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Teoria da argumentação jurídica de Neil MacCormick

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O conceito de consequência para MacCormick não é o mesmo adotado pelos utilitaristas, pois não se restringe às implicações para as partes do caso e ao valor da utilidade, mas alcança as consequências da norma em que se baseia a decisão e outros valores, tais como a justiça, conveniência pública e senso comum.

Resumo: Com uma visão descritiva, serão apresentados os conceitos principais da obra “Argumentação jurídica e teoria do direito” de Neil MacCormick, fazendo as devidas inter-relações entre eles. O autor, analisando as decisões judiciais proferidas nos tribunais inglês e escocês, constrói os pilares de sua teoria, afirmando a necessidade de uma justificação bem fundamentada. Para isso, ele explana sobre: argumentações dedutiva e não-dedutiva; problemas de interpretação, classificação e pertinência; a tese da validade; uso de princípios ou analogias na decisão; argumentação consequencialista; argumentações a partir da coerência e a partir da coesão; interpretação das normas do direito à luz de princípios e políticas do interesse público.

Palavras-chave: argumentação jurídica; direito; MacCormick.


1. Introdução

Catedrático de Direito Público na Universidade de Edimburgo, Escócia, Donald Neil MacCormick foi um atuante jurista na área de raciocínio jurídico e sobre relações entre direito, moral e política. Publicou obras como “Argumentação Jurídica e Teoria do Direito” (1978) e “Razão Prática no Direito e Moralidade” (2009)[1].

O presente artigo tem como escopo estruturar a teoria da argumentação jurídica desse jusfilósofo escocês, encontrada na obra “Argumentação Jurídica e Teoria do Direito”. Tendo em vista que o autor ainda é pouco explorado nos ensinos jurídicos brasileiros,a perspectiva é centrada na argumentação jurídica, dispensando as discussões acerca da teoria do direito, como forma de evitar o aprofundamento em questões filosóficas.

Logo no preâmbulo da obra em análise, o autor deixa claro que a finalidade do livro é explicar a argumentação jurídica, considerando-a como uma ramificação da argumentação prática. Essa explicação é feita com base na análise de jurisprudências britânicas, principalmente inglesas e escocesas, uma vez que o processo decisório no Reino Unido é vantajoso por envolver a prática de cada juiz apresentar seu parecer publicamente, engajando-se todos em uma discussão pública em si, que leva a uma exposição das melhores razões decisórias. MacCormick notifica que seu estudo é fundado na visão do processo de argumentação como um processo de justificação, afinal, toda a decisão deve ser justificada com bons argumentos. Com as palavras de Manuel Atienza,

Essa função justificadora está presente inclusive quando a argumentação persegue uma finalidade de persuasão, pois só se pode persuadir se os argumentos estão justificados, isto é – no caso da argumentação jurídica –, se estão de acordo com os fatos estabelecidos e com as normas vigentes.[2]

Essa boa argumentação, portanto, segue os pilares da teoria a ser explanada.


2. Justificação dedutiva

Contrário a corrente de pensamento de juristas que negaao raciocínio dedutivo ser cabível na argumentação jurídica, MacCormick defende que há espaço – e isso é essencial – dentro do direito para essa forma de raciocínio. Essa posição não significa que a argumentação jurídica é, em absoluto, dedutiva, ou seja, há argumentos jurídicos não-dedutivos recorrentes antes e depois da parte dedutiva – contudo, sempre voltando a esta.. Ambas, dedutiva e não-dedutiva, não são suficientes, nem autossuficientes; são necessárias, complementares dentro da “boa argumentação”.

Quanto à argumentação dedutiva, MacCormick afirma que esta se faz presente nas decisões de situações mais simples, em que todas as partes concordam quanto à nítida aplicação de uma norma clara e quando se chega à conclusão da prova dos fatos.

Justificação dedutiva é justamente aquela em que a conclusão da argumentação está implícita nas premissas argumentadas. “Uma argumentação dedutiva será válida se, não importa qual seja o teor das premissas e da conclusão, sua forma for tal que suas premissas de fato impliquem (ou acarretem) a conclusão”[3]. Isso é relacionado àquela expressão lógica “se p, então q”, que, desde Aristóteles, possui reconhecimento como uma argumentação dedutiva válida. Nesse caso, “p” estipularia um conjunto de fatos operativos e “q”, a consequência jurídica que daí advém.

