Resumo: O presente texto tem como objetivo reconstruir a proposta hermenêutica trazida por Dworkin em sua obra O Império do Direito, a fim de demonstrar como ela se mostra mais adequada que as concepções convencionalistas (positivistas) e pragmáticas (realismo) sobre o Direito. O ponto principal do argumento de Dworkin é a crítica à discricionariedade judicial, afirmando, para tanto, a necessidade de se observar a integridade do direito.
Palavras-chave: Hermenêutica Jurídica; Direito como Integridade; Discricionariedade Judicial.
1. O PROBLEMA DA DIVERGÊNCIA TEÓRICA SOBRE O DIREITO: A PROPOSTA DE UMA COMPREENSÃO DO DIREITO A PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA
Dworkin[1] abre o prefácio de sua obra O Império do Direito, escrito originalmente em 1986, com a seguinte afirmação: “Vivemos na lei e segundo o direito” (1999:XI); isto é, o Direito está por todo lado na vida em sociedade, fazendo-se presente desde antes do nascimento e estendendo-se até após a morte de um indivíduo. É o Direito que estabelece a condição de cidadão, de empregado ou de empregador, de advogados, de proprietários, de cônjuge, de sócio, etc. O Direito não é apenas algo restrito ao ambiente formal dos Tribunais, mas transborda para além de suas construções.[2] Ele apresenta-se como um soberano abstrato dotado, simultaneamente, de um escudo e de uma espada.
Todavia, desde muito tempo, a pergunta sobre “o que é o Direito?” persiste e inúmeros pensadores apresentaram propostas para respondê-la (LAGES, 2001:36; ARAÚJO, 2001:118).[3] Com esta obra, Dworkin pretende também apresentar a sua contribuição:
O presente livro expõe, de corpo inteiro, uma resposta que venho desenvolvendo aos poucos, sem muita continuidade, ao longo de anos: a de que o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de que nosso direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e de que ele é a narrativa que faz dessas práticas as melhores possíveis (1999:XI).
A referida obra consagrará as teses sustentadas em livros anteriores, bem como em diversos artigos publicados. Mas não pode ser lida apenas como um ataque aos seus principais debatedores – as tradições do positivismo jurídico e do realismo jurídico, pois se prestará também ao exame de uma importante questão, qual seja, a da legitimidade do Direito (SOUZA CRUZ, 2003:26).
De maneira geral, aos olhos da sociedade, o Direito parece estar mais presente quando se observa um processo perante o Poder Judiciário,[4] isto é, como questão interna a um processo jurisdicional. Sem negar o que foi afirmado anteriormente, tal intuição não é de todo equivocada. Dworkin (1999:5) lembra que um processo judicial desperta, a princípio, três tipos de questionamento que são bastante relevantes para uma compreensão adequada do Direito: questões de fatos, questões de Direito e questões ligadas à moralidade política e fidelidade. Ao lado dessas questões, têm-se as proposições jurídicas[5] – isto é, “todas as diversas afirmações que as pessoas fazem sobre aquilo que a lei lhes permite, proíbe ou autoriza” (Dworkin, 1999:6) – e as questões ligadas aos fundamentos do Direito – ou seja, quando juristas – em sentido amplo (magistrados, advogados, etc.) – discutem sobre uma proposição jurídica, essa discussão pode abarcar dois níveis: divergências empíricas sobre o Direito (qual a lei a ser aplicada ao caso?) ou divergências teóricas sobre o Direito (concordando com a aplicação de uma determinada lei, ainda assim discutem se essa esgota ou não os fundamentos pertinentes do Direito).[6]
Já que, nas questões de fato, “a discussão se centra a respeito de eventuais controvérsias empíricas ligadas aos eventos concretos e históricos que sustentam a lide” (SOUZA CRUZ, 2003:26-27), uma compreensão das questões jurídicas como de fato acaba por reduzir o Direito, afirmando que ele “nada mais é que aquilo que as instituições jurídicas, como as legislativas, as câmaras municipais e os tribunais, decidiram no passado” (DWORKIN, 1999:10). Destarte, as questões sobre os fundamentos do Direito poderiam ser resolvidas através de uma visita aos arquivos que guardam essas decisões. E mais, não haveria sentido na divergência teórica sobre o Direito:[7] toda divergência seria aparente, estar-se-ia deixando de compreender o que o Direito é, para perder tempo discutindo o que o Direito deveria ser;[8] em outras palavras, seria uma discussão política travestida de discussão jurídica.[9] Os partidários dessa tese devem enfrentar duas perguntas: (1) não deveriam os juízes se limitar a aplicar o Direito existente, deixando para os legisladores – que exercem uma atividade visivelmente política – o trabalho de aperfeiçoamento?; e (2) o que fazer quando, no curso de um processo, depara-se com uma ausência de decisão institucional passada?[10]
Importante lembrar que as teorias semânticas do Direito – combatidas no capítulo anterior da presente investigação – são teorias que se apóiam nesse ponto de vista; portanto compreendem o Direito como simples questão de fato (DWORKIN, 1999:38; LAGES, 2001:38; ARAÚJO, 2001:120; SOUZA CRUZ, 2003:27). Nessa linha, existiriam regras que estabeleceriam a atribuição de significado a uma determinada palavra; os advogados, os magistrados e outros juristas, compartilhando dessas regras, poderiam decidir quando uma proposição jurídica seria verdadeira ou falsa.
As teorias positivistas, dessa forma, podem perfeitamente ser compreendidas como exemplos de teorias semânticas. Para demonstrar, em princípio, essa afirmativa, Dworkin ilustra-a com as duas teorias positivistas mais populares da tradição do Direito anglo-saxão: (1) a teoria de Austin e (2) a teoria de Hart.[11]
Para Austin (século XIX), uma proposição jurídica para ser verdadeira deve transmitir corretamente o comando do soberano, isto é, alguma pessoa ou grupo de pessoas “cujas ordens costumam ser obedecidas e que não tenha o costume de obedecer a ninguém” (DWORKIN, 1999:41). Fica clara, portanto, a noção de que o Direito é compreendido como um produto de decisões históricas tomadas por aqueles que detêm o poder político.[12] Todavia, inexistindo regra expressa, o soberano confere poder aos juízes para que criem normas dentro de uma margem de discricionariedade.
Por sua vez, a teoria de Hart é bem mais elaborada: (1) o Direito – diferentemente do que entendia Austin – como prática social, é constituído por um conjunto de regras; e (2) essas regras são organizadas a partir de tipos lógicos (regras primárias e regras secundárias).
Mas o que se quer dizer quando se afirma uma distinção entre as regras? Hart (1994:91) responde a essa pergunta apresentando o seguinte esquema:
As regras primárias são aquelas que concedem direito ou impõem obrigações aos membros da comunidade. As de direito penal que nos impedem de roubar, assassinar ou dirigir em velocidade excessiva são bons exemplos de regras primárias. As regras secundárias são aquelas que estipulam como e por quem tais regras podem ser estabelecidas, declaradas legais, modificadas ou abolidas. As regras que determinam como o Congresso é composto e como ele promulga leis são exemplos de regras secundárias (DWORKIN, 2002:31).
Marcando um outro grande passo para a Teoria do Direito, Hart ataca a compreensão de Direito de Austin. Para tanto, reconhece uma distinção importante entre a situação de ser obrigado (being obliged) a alguma coisa e a situação de ter a obrigação (being obligated) de fazer algo. Sendo assim,
[e]ntre outras coisas, uma regra difere de uma ordem por ser normativa, por estabelecer um padrão de comportamento que se impõe aos que a ela estão submetidos, para além da ameaça que pode garantir sua aplicação. Uma regra nunca pode ser obrigatória somente porque um indivíduo dotado de força física quer que seja assim. Ele deve ter autoridade para promulgar essa regra ou não se tratará de uma regra; tal autoridade somente pode derivar de outra regra que já é obrigatória para aqueles aos quais ele se dirige (DWORKIN, 2002:32).
Conforme o exemplo de Hart (1994:92-93), pode-se distinguir uma ordem de um oficial de justiça que desapropria um determinado cidadão de seus bens, da ameaça feita por um assaltante armado.[13] Assim, a obrigatoriedade de uma regra origina-se ou do fato de ela ter sido promulgada de acordo com uma regra secundária (logo, porque é válida) ou em razão de esse grupo reconhecer essa regra como obrigatória, como um padrão de conduta através de suas práticas (logo, porque é aceita).
Haveria ainda uma regra secundária fundamental, chamada por Hart (1994:104) de regra de reconhecimento, que estabelece como as regras jurídicas podem ser identificadas. Em Hart, as proposições jurídicas não são verdadeiras apenas em razão da autoridade das pessoas que costumam ser obedecidas; mas, principalmente, por representarem uma convenção social aceita pela sociedade, que atribui a um sistema de regras que foram outorgadas por indivíduos ou grupos o poder de criar leis válidas (DWORKIN, 1999:42).[14]
Ainda em Hart (1994:148-149) pode ser encontrada a afirmação de que, não havendo decisão pretérita (legislativa ou jurisdicional) sobre uma determinada situação, o magistrado, diante de um caso concreto, estaria autorizado a criar uma norma e aplicá-la.
As teorias de Austin e de Hart, entretanto, apenas representam exemplificações populares da tradição do positivismo jurídico, que, em todas as suas versões, parece trazer um núcleo comum, identificado por Dworkin (2002:27-29). Para essas teorias: (1) o Direito é formado exclusivamente por um conjunto de regras, que podem ser diferenciadas das demais regras – por exemplo, as regras de natureza moral – por meio de um critério que, ironicamente, pode ser chamado de teste de pedigree da regra;[15] (2) o conjunto de regras deve abranger, na maior medida possível, as relações jurídicas existentes em uma sociedade, mas no caso de lacuna – isto é, quando se está diante de um caso difícil –, o magistrado fica autorizado a decidir com base discricionária, inclusive indo além do Direito na busca desse novo padrão de orientação; e (3) na ausência de regra jurídica válida, compreende-se que não há obrigação jurídica; logo, quando o magistrado, no exercício de sua discricionariedade, decide um caso difícil, ele não está fazendo valer um direito correspondente à matéria controversa; ele está, sim, criando normas jurídicas.[16]
Mas o positivismo não é a única espécie de teoria semântica do Direito. Existem mais duas escolas bastante populares e que se apresentam como rivais da primeira: (1) a escola do Direito Natural – entendendo aqui, sob tal título, diversos agrupamentos – sustenta que os juristas seguem critérios que não são inteiramente factuais, mas principalmente de ordem “moral” – termo entendido em amplitude de significado, haja vista, por exemplo, a existência de defensores de uma teoria jurídica apoiada por razões de natureza até mesmo religiosa. Uma versão radical identifica o Direito com a justiça, o que significa que nenhuma proposição jurídica injusta pode ser considerada verdadeira.[17] Contudo, versões menos radicais, por outro lado, afirmam que a Moral é, às vezes, relevante para a verdade das proposições jurídicas;[18] (2) a escola do realismo jurídico, desenvolvida nos Estados Unidos no início do século XX, afirma que o Direito não existe – lembrando o Justice Holmes, resulta apenas daquilo que o juiz tomou em seu café da manhã[19] – sendo apenas diferentes tipos de previsões. Contudo,
[...] mesmo assim compreendido, o realismo permanece extremamente implausível enquanto teoria semântica. Pois raramente é contraditório – na verdade, é até comum – que os advogados prevejam que os juízes cometerão um erro a propósito do direito, ou que os juízes manifestam seu ponto de vista sobre o direito para acrescentar, em seguida, que esperam que ele venha a ser modificado (DWORKIN, 1999:45).
O ataque às teorias semânticas – ou ao aguilhão semântico (semantic sting), como referido por Dworkin (1999:55) – dá-se por via da interpretação do Direito,[20] ou melhor, por via da assunção de uma atitude interpretativa para com o Direito. Para explicar melhor essa tese, Dworkin (1999:57) parte do exemplo das “regras de cortesia”, segundo as quais, por exemplo, os camponeses devem tirar seus chapéus quando estiverem diante dos nobres. Essas regras passariam por uma espécie de ciclo histórico, começando pela compreensão como se fosse um tabu. Portanto, a regra seria imutável e indiscutível. Todavia, em seguida, pode ser observado o começo de uma atitude interpretativa por parte dos membros daquela comunidade: em um primeiro momento, tem-se a compreensão de que não apenas a regra existe, mas apresenta uma finalidade; para, em seguida, compreenderem que as regras devem se adaptar a essa finalidade – desse modo, se tornam não apenas mutáveis, mas também interpretáveis – o que conduz ao fim de um processo de aplicação mecânica dessas regras de cortesia.[21]
Dessa forma, não é possível dissociar as práticas sociais – mesmo a aplicação de regras – de uma atitude interpretativa. Mas existem diversas formas de interpretação, podendo ser enunciadas outras formas, como: a conversacional, a científica e a artística (ARAÚJO, 2001:121).
A conversacional é intencional. Atribui significado a partir dos supostos motivos, intenções e preocupações do orador, e apresenta suas conclusões como afirmações sobre a interpretação deste ao dizer o que disse. A interpretação científica apresenta-se como uma interpretação causal, o cientista começa por coletar dados, para depois interpretá-los. A interpretação artística, por sua vez, tem por finalidade justificar um ponto de vista acerca do significado, tema ou propósito de determinada obra artística: um poema, uma peça ou uma pintura, etc., apresentando-se como uma interpretação construtiva, preocupada essencialmente com o propósito, não com a causa. Assim, do ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação entre propósito e objeto (LAGES, 2001:39, grifos nossos).
A partir desse esquema, portanto, é possível compreender que a interpretação das práticas sociais assemelha-se mais à interpretação artística[22] – interpreta-se algo criado por pessoas, mas que representa uma entidade distinta delas –[23] e é ainda uma forma de interpretação construtiva. Assim,
Dworkin estabelece três etapas de interpretação, com a finalidade de tornar a interpretação construtiva instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto prática social. Observe-se apenas que a perspectiva aqui é analítica, não havendo diferenciação em graus. Primeiro, de acordo com Dworkin, deve haver uma etapa pré-interpretativa, na qual são identificados as regras e os padrões que se considerem fornecer o conteúdo experimental da prática. Mesmo na etapa pré-interpretativa é necessário algum tipo de interpretação. Em segundo lugar, deve haver uma etapa interpretativa em que o intérprete se concentra numa justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na pré-interpretativa. Isso vai consistir numa argumentação sobre a conveniência ou não de buscar uma prática com essa forma geral, raciocinar no sentido de buscar formar um pensamento sistemático sobre determinada matéria. A etapa pós-interpretativa ou reformuladora, a terceira e última etapa, consiste na etapa na qual o intérprete ajusta sua idéia daquilo que a prática “realmente” requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa (LAGES, 2001:40).[24]
Em acréscimo à idéia apresentada acima, tem-se a noção de paradigma jurídico, que complementa a interpretação construtiva (DWORKIN, 1999:88-89). Apesar de mutáveis no tempo, os paradigmas buscam estabilizar a tensão entre realidade e idealidade (CATTONI DE OLIVEIRA, 2003:119), uma vez que fornecem o compartilhamento de uma determinada “percepção” pressuposta do Direito.[25] Desse modo, paradigmas fixam interpretações, moldando a visão de uma comunidade a ele submetida, de tal modo que a rejeição a um paradigma, muitas vezes, pode ser lida por essa comunidade como um erro extraordinário.
O Direito – como um conceito interpretativo – exige, portanto, por parte da comunidade, um consenso inicial no sentido de estabelecer quais práticas sociais são consideradas jurídicas (nível pré-interpretativo).[26] Nessa perspectiva, pode-se compreender como Direito o “sistema de direitos e responsabilidade que respondem a [um] complexo padrão: autorizam a coerção porque decorre de decisões anteriores do tipo adequado” (DWORKIN, 1999:116). Todavia, esse conceito é provisório. Ele levanta uma exigência no sentido de proceder a uma análise mais detalhada de três concepções[27] do Direito:[28] o convencionalismo, o pragmatismo e o Direito como integridade.
O convencionalismo[29] pode ter a sua tese central apresentada da seguinte forma:
[...] a força coletiva só deve ser usada contra o indivíduo quando alguma decisão política do passado assim o autorizou explicitamente, de tal modo que advogados e juízes competentes estarão todos de acordo sobre qual foi a decisão, não importa quais sejam suas divergências em moral e política (DWORKIN, 1999:141).
Nessa leitura, o Direito é dependente de convenções sociais que irão determinar quais instituições gozam do poder de elaborar as leis e como elas podem fazer isso. Tudo estaria resumido ao respeito às convenções do passado e a sua aplicação, considerando a conclusão a que chegaram e nada mais. Mesmo assim, tal concepção reconhece que não haverá um Direito completo, capaz de abarcar toda a complexidade da vida social, uma vez que reconhece a possibilidade de que novos problemas apareçam. A solução, portanto, passa pela afirmação da discricionariedade do magistrado no momento de aplicação jurídica: uma vez que se reconhece que nenhuma das partes titulariza direitos capazes de amparar suas pretensões – já que os únicos direitos que podem contar são aqueles previamente fixados pelas convenções – os juízes devem encontrar alguma outra forma de justificativa, para além do Direito, que apóie a decisão a ser tomada; todavia a questão continua por demais aberta, assim eles poderão pautar-se por questões abstratas de justiça, ou questões que se refiram ao interesse coletivo, ou mesmo uma justificativa que se volte para o futuro.
