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A proposta de integridade para o direito de Ronald Dworkin.

Como casos podem ser decididos à luz de uma “resposta correta”

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25/02/2013 às 16:24

Resumo:


  • Dworkin critica a discricionariedade judicial e propõe a integridade do direito como alternativa às concepções positivistas e pragmáticas.

  • Ele utiliza a metáfora do "romance em cadeia" para ilustrar a atividade interpretativa dos juízes, que devem considerar a coerência histórica e princípios da comunidade jurídica.

  • A teoria de Dworkin sustenta a possibilidade de uma "resposta correta" em casos difíceis, refutando a ideia de que juízes criam direito ao decidir, e enfatizando a continuidade e coerência do direito.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

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Notas

[1] Santos Pérez (2003:5-6) lembra que Dworkin representa hoje um autor de referência na teoria e filosofia do Direito, cujas obras – entre artigos, livros, conferências – já atingem a proximidade de duzentas publicações e constituem leitura obrigatória dos estudiosos. Todavia, afirmar que um autor seja popular não significa dizer que ele seja bem conhecido, esse problema parece atingir o pensamento dworkiano. O propósito deste tópico é demonstrar como sua teoria pode fornecer novas luzes aos problemas apontados nos capítulos anteriores, principalmente como forma de superação das aporias em que se encontra a dogmática jurídica tradicional. Para tanto, será realizada uma apresentação reconstrutiva do pensamento desse jurista, tomando como fio condutor a argumentação desenvolvida em sua obra O Império do Direito, publicado originalmente, em 1986.

[2] Ver também SARAT, Austin. KEARNS, Thomas. The cultural lives of Law. SARAT, Austin. KEARNS, Thomas. (org.) Law in the domains of culture. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1998.

[3] A indagação sobre “o que é o Direito?”, por exemplo, é a questão primordial na obra de Hart, O Conceito de Direito, sendo a sua pergunta de abertura.

[4] Kelly (1996:267) explica que a opção pelo Judiciário como figura de referência em Dworkin, na realidade, compõe a sua crítica ao positivismo jurídico, pois, para essa tradição, a referência recai primordialmente sobre a atividade legislativa, tomando a atividade judicante como uma situação de segundo plano e de menor relevância. 

[5] Segundo Dworkin (1999:6), as proposições jurídicas variam de declarações muito gerais – como “a Constituição proíbe o tratamento discriminatório em razão da opção religiosa” – até declarações bem menos gerais, ou até concretas – como “a lei exige que a Acme Corporation indenize John Smith pelo acidente de trabalho que sofreu em fevereiro último”. Essas proposições são muitas vezes avaliadas como verdadeiras ou falsas – mas há quem sustente que elas podem ser mais bem descritas como “bem fundadas” ou “infundadas”; todavia essa distinção não traz qualquer acréscimo à discussão.

[6] Na divergência empírica, por exemplo, juristas concordariam que a velocidade máxima no Estado da Califórnia é de 90 km/h, uma vez que há, na lei de trânsito, uma afirmação expressa nesse sentido; todavia poderiam discordar desse limite se não houvesse a mesma afirmativa. Diferentemente é a divergência teórica, pois aqui parece haver um acordo entre os juristas sobre o que “dizem” a legislação e as decisões judiciais; mesmo assim, discordam quanto àquilo que a lei de trânsito realmente é, uma vez que parece haver uma discussão no sentido de saber se o corpus do Direito escrito ou o conjunto de decisões judiciais acabam por esgotar ou não os fundamentos pertinentes ao Direito. Desse modo, a divergência teórica é bem mais complexa do que uma mera discussão sobre quais palavras estão presentes nos códigos, sendo bem mais problemática.

[7] Todavia, a obra dworkiana (1999) sustenta a tese da divergência teórica do Direito; para tanto, o autor apresenta e reconstrói alguns casos bem populares desse tipo de divergência: (1) Caso Elmer (Riggs v. Palmer – 1889); (2) Caso Snail Darter (Tennessee Valley Authority vs. Hill – 1978); (3) Caso McLoughlin vs. O’Brian – 1983; e (4) Caso Brown vs. Board of Education of Topeka – Kansas – 1954.