Porém, nem sempre essa justificação dedutiva é possível dada a dificuldade de subsunção dos fatos às normas, uma vez que: (a) a clareza das normas é questionável ou (b) a comprovação dos fatos não é possível. No primeiro caso, em certos contextos, a linguagem das normas pode se mostrar ambígua, obscura ou, até mesmo, vaga. Já com relação ao processo de comprovação legal, nem sempre este assegura a verdade, pois pode ocorrer de o testemunho das partes do caso não ser exato, honesto e com memória confiável. A psicologia já adverte sobre a possibilidade de produção de “falsas memórias”[4]. Com isso, a adução das provas torna-se incerta.

A justificação por dedução, possuindo tais limitações, necessita de justificações não-dedutivas.A questão que norteia a maior parte da obra em foco, portanto, é “como decisões podem ser justificadas quando nenhuma argumentação dedutiva basta para justifica-la?”[5].


3. Justificação não-dedutiva

Problemas que limitam a justificação dedutiva, que levam à não-dedutiva, são teorizados por MacCormick, de modo que alguns conceitos se fazem proeminentes. São estes: problema de interpretação e problema de pertinência.

Como já apontado, pode haver ambiguidade no momento da interpretação de uma norma. O que está registrado na forma de “se p, então q”, pode ser, em alguns casos, entendido com significados diametralmente rivais: ora “se p1, então q”, ora “se p2, então q”. O tribunal, diante dessa situação, deve escolher qual a interpretação a ser utilizada da norma. Essa escolha, no entanto, exige ser sustentada, justificada. É então essa justificação da escolha que MacCormick intitula constituir o “problema de interpretação”. Somente depois de resolvido essa questão, é que se segue uma simples justificação por dedução de uma decisão específica. Fazendo as devidas relações: a primeira justificação (a da escolha do significado da norma) é uma justificação não-dedutiva, enquanto a segunda (referente à aplicação da norma e formulação da decisão) configura-se a justificação dedutiva.

Em alguns casos, surge o “problema da pertinência”. Anteriormente à interpretação da norma, esse problema analisa a existência da norma. Quando não há uma norma pré-estabelecida para determinar e conduzir a uma decisão, é primordial observar se a reinvindicação apresentada diante do tribunal é pertinente de acordo com as normas do direito vigente. MacCormick, baseando seus estudos na “teoria da pertinência” no direito escocês do professor D. M. Walker, cita que o autor da ação deve formular um silogismo legal válido – não apenas em termos lógicos, mas também jurídicos – para atestar que o seu caso é pertinente.

Percebe-se, portanto, que esses problemas envolvem a tarefa de escolher entre deliberações rivais. Não só escolher, mas justificar a escolha. Nesse momento surge a “justificação de segunda ordem”, que é de suma importância, pois os juízos decididos resultarão em modelo para a conduta da sociedade. Tendo em vista essa responsabilidade, todas as deliberações são testadas. Então, para reforçar a tomada de uma alternativa como verdadeira e viável para a sociedade, são utilizados requisitos como: argumentação consequencialista; argumentação a partir da coerência; argumentação a partir da coesão.

Os juízes devem estar atentos às consequências provenientes da tomada de certas deliberações, segundo os valores de justiça, senso comum, interesse público, conveniência e praticidade. Vale ressaltar que esses parâmetros não são objetivos, mas subjetivos, o que leva a entender que cabe a esses juízes estabelecer seus próprios pesos quanto a esses critérios, resultando em decisões diferentes sobre um mesmo aspecto. A argumentação consequencialista possui um caráter avaliatório, portanto, em certo sentido, subjetivo.

