na situação em que o autor requer o pagamento de horas extras e o réu admite o labor em sobrejornada, afirmando, entretanto, que efetuou o pagamento.
São estas regras que norteiam o exame, pelo juiz, das demandas que envolvem assédio moral no trabalho. Alegando o autor, na petição inicial, que foi alvo desta prática, segue-se, como consequência, a necessidade de provar o fato constitutivo de seu direito.
Entretanto, os atos de assédio, consoante registra a literatura especializada, não costumam ser praticados às claras e sim à sorrelfa, o que dificulta sobremaneira a prova que, segundo a regra geral, supra analisada, neste caso incumbe a quem alega, ou seja, o autor da demanda. Hirigoyen assinala: “Como as ocorrências de assédio moral são por sua natureza muito sutis e ocultas, não é fácil apresentar prova. Com muita frequência, o empregado só toma consciência de sua situação quando já sofreu os efeitos e se encontra em licença médica. [...]”[18]. Em pesquisa de campo feita em 2011 junto a bancários, professores e grupo aleatório, à pergunta “O fato de necessitar de testemunhas no seu ponto de vista dificulta o encaminhamento judicial?, 84% dos entrevistados responderam sim. [19]
Gráfico – O fato de necessitar de testemunhas no seu ponto de vista dificulta o encaminhamento judicial?
Fonte de Pesquisa: FÁVERO – Francisco Beltrão/PR - abril/2011
Esta dificuldade, que inibe consideravelmente o acesso à Justiça de parte das vítimas, gera a impunidade, notoriamente poderoso estímulo à reiteração das práticas ilícitas.
Absolutamente indispensável, portanto, encontrar-se, a partir da adequada interpretação e aplicação dos dispositivos legais, mecanismo para equacionar este obstáculo enfrentado pelas vítimas, sob pena de reduzir-se o princípio do acesso à justiça a postulado meramente formal e abstrato.
Propõe-se, por isso, com fundamento na experiência e na análise da doutrina e da jurisprudência, a aplicação supletiva do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, que autoriza a inversão do ônus da prova quando presentes as circunstâncias lá elencadas, além da adequada compreensão do princípio de que o fato negativo não admite prova.
6.2. A inversão do ônus da prova no CDC
O inciso VIII do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece ser um dos direitos básicos do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, foi verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência”.
Trata-se de inversão ope iudicis do ônus da prova, que pode ser determinada tanto a requerimento da parte, como ex officio. A medida busca promover o reequilíbrio entre consumidores e fornecedores. “A legislação protetiva do consumidor parte da constatação genérica de sua vulnerabildiade no mercado de consumo. Sua ratio essendi é, portanto, a busca do reequilíbrio da relação de consumo, ‘seja reforçando, quando possível, a posição do consumidor, seja proibindo ou limitando certas práticas do mercado” [...] O mecanismo da inversão do ônus da prova se insere nessa política tutelar do consumidor e deve ser aplicado até quando seja necessário para superar a vulnerabilidade do consumidor e estabelecer seu equilíbrio processual em face do fornecedor.[...]”[20]
A inversão do ônus da prova não pode, entretanto, ser concedida segundo o livre arbítrio do juiz e tampouco é automática. Cabe ao magistrado examinar se estão presentes os pressupostos enumerados no inciso VIII, do art. 6º, do CDC e, sendo positiva a resposta, conceder a inversão do ônus da prova. O dispositivo mencionado prevê duas situações distintas: a) verossimilhança da alegação do consumidor e b) hipossuficiência do consumidor. Basta a presença de um dos pressupostos para que seja autorizada a inversão em comento.