Daí extraem-se duas afirmativas pós-interpretativas do convencionalismo, a de que os juízes devem respeitar as convenções jurídicas em vigor em sua comunidade, a não ser em raras circunstâncias; e a de que não existe direito a não ser aquele que é extraído de tais decisões por meio de técnicas que são, elas próprias, questões de convenção, e que, portanto, em alguns casos não existe direito. Neste caso, devem os juízes exercitar o seu poder discricionário, utilizando padrões extra-jurídicos para fazer o que o convencionalismo considera ser um novo direito. Ao decidirem discricionariamente, os juízes convencionalistas criam novo direito aplicável de forma retroativa às partes envolvidas no caso (LAGES, 2001:41).
Dworkin (1999:143-144) lembra que a concepção convencionalista apresenta distinções em relação às teorias semântico-positivistas, que, por serem uma teoria interpretativa, não fazem uso de um critério lingüístico para identificar o que é o Direito. No entanto, essas últimas apresentam um traço de semelhança com a Teoria do Direito como integridade, que é justamente o fato de ambas considerarem importantes as decisões tomadas no passado para processo de compreensão dos direitos presentes. Mas será justamente no modo como consideram essas decisões passadas que se encontra o seu traço distintivo.
O convencionalismo fracassa como interpretação da prática jurídica em função do seu aspecto negativo – isto é, ao afirmar que “[...] não existe direito a não ser aquele que é extraído de decisões por meio de técnicas que são, elas próprias, questões de convenção” (LAGES, 2001:42). Esse fracasso decorre do fato de os magistrados se tornarem mais dedicados às fontes convencionais (legislação e precedentes) do que lhes permite o convencionalismo.
Um juiz consciente de seu convencionalismo estrito perderia o interesse pela legislação e pelo precedente exatamente quando ficasse claro que a extensão explícita dessas supostas convenções tivesse chegado ao fim. Ele então entenderia que não existe direito, e deixaria de preocupar-se com a coerência com o passado; passaria a elaborar um novo direito, indagando qual lei estabeleceria a legislatura em vigor, qual é a vontade popular ou o que seria melhor para os interesses da comunidade no futuro (DWORKIN, 1999:159).
Todavia, esse novo direito deverá guardar uma coerência com a legislatura do passado. É justamente essa busca por coerência que pode explicar a preocupação com o passado. Dworkin identifica duas formas de coerência: coerência de estratégia e coerência de princípio. A primeira diz respeito à preocupação que qualquer um deve ter ao criar um novo direito, no sentido de que esse se ajuste ao que foi estabelecido, ou ao que venha a ser no futuro; o conjunto de regras deve funcionar conjuntamente, tornando a situação melhor. Já a coerência de princípio representa uma exigência de que os “[...] diversos padrões que regem o uso estatal da coerção contra os cidadãos seja coerente no sentido de expressaram uma visão única e abrangente da justiça” (LAGES, 2001:43).[30] É neste ponto que o convencionalismo mostra-se divergente da concepção do Direito como integridade: esta aceita a coerência de princípio como uma fonte de direitos, aquele não:
[...] o direito como integridade supõe que as pessoas têm direitos – direitos que decorrem de decisões anteriores de instituições políticas, e que, portanto, autorizam a coerção – que extrapolam a extensão explícita das práticas políticas concebidas como convenções. O direito como [integridade] supõe que as pessoas têm direitos a uma extensão coerente, e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente sobre seu significado. Isso é negado pelo convencionalismo: um juiz convencionalista não tem razões para reconhecer a coerência de princípio como uma virtude judicial, ou para examinar minuciosamente leis ambíguas ou precedentes inexatos para tentar alcançá-la (DWORKIN, 1999:164).
Um crítico do convencionalismo, como no caso do jurista de Oxford, deve ainda aclarar duas questões: (1) o pressuposto convencionalista segundo o qual qualquer consenso alcançado deve ser visto como uma questão de convenção ou como uma questão de convicção; e (2) a questão referente à segurança jurídica. Dworkin responde a essa primeira pergunta através de uma analogia com o jogo de xadrez:[31] no jogo, as regras são estabelecidas por meio de convenção e, no Direito, por meio de convicção, entendida essa como a necessidade de buscar uma fundamentação das práticas sociais à luz de uma teoria política. Por isso, no caso do convencionalismo,
[o] consenso que estabelece determinada convenção independe da convicção acerca do valor intrínseco de determinada regra, ou seja, uma proposição específica sobre a legislação, tida como verdadeira por convenção, prescinde de uma razão substantiva para a sua aceitação. Se o consenso é de convicção, qualquer ataque contra o seu argumento substantivo será um ataque contra a própria proposição. O consenso, de acordo com Dworkin, só vai durar enquanto a maioria dos juristas aceitar as convicções que o sustentam (LAGES, 2001:43).
E aqui percebe-se o fracasso da pretensão levantada pelos convencionalistas: a convenção não é imprescindível ao Direito, bastando que o nível de acordo de convicção seja alto o bastante em um momento dado para se permitir que o debate sobre as práticas jurídicas possa ter continuidade.[32] Além disso, uma análise das práticas pode demonstrar que os juízes, ao decidirem, tratam as técnicas de interpretação das leis e de avaliação de precedentes como princípios – e não como legados de uma tradição. Por isso mesmo, eles se apóiam em alguma teoria política mais profunda. Quando acham essa teoria política não é mais suficiente, eles elaboram teorias que lhes pareçam melhores (DWORKIN, 1999:169).
Quanto ao segundo problema (segurança jurídica), Dworkin afirma que a previsibilidade que o convencionalismo alega conseguir é ilusória, pois a discricionariedade, que constitui uma premissa interna a essa concepção, coloca em cheque a possibilidade de estabilidade; a expectativa social de segurança (previsibilidade) projetada pelo convencionalismo se desvanece completamente diante da subjetividade judicial (SOUZA CRUZ, 2003:34).
Superada a concepção convencionalista, Dworkin avança para análise e crítica do pragmatismo.[33] Aqui, assume-se nitidamente uma teoria interpretativa – não guardando traços com as teorias semânticas – mais elaborada que o convencionalismo e que vem, a cada dia, angariando mais adeptos. O convencionalismo e o pragmatismo possuem uma diferença básica: o segundo afirma que as pessoas nunca têm direito a nada, a não ser à decisão judicial, que, ao final, deve se revelar a melhor para a comunidade como um todo; e, por essa razão, não necessita estar atrelada a nenhuma decisão política do passado (DWORKIN, 1999:186). Agir como se as pessoas tivessem de fato algum direito pode ser justificado a longo prazo, apenas porque esse modo de agir pode servir melhor à sociedade. Vale-se, portanto, de uma “nobre mentira”: esses direitos como se representam uma estratégia, pois fazem a sociedade crer que as pretensões juridicamente tuteladas são levadas em consideração.
[Mas o] pragmatismo é uma concepção cética do direito porque rejeita a existência de pretensões juridicamente tuteladas genuínas, não estratégicas. Não rejeita a moral, nem mesmo as pretensões morais e políticas. Afirma que, para decidir os casos, os juízes devem seguir qualquer método que produza aquilo que acreditam ser a melhor comunidade futura, e ainda que alguns juristas pragmáticos pudessem pensar que isso significa uma comunidade mais rica, mais feliz ou mais poderosa, outros escolheriam uma comunidade com menos injustiças, com uma melhor tradição cultural e com aquilo que chamamos de alta qualidade de vida. O pragmatismo não exclui nenhuma teoria sobre o que torna uma comunidade melhor. Mas também não leva a serio as pretensões juridicamente tuteladas. Rejeita aquilo que outras concepções do direito aceitam: que as pessoas podem claramente ter direitos, que prevalecem sobre aquilo que, de outra forma, asseguraria o melhor futuro da sociedade. Segundo o pragmatismo, aquilo que chamamos de direitos atribuídos a uma pessoa são apenas os auxiliares do melhor futuro: são instrumentos que construímos pra esse fim, e não possuem força ou fundamento independentes (DWORKIN, 1999:195).
Assim, enquanto o juiz convencionalista deve ter os olhos voltados para o passado, o olhar de um pragmático se remete ao futuro; podendo, para tanto, deixar de respeitar a coerência de princípio com aquilo que outras autoridades públicas fizeram ou farão. As decisões do passado são apenas expedientes de convencimento para uma decisão previamente tomada e pautada por uma escolha política ou por valores de preferência do julgador (SOUZA CRUZ, 2003:37). Por isso, no pragmatismo, parece desaparecer qualquer separação entre legislação e aplicação judicial do Direito: o juiz, ao se posicionar desvinculado de toda e qualquer decisão política do passado, pode decidir os casos concretos aplicando um direito novo que ele mesmo criou. Nega-se, portanto, a necessidade de ser observada uma coerência de princípio, já que não se reconhece a importância dessa, ainda mais quando é polêmico e incerto qual seja a exigência de coerência a ser atendida.