[8] Dworkin lembra que essa influência do positivismo – marcado por um forte arquimedianismo (ver nota abaixo) – pode ser sentida também no universo da Literatura, no qual alguns estudiosos buscam desesperadamente desenvolver teorias que separem a interpretação da crítica literária. Mas, para uma hermenêutica crítica, isso não é um problema: “[a] interpretação de um texto tenta mostrá-lo como a melhor obra de arte que ele pode ser, e o pronome acentua a diferença entre explicar uma obra e transformá-la em outra. Talvez Shakespeare pudesse ter escrito uma peça melhor com base nas fontes que utilizou para Hamlet e, nessa peça melhor, o herói teria sido um homem de ação mais vigoroso. Não decorre daí, que Hamlet, a peça que ele escreveu, seja realmente como essa outra peça. Naturalmente, uma teoria da interpretação deve conter uma subteoria sobre a identidade de uma obra de arte para ser capaz de distinguir entre interpretar e modificar uma obra” (2001:223, grifos no original). O que se quer, então, afirmar é que, partindo dessas premissas, desaparecem os muros que separam uma teoria da interpretação de uma determinada interpretação. Isto é: “Não há mais uma distinção categórica entre a interpretação, concebida como algo que revela o real significado de uma obra de arte, e a crítica, concebida como avaliação de seu sucesso ou importância. Ainda resta uma distinção, pois sempre existe uma diferença entre dizer quão boa pode se tornar uma obra e dizer quão boa ela é. Mas convicções valorativas sobre a arte figuram em ambos os julgamentos” (DWORKIN, 2001:227).

[9] Dworkin (2004:2) chama de arquimedianismo (archimedeanism) as leituras que buscam separar de maneira rígida o Direito da Política e da Moral. Mas o arquimedianismo não é um privilégio do Direito, encontrando adeptos na tradição do Positivismo Filosófico e, por isso mesmo, representando uma leitura popular na Ciência, nas Artes, na Política, na Filosofia, etc. O argumento central e geral parte da afirmação da possibilidade de se vislumbrar uma metateoria que seria capaz de explicar a prática específica que eles estudam. Assim, em um nível, ter-se-iam as discussões sobre se algo ou uma idéia pode ser certo/errado, legal/ilegal, verdadeiro/falso, belo/feio; e, em outro nível mais elevado, o debate conduziria à definição desses conceitos e categorias, isto é, as discussões versariam sobre o que seja a beleza, a verdade, o justo, etc. Em sua discussão com Hart (1994), Dworkin (2004) demonstrará como o seu antecessor poderia muito bem se considerar pertencente a essa linha de pensamento, uma vez que não haveria como uma Teoria do Direito ser meramente descritiva, isto é, isenta de juízos de valor, como também esperava Kelsen (1999). Como já visto com Gadamer (2001), a atividade de valoração comporia as pré-compreensões não podendo ser afastada.

[10] Dworkin (1999:12) lembra que, no senso comum existente na sociedade, os repertórios de legislação e de jurisprudência conteriam normas jurídicas e interpretações capazes de abarcar cada questão que se possa trazer à presença de um juiz. Todavia, os acadêmicos partidários da tese do Direito como simples questão de fato reconhecem a possibilidade de lacuna, isto é, de inexistência de qualquer decisão institucional anterior – seja ela legislativa ou judicial. Nesse caso, a solução vem pela via do uso do discernimento do magistrado, que cria uma nova norma, preenchendo assim a lacuna, e aplica-a retroativamente ao caso pendente de decisão.

[11] Apesar de Dworkin inicialmente considerar a teoria de Hart uma forma de teoria semântica, na seqüência de sua explicação, ele acaba por afirmar que essa mesma teoria pode ser considerada uma forma de convencionalismo moderado. 

[12] Um problema surge quando se tem por base uma sociedade moderna: o controle político é pluralista e sujeito a mutabilidade, o que torna impossível identificar a pessoa ou grupo responsável pelo controle radical. Outra crítica que pode ser feita é que Austin, ao contrário de Hart, fundamenta o dever de obedecer unicamente na capacidade e na vontade do soberano, que titulariza o poder de causar dano àqueles que desobedecerem; desse modo, não se poderia diferenciar o Direito das ordens gerais de um gangster (DWORKIN, 2001d:122).

[13] Também em Kelsen, esse exemplo aparece, quando o mