Como se sabe, a súmula vinculante nº 26 restabeleceu um famigerado e inócuo instrumento de prova dentro da execução criminal pátria. Embora “ressuscitado”, entendemos que o exame criminológico continua não tendo nenhum valor como meio de prova, pois “vários argumentos motivaram a Lei nº 10.792/2003 a abolir a realização dos referidos exames, entre os quais, o mais importante é a constatação de que os saberes ‘psi’ são incapazes, à luz de critérios minimamente rigorosos de confiabilidade e validade, de desvendar a subjetividade do sentenciado, de enunciar qualquer ‘verdade’ consistente sobre ela e, principalmente, de prever o comportamento humano futuro. Sepultou-se, assim, tardiamente, o sonho positivista de detecção precisa da periculosidade, tanto pelas limitações técnicas e epistemológicas da tarefa, quanto pelas sérias reservas de natureza ético-jurídicas que marcam o exercício de tal pretensão, que vão desde sua inconsistência científica até sua natureza claramente atentatória à intimidade e dignidade humanas”[1].
Ademais, a aludida súmula não retira todas as críticas à vertente lombrosiana que o exame criminológico possui, pois se tido “como prognóstico para prever novos crimes, é um retrocesso a um período de fracasso, irresponsabilidade no trato com a questão penitenciária, crença na provecta regra do criminoso nato e imposição aos profissionais da saúde de uma responsabilidade que não é, nem pode ser, deles, mas do juiz”[2].
Ocorre, no entanto, que queiramos ou não o escárnio voltou e temos que nos adaptar a essa realidade.
Neste contexto, visando minorar os efeitos perniciosos da Súmula Vinculante nº 26, in fine, creio que nos cabe interpretá-la a luz do arcabouço constitucional pátrio, para constatarmos quando o exame criminológico poderá ser requisitado. Abaixo a transcrição da súmula:
SV 26 – “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico” (sem destaque no original).
Note-se que em sua parte final há a possibilidade de o juiz da execução criminal determinar a realização do exame criminológico, desde que justifique a sua necessidade,
E quando será necessário?
Ao nosso sentir a referida súmula condiciona a exigência do exame criminológico a dois fatores, quais sejam a análise do processo de cumprimento da pena privativa de liberdade e o caso concreto. Neste contexto, saliente-se que em respeito ao princípio da individualização da pena, o processo de execução criminal deve ser analisado por situações fáticas concretas que nele se inserem.
Vale dizer, portanto, que ao magistrado nos julgamentos das pretensões relativas aos institutos que reinserem os condenados gradualmente à sociedade, é inevitável que sua cognição se circunscreva apenas ao modo como concretamente cada sentenciado cumpre sua pena e não aos fatos por que foram condenados ou à quantidade de pena aplicada no juízo condenatório, sob pena de inaceitável bis in idem, tendo em vista que na sentença condenatória essas situações já foram devidamente analisadas.
Essa é a posição sedimentada no Superior Tribunal de Justiça, conforme se denota dos acórdãos abaixo transcritos:
"CRIMINAL. HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO. PROGRESSÃO DE REGIME. EXAME CRIMINOLÓGICO. POSSIBILIDADE. SÚMULA N.º 439/STJ. FORMAÇÃO DO CONVENCIMENTO DO JULGADOR. GRAVIDADE GENÉRICA DOS DELITOS PRATICADOS. LONGA PENA A CUMPRIR. FALTA GRAVE ISOLADA. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. MAGISTRADO SINGULAR QUE JULGOU DESNECESSÁRIA A PERÍCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA.
I. A nova redação do art. 112 da Lei de Execuções Penais, conferida pela Lei n.º 10.792/2003, deixou de exigir a submissão do condenado a exame criminológico, anteriormente imprescindível para fins de progressão do regime prisional e livramento condicional, sem retirar do magistrado a faculdade de requerer a sua realização quando, de forma fundamentada e excepcional, entender absolutamente necessária sua confecção para a formação de seu convencimento. Incidência da Súmula n.º 439/STJ.
II. A gravidade dos delitos praticados, bem como a longa pena a cumprir, tomados abstratamente e por si sós, sem qualquer respaldo em fatos ocorridos durante a execução penal que denotem a necessidade de submissão do apenado ao exame criminológico, não são fundamentos idôneos para determinação de que seja realizado o exame pericial, tampouco sendo suficiente para denotar a periculosidade do paciente ou sua inaptidão para a obtenção de benefícios.
III. Hipótese em que, a despeito da existência de falta grave, consistente em tentativa de fuga cometida em 2006, inexiste qualquer outra mácula no histórico do paciente, de modo que tal elemento não é suficiente para condicionar a progressão à realização de exame criminológico.
IV. Evidenciado que o Magistrado singular não considerou necessária a submissão do réu a exame criminológico, entendendo presentes os requisitos indispensáveis à progressão de regime, não pode o Tribunal a quo sujeitar a concessão do benefício justamente à realização do referido exame, sem a devida motivação da sua necessidade.