“A verossimilhança é juízo de probabilidade extraída de material probatório de feitio indiciário, do qual se consegue formar a opinião de ser provavelmente verdadeira a versão do consumidor. Diz o CDC que esse juízo de verossimilhança haverá de ser feito ‘segundo as regras ordinárias da experiência’ (art. 6º, VIII). Deve o raciocínio, portanto, partir de dados concretos que, como indícios, autorizem ser muito provável a veracidade da versão do consumidor”.[21]
Embora o vocábulo verossimilhança seja indeterminado, incumbe ao magistrado, com base nas máximas da experiência, que têm nos fatos notórios uma de suas fontes, nas regras de vida e no princípio da razoabilidade, verificar a plausibilidade das alegações do autor, examinando se são semelhantes à verdade, se têm aparência de verdade. Kazuo Watanabe salienta que
“[...] Examinando as condições de fato com base em máximas de experiência, o magistrado parte do curso normal dos acontecimentos, e, porque o fato é ordinariamente a conseqüência ou o pressuposto de um outro fato, em caso de existência deste, admite também aquele como existente, a menos que a outra parte demonstre o contrário. [...].[22]
Barbosa Moreira afirma que
“estará o juízo autorizado a inverter o ônus da prova quando formar, pelo material probatório à sua disposição no processo, um juízo de probabilidade, de tal modo que se lhe afigure provavelmente verdadeira a alegação do consumidor.”[23]
A hipossuficiência, por sua vez, “trata-se de impotência do consumidor, seja de origem econômica, seja de outra natureza, para apurar e demonstrar a causa do dano cuja responsabilidade é imputada ao fornecedor. Pressupõe uma situação em que concretamente se estabeleça uma dificuldade muito grande para o consumidor de desincumbir-se de seu natural onus probandi, estando o fornecedor em melhores condições para dilucidar o evento danoso”.[24] Não é apenas a hipossuficiência econômica que autoriza a inversão do ônus da prova. Havendo diminuição de capacidade do consumidor no aspecto social, de informação, de acesso à prova, entre outros, caracterizado estará este pressuposto e, em consequência, surge seu direito à inversão do ônus da prova.
6.3. A inversão do ônus da prova nas demandas trabalhistas que envolvem assédio moral
A norma estampada no art. 6º, VIII, do CDC, é aplicável ao Processo do Trabalho. Com efeito, a incidência de normas forâneas ao processo trabalhista é disciplinada pelo art. 769, da CLT, que prescreve: “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título.”
Há omissão da norma processual trabalhista, no particular. Por outro lado, a ratio essendi da norma protetiva insculpida no inciso VIII do art. 6º do CPC é a busca do reequilíbrio da relação de consumo, ante a frequente e notória distinção de forças entre as partes envolvidas. Desequilíbrio semelhante é encontrado nas relações de trabalho. Em razão de sua hipossuficiência, seja econômica, seja de meios para produzir a prova, o trabalhador vê, não raro, frustrado seu intento de convencer o juízo acerca da veracidade dos fatos que alega, o que conduz fatalmente à improcedência dos pedidos. Esta dificuldade acentua-se sobremaneira nas ações que envolvem assédio moral, em razão das circunstâncias em que é normalmente praticado, ou seja, às escondidas, distante da observação de terceiros, ou por meios sutis, situação que reclama a aplicação da norma extraordinária.
Em monografia sobre “Os Aspectos probatórios das ações relativas a acidentes de trabalho”, Airton José Cecchin[25] preleciona:
Carlos Alberto Reis de Paula ainda sustenta a possibilidade da aplicação subsidiária do Código de Defesa do Consumidor ao trabalhador, uma vez que a proximidade entre ambos se dá pela hipossuficiência, que pode ser econômica, cultural e técnica, estabelecendo o desequilíbrio entre o trabalhador/empregador e o consumidor/fornecedor. Ao discorrer sobre a inversão do ônus da prova de que trata o art. 6º do CDC, argumenta que:
O interesse para o direito processual do trabalho está em que tem-se uma previsão legal, que pode ser invocada em subsidiariedade pelo juiz, valendo a orientação seguida pelo legislador como uma referência relevante, a indicar critério para sua invocação, o que é perfeitamente factível se considerarmos, como sublinhado, a situação próxima entre o consumidor e o trabalhador.