É relevante observar que o conceito de consequência para MacCormick não é o mesmo adotado pelos utilitaristas, pois como é explicado por Manuel Atienza, se insistir em interligar MacCormick ao utilitarismo, é preciso entender que “se trata não apenas de um utilitarismo da regra, como também de um utilitarismo ideal”[6]. Entende-se, então, que as consequências teorizadas pelo jusfilósofo escocês não se restringemàs implicações para as partes do caso, mas também às consequências da norma em que se baseia a decisão; ou seja, constitui um utilitarismo que não se limita ao valor da utilidade, mas também a outros valores, tais como a justiça, conveniência pública e senso comum, por exemplo.

Apesar desse subjetivismo e essa possibilidade de obtenção de decisões discrepantes, para balizar essas deliberações é necessário os requisitos de coerência e coesão. A coerência exige que as normas do direito vigente envolvam valores válidos para a sociedade, enquanto a coesão é um termo mais estrito: exige que nenhuma das normas esteja em contradição com as outras normas do sistema. Destarte, esses dois requisitos se fazem necessários dentro de um sistema jurídico; isso fica evidente quando se analisa decisões que utilizam argumentações que testam deliberações propostas para verificar a coesão e a coerência com o sistema jurídico vigente.

A argumentação a partir da coerência ocorre através do uso de princípios e analogias. MacCormick afirma que “a lei conforme administrada nos tribunais deveria exibir coerência de princípios e não ser ‘uma selva de exemplos isolados’”[7], o que demonstra que o autor considera importante os princípios dentro da argumentação jurídica.

Princípios, de modo direto, seriam aquelas normas entendidas como sólidas e sensatas ou justas e desejáveis para nortear tanto os processos como as explicações de outras normas a elas relacionadas. Esses princípios têm como função racionalizar as leis, tornando-as mais do que meros amontoados de ordens e proibições, uma vez que estabelecem objetivos valiosos para a sociedade. Um exemplo dado são as leis de trânsito que, para não serem apenas imposições arbitrárias,lhe são atribuídas um sentido sensato: o princípio da segurança. É importante salientar que MacCormick considera os princípios mutáveis, seja por meio de promulgação de novas leis ou por decisões reiteradas dos tribunais.

Quanto às analogias, MacCormick declara que estas só fazem sentido se houver razões e princípios subjacentes a elas, uma vez que:

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A suficiência da analogia depende da existência de semelhança entre os fatos do novo caso e os fatos operativos de princípios, ou normas, enunciados em termos razoavelmente específicos engastados em precedentes ou em leis promulgadas.[8]

As analogias funcionam em conformidade com os princípios, quando estes – além de apresentarem os objetivos das leis - impõem limites dentro dos quais as decisões são justificadas, sem ferir a “função legisladora do judiciário”.Essa questão aborda a problemática sobre a possibilidade dos juízes poderem “criar leis” para solucionar os casos. Para MacCormick isso é permissível, porém com as devidas restrições. O juiz deve julgar com base nas leis; ele não possui liberdade para proferir julgamentos sem justificativas expressas. Mas isso não significa que as leis são compulsórias a ponto de negar a possibilidade de ele criar uma “legislação intersticial”. Esse termo se refere àquelas leis elaboradas para complementar a “legislação estrutural” – fruto do processo legislativo – em certos contextos recorrentes.

O papel das analogias e dos princípios é justamente o de compreender os limites do que legitima a criação das leis por parte do judiciário. A importância das analogias e princípios está na existência de uma norma convencional que:

Confere poder aos juízes para estender a lei no sentido de cobrir circunstâncias que não estejam regidas de modo direto ou inequívoco por normas estabelecidas de caráter compulsório, mas que impõe limites ao alcance desse poder.[9]

Uma argumentação a partir de princípios e a partir de analogias, ainda que necessária para amparar a decisão com uma justificação jurídica, não é suficiente para justificar uma decisão de modo completo. Mesmo determinando a faixa legítima das considerações justificatórias, ainda assim não produz respostas conclusivas. Pode ocorrer de a aplicação de princípios e analogias a problemas concretos resultar em uma razoável controvérsia. É preciso demonstrar que a decisão em foco não contraria nenhuma norma do sistema jurídico, o que leva à argumentação a partir da coesão.