V. Deve ser cassado o acórdão recorrido, restabelecendo-se a decisão do Juízo da Execução, que concedeu ao paciente a progressão de regime prisional, sem a necessidade de sua submissão a exame criminológico.
VI. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator" (HC 220.701/SP, Quinta Turma, Rel. Min.GilsonDipp, DJe de 20.6.2012).
"AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROGRESSÃO PRISIONAL CONCEDIDA PELO JUÍZO DAS EXECUÇÕES PENAIS. REVOGAÇÃO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM POR AUSÊNCIA DE PREENCHIMENTO DO REQUISITO SUBJETIVO. DETERMINAÇÃO DE REALIZAÇÃO DE EXAME CRIMINOLÓGICO. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. RECURSO IMPROVIDO.
1. Embora o artigo 112 da Lei de Execução Penal, após a alteração trazida pela Lei nº 10.792/2003, não mais exija a submissão do apenado ao exame criminológico para a concessão de benefícios, o Juiz da Execução, ou mesmo o Tribunal de Justiça, de forma fundamentada, pode determinar, diante das peculiaridades do caso, a realização do aludido exame para a formação do seu convencimento, nos termos do enunciado nº 439 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.
2. No caso, não houve motivação idônea para a revogação da progressão prisional concedida pelo Juízo das Execuções Penais, pois o Tribunal de origem valeu-se apenas da gravidade abstrata dos crimes praticados, da longa pena a cumprir, da falta grave cometida sem que se mencionasse sua data - dado imprescindível para se aferir a contemporaneidade ou não da ocorrência de tal infração -, bem como de alegações genéricas acerca do cabimento do exame criminológico, o que configura o alegado constrangimento ilegal.
3. Agravo regimental a que se nega provimento" (AgRg no HC236.521/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe de 28.6.2012).
"HABEAS CORPUS.PROGRESSÃO DE REGIME. EXAME CRIMINOLÓGICO. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
1. O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão de que, de acordo com o art. 112 da Lei nº 7.210/84, com a redação dada pela Lei nº 10.792/03, não há mais a exigência de submissão do apenado ao exame criminológico, podendo o Magistrado de primeiro grau, ou mesmo a Corte Estadual, diante das peculiaridades do caso concreto e de forma fundamentada, determinar a realização do referido exame para a formação de seu convencimento.
2. No caso, o Tribunal de origem concluiu pelo não preenchimento do requisito subjetivo e pela imprescindibilidade da realização do exame criminológico com base, somente, em falta grave praticada há mais de 7 (sete) anos, em considerações abstratas acerca do demérito do paciente e na gravidade abstrata dos crimes por ele praticados, o que constitui motivação inidônea a ocasionar o constrangimento ilegal afirmado pelo impetrante.
3. Ordem concedida a fim de restabelecer a decisão do Juízo das Execuções Criminais, mediante a qual se concedeu ao paciente a progressão para o regime semiaberto" (HC 230.391/SP, Sexta Turma, Rel. Min.Og Fernandes, DJe de 28.3.2012).
Exatamente por isso, é ilegal a determinação de exame criminológico que fundamente sua necessidade na quantidade de pena do sentenciado ou na “natureza” do delito praticado, pois tal interpretação do processo de execução do sentenciado somente dá luz ao brocardo quod non est in actis non est in mundo.
Os fatos anteriores ao cumprimento da pena privativa de liberdade são fatores extra-autos no processo de execução criminal, de maneira que opiniões e pré-conceitos do julgador acerca dessas situações não se coadunam com o sistema da persuasão racional, exatamente porque a sentença não estará fundamentada no processo de integração social do condenado conforme determinado pela Lei de Execuções Penais[3].
Deste modo, a fundamentação que a SV 26 exige é acerca de fatos concretos ocorridos durante o cumprimento da pena privativa de liberdade, em respeito ao princípio constitucional da individualização da pena[4].
Notas
[1]FRASSETTO, Flávio Américo eORSI NETTO, Alexandre. Um engodo chamado exame criminológico. BOLETIM IBCCRIM nº 209, p. 7.
[2] BARROS, Carmen Silvia de Moraes e JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Exame criminológico: hora de pôr fim ao equívoco!. BOLETIM IBCCRIM nº 215, p. 4.
[3] ORSI NETTO, Alexandre. A falácia do in dubio pro societate como princípio no processo de execução criminal. BOLETIM IBCCRIM nº 204, p. 13.
[4] “E, individualizar a pena na execução penal é ter em vista o sentenciado e seu necessário retorno ao convívio social e ao mesmo tempo, impedir que sua individualidade sirva de exemplo para alcançar fins que não lhe dizem respeito. Assim não fosse e tampouco se poderia falar em respeito à dignidade do preso” (BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena na execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 151).