Defende, ainda, o monografista a adoção, no processo do trabalho, no que respeita ao ônus da prova, de diversos critérios, destacando-se, dentre eles, o princípio da aptidão para a prova, expresso no multicitado inciso VIII, do art. 6º, do CDC. Segundo este princípio, o litigante apto para a prova é aquele que tem as melhores condições de produzi-la, por encontrar-se em situação mais favorável. Tanto se verifica quando uma das partes apresenta melhores condições de provar do que a outra, em razão de que detém todas as informações necessárias ou estas lhe são mais acessíveis[26].
A jurisprudência, embora de forma tímida, vem admitindo a inversão do ônus da prova na hipótese de assédio moral, consoante se observa da ementa abaixo transcrita:
OITIVA DE TESTEMUNHA – DISPENSA – SUSPEIÇÃO – VALIDADE – É válido o indeferimento de oitiva de testemunha que declara sua intenção no insucesso da parte, em virtude de inimizade, nos termos do artigo 405, § 3º, III, do Código de Processo Civil. ASSÉDIO SEXUAL – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA – POSSIBILIDADE – Nos casos de assédio sexual é possível a inversão do ônus da prova em favor do obreiro, considerando sua hipossuficiência em face do empregador e desde que constatada a verossimilhança de suas alegações, nos termos do art. 6º, VIII, do CDC, aplicado subsidiariamente por força do art. 8º e parágrafo único da CLT. DANO MORAL – ASSÉDIO SEXUAL – CONFIGURAÇÃO – ÔNUS DA PROVA – Invertido o ônus da prova em favor do empregado, em virtude da dificuldade de comprovação do assédio sexual pela vítima, visto que este crime geralmente não ocorre na presença de terceiros, e não se desincumbindo a reclamada do encargo de comprovar a inexistência deste ilícito, mantém-se a condenação da empresa ao pagamento de indenização por dano moral.
(TRT 14 R. – RO 01036.2006.041.14.00-3 – Rel. Juiz Conv. Lafite Mariano – DOJT 08.08.2007) (Juris Sintese DVD, maio/junho de 2011)
A doutrina também pontifica que “Na verdade, deve ter o ônus de provar, de acordo com as peculiaridades da situação concreta, aquele que está na condição mais favorável para produzir a prova. Isso quer dizer, exatamente, que, nas situações em que o autor não pode provar o que alega, o juiz deve inverter o ônus da prova, esteja ele diante de uma relação de consumo ou não”[27] Trata-se de lição que se amolda perfeitamente às demandas envolvendo assédio moral e que pode equacionar as dificuldades notoriamente encontradas pelas vítimas para convencer o magistrado acerca da procedência de suas alegações.
6.4. A possibilidade de prova de fato negativo
Desenvolveu-se na antiguidade, especificamente no direito canônico, a máxima de que era inexigível a prova puramente negativa – negativa non sunt probanda – e que prevaleceu por longo período. “[...] Argumentava-se ser impossível provar aquilo que não existe: - impossibilium nemo tenetur. Como alicerce dessa asserção, invocam-se a autoridade de PAULO – ei incumbit probatio qui dicit, ‘non qui negat’, e a Lei nº 23, Cód. De Probationibus – per rerum naturam, factum negantis, probatio nulla est.”[28]
Ao longo do tempo o princípio enfraqueceu-se, na medida em que a observação revelou que sempre que for possível converter a proposição negativa em uma afirmativa contrária, estará superada a dificuldade da prova negativa. “Se Caio nega ter estado em certo dia em tal lugar bem que poderá provar ter estado em tal dia em outro lugar; se nega que seu cavalo seja preto, bem que pode provar qual seja a cor do mesmo"[29]
Transpondo-se esta regra para as demandas judiciais em que o trabalhador alega assédio moral, tem-se que, afirmando a empresa que não houve o assédio moral e cumprindo-lhe, dentre as obrigações que decorrem do contrato, propiciar ao trabalhador ambiente de trabalho hígido, adequado e seguro, à ré deve ser atribuído o ônus de provar que as condições laborais reuniam tais características. A negativa, neste caso, resolve-se em afirmativa.