As explicações sobre a argumentação a partir da coesão giram em torno da aplicação de precedentes, tendo em vista que o objeto de estudo do jusfilósofo é as decisões britânicas, inseridas no Common Law – que não dá ênfase às leis promulgadas. Uma importante ressalva é feita por MacCormick acerca da diferença entre a lei promulgada e os precedentes; citando a França (país cujo sistema jurídico é inserido no Civil Law), o autor sugere que estar restrito apenas às análises do código é prejudicial para o operador do direito, visto que falta a orientação no sentido dos efeitos práticos da lei – algo que se consegue com o estudo dos precedentes. Para ele, portanto, exagerar nas diferenças entre os sistemas codificados e não-codificados é desnecessário.

Sistematizando, então, a argumentação a partir da coerência diz respeito a “fazer sentido no mundo”, enquanto a argumentação a partir da coesão está ligada a “fazer sentido no sistema”. Os requisitos de argumentação de segunda ordem – consequencialistas, coerência e coesão -, de acordo com MacCormick, são vistos nas decisões da Inglaterra e da Escócia, o que leve a perceber que esses critérios de justificação são aceitos pelos juízes.


4. Conclusão

A teoria da argumentação jurídica de Neil MacCormick não é observada de forma clara nos compêndios de jurisprudências britânicos, uma vez que ele próprio afirma a existência, na realidade, de uma faixa que vai “do obviamente simples ao altamente contestável”[10] e ao longo desta faixa não é possível determinar o momento exato em que começa ou termina a etapa de resolução dos problemas (de interpretação, de pertinência, de comprovação) e o momento da simples dedução. Os fatores que levam a essa afirmação são os diferentes estilos, abordagens e temperamentos entre juízes diferentes.

A tese apresentada neste artigo, nas palavras do próprio autor:

É tanto descritiva de normas realmente operativas em sistemas jurídicos reais como, por seu próprio mérito, normativa ao defender o que considero bons procedimentos no processo decisório e na justificação.[11]

O autor, ainda no primeiro capítulo da obra, ressalta que as conclusões de seus estudos são restritas em seu raio de ação e não são verdades universais sobre a argumentação jurídica. Ainda assim, tomar conhecimento sobre seu trabalho é válido e abre novas perspectivas sobre a argumentação jurídica no Brasil.


5. Referências

ATIENZA, Manuel. Neil MacCormick: uma teoria integradora da argumentação jurídica. In: ______. As razões do direito: teoria de argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2006.

MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

NEUFELD, Carmem Beatriz; STEIN, LilianMilnisky.Falsas memórias: por que lembramos decoisas que não aconteceram?.Arq. Ciênc. Saúde Unipar, 5(2), Curitiba, pp.179-186, 2001.

UNIVERSITY OF EDINBURGH. In Memoriam: Professor Sir Donald Neil MacCormick. Disponível em: <http://www.law.ed.ac.uk/neilmaccormick/>. Acesso em: 04 de jan. de 2012


Notas

[1]Disponível em: <http://www.law.ed.ac.uk/neilmaccormick/> Acesso em: 04 de jan. de 2012.

[2]ATIENZA, Manuel. Neil MacCormick: Uma teoria integradora da argumentação jurídica. In: ______. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2006. p. 119.

[3]MACCORMICK, N. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 26.

[4]NEUFELD, Carmem Beatriz; STEIN, LilianMilnisky.Falsas memórias: por que lembramos de coisas que não aconteceram?.Arq. Ciênc. Saúde Unipar, 5(2), Curitiba, pp.179-186, 2001.

[5]MACCORMICK, N. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 67.

[6]ATIENZA, Manuel. Neil MacCormick: Uma teoria integradora da argumentação jurídica. In: ______. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2006. p. 134

[7]MACCORMICK, N. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 243.

[8]Ibid., p. 250.

[9]MACCORMICK, N. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 244.

[10]Ibid., p. 259.

[11]MACCORMICK, N. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.p. 98

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Sobre as autoras
Evilanne Brandão de Morais

Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nayla Soares ; MORAIS, Evilanne Brandão. Teoria da argumentação jurídica de Neil MacCormick. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3517, 16 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23733. Acesso em: 24 nov. 2024.

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