Contra as questões levantadas pelas duas primeira concepções, Dworkin apresenta a concepção do Direito como integridade. Ele lembra que a teoria política utópica e a política comum compartilham dos seguintes alguns pontos – certos ideais políticos ou virtudes, na linguagem do autor (1999:199): (1) equanimidade[34] (fairness), que envolve a questão de encontrar os procedimentos políticos que distribuem o poder político de maneira adequada;[35] (2) justiça (justice), que se preocupa com decisões que as instituições políticas consagradas devem tomar, tenham ou não sido escolhidas com eqüidade;[36] e (3) devido processo legal adjetivo (procedure due process), que diz respeito a procedimentos corretos para julgar se algum cidadão infringiu as leis estabelecidas pelos procedimentos políticos.[37]
Todavia, existe ainda uma quarta virtude não compartilhada pela teoria política utópica: a integridade,[38] que, em uma primeira leitura, está relacionada com o clichê, segundo o qual, casos semelhantes devem receber o mesmo tratamento. Apurando melhor essa idéia, Dworkin sustentará que:
[a] integridade torna-se um ideal político quando exigimos o mesmo do Estado ou da comunidade considerados como agentes morais, quando insistimos em que o Estado aja segundo um conjunto único e coerente de princípios mesmo quando seus cidadãos estão divididos quanto à natureza exata dos princípios de justiça e [equanimidade] corretos (1999:202).
A integridade, como virtude, deve ser aplicada às virtudes da equanimidade, da justiça e do devido processo legal adjetivo, de modo a exigir, respectivamente: (1) que os princípios políticos necessários para julgar a suposta autoridade da legislatura sejam plenamente aplicados, ao se decidir o que significa uma lei por ela sancionada; (2) que os princípios morais necessários para justificar a substância das decisões do Legislativo sejam reconhecidos pelo resto do Direito; e (3) que sejam totalmente obedecidos os procedimentos previstos nos julgamentos e que se consideram alcançar o correto equilíbrio entre exatidão e eficiência na aplicação de algum aspecto do Direito. Em face do exposto, dirá o autor: a integridade interage com as demais virtudes, dotando-as de exigências que justificam a coerência de princípio; logo não é estranho afirmar que a integridade “é a vida do direito tal como conhecemos” (DWORKIN, 1999:203).
A integridade pode, no entanto, ser divida em dois princípios: um princípio de integridade na legislação (legislative principle), que pede aos que criam o Direito por legislação que o mantenham coerente quanto aos princípios; e um princípio de integridade na aplicação judicial do Direito (adjudicative principle), que pede aos responsáveis por decidir o que é o Direito, que o vejam e façam-no cumprir como sendo coerente nesse sentido. Assim,
[o] segundo princípio explica como e por que se deve atribuir ao passado um poder especial próprio no tribunal, contrariando o que diz o pragmatismo, isto é, que não se deve conferir tal poder. Explica por que os juízes devem conceber o corpo do direito que administram como um todo, e não como uma série de decisões distintas que eles são livres para tomar ou emendar uma por uma, com nada além de um interesse estratégico pelo restante (DWORKIN, 1999:203).
Resumindo a tese: a integridade nega que as manifestações do Direito sejam meros relatos factuais voltados para o passado, como quer o convencionalismo; ou programas instrumentais voltados para o futuro, como pretende o pragmatismo. Para o Direito como integridade, as afirmações jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretativas voltadas tanto para o passado quanto para o futuro (DWORKIN, 1999:272-273).[39]
Há um ponto que ainda suscita importantes comentários. Como afirmado anteriormente, ao discorrer sobre as virtudes compartilhadas por uma teoria política comum e uma teoria utópica, o professor norte-americano esclarece que a integridade seria dispensável para uma teoria voltada para um Estado utópico, já que ela sempre estaria garantida em um Estado que agisse de maneira perfeitamente justa e imparcial. Todavia, numa situação comum, essas mesmas virtudes (equanimidade, justiça e devido processo legal adjetivo) podem seguir caminhos opostos (DWORKIN, 1999:214). Algumas teorias buscam explicar que não poderia haver conflitos.[40] Mesmo assim, essas teorias são minoritárias, de modo que a grande maioria adota um posicionamento intermediário: equanimidade e justiça são, até certo ponto, independentes uma da outra. Nessa linha de raciocínio, muitas vezes, ter-se-ia que escolher entre uma ou outra virtude.
Desse modo, se for tomado um conceito de equanimidade na política que compreenda que cada pessoa ou grupo da comunidade deve ter um direito de controle, mais ou menos igual, sobre as decisões tomadas pelo Legislativo; parece lógico afirmar que certas questões não deveriam se apoiar em uma maioria numérica – desconsiderando as posições minoritárias – mas poderiam ser mais bem resolvidas através de negociações e acordos que permitissem uma representação proporcional de cada conjunto de opiniões no resultado final. Nesse caso, tem-se um direito “conciliatório” segundo Dworkin (1999:216-217). Ter-se-ia, portanto, que questões similares – como acidentes ou discriminações – deveriam receber um tratamento diferente, apoiado em bases arbitrárias.[41] Mas tal situação não observa a coerência de princípio, que é desejada pelo Direito como integridade. Aqui “[...] cada ponto de vista deve ter voz no processo de deliberação, mas a decisão coletiva deve, não obstante, tentar fundamentar-se em algum princípio coerente cuja influência se estenda então aos limites naturais de sua autoridade” (DWORKIN, 1999:217). Além disso, uma decisão conciliatória acaba por gerar mais injustiça do que aquela que pretende resolver.[42] Mas não é uma questão de justiça que pode fornecer o melhor argumento, condenando as decisões conciliatórias, mas sim de integridade. De fato, se toda a legislação e os precedentes fossem reunidos, o resultado, ainda assim, não seria um sistema de princípios únicos e coerentes. Mas,
[s]e, por outro lado, insistirmos em tratar as leis decorrentes de um acordo interno como os atos de um único e distinto agente moral, poderemos então condená-los por sua falta de princípios, e teremos uma razão para argumentar que nenhuma autoridade deveria contribuir para os atos carentes de princípio de seu Estado. Portanto, para defender o princípio [da integridade na legislação], devemos defender o estilo geral de argumentação que considera a própria comunidade como um agente moral (DWORKIN, 1999:227).
Uma sociedade que aceite a integridade como virtude se transforma, segundo Dworkin, em um tipo especial de comunidade que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar o monopólio da força coercitiva. Esse é o caso da comunidade de princípios, que segue a seguinte idéia:
Se as pessoas aceitam que são governadas não por regras explícitas, estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas por quaisquer outras regras que decorrem dos princípios que essas decisões pressupõem, então o conjunto de normas públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à medida que as pessoas se tornem mais sofisticadas em perceber e explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas circunstâncias, sem a necessidade de um detalhamento da legislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis pontos de conflito (DWORKIN, 1999:229).
A integridade, portanto, funciona como um elemento de promoção da vida moral e política dos cidadãos, fundindo circunstâncias públicas e privadas, além de criar uma interpenetração dessas questões.[43] A política ganha um significado mais amplo: transforma-se em uma arena de debates sobre quais princípios a comunidade deve adotar como sistema, bem como sobre que concepções de equanimidade, justiça e devido processo legal adjetivo devem pressupor. Os direitos e deveres políticos dos membros dessa comunidade não se esgotam nas decisões particulares tomadas pelas instituições, sendo dependentes do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam.
Paralelamente ao princípio de integridade na legislação, tem-se a exigência de integridade na aplicação judicial do Direito. Utilizando-se da noção de interpretação criativa, Dworkin compreende a aplicação judicial do Direito a partir da metáfora do romance em cadeia: aqui, tem-se um empreendimento coletivo. Cada juiz, tal qual cada romancista, é responsável pela redação de um capítulo de uma obra já iniciada. Nessa lógica, ele deve preocupar-se com a ligação do seu capítulo com o que já fora escrito e, concomitantemente, garantir uma abertura para que o escritor seguinte possa dar continuidade ao empreendimento.[44] O magistrado não pode, portanto, descuidar-se do caso pendente de julgamento; deve tratar todos os casos que lhe são apresentados como um hard case – isto é, um caso difícil – e comprometer-se em uma empreitada para solucioná-lo à luz da integridade do Direito.
O tópico que se segue pretende explorar um pouco mais a integridade na aplicação judicial do Direito, reforçando a tese dworkiana da possibilidade de se encontrar uma “resposta correta” para os casos difíceis; sem, contudo, apelar para uma discricionariedade ou qualquer outra compreensão que autorize o magistrado a criar direitos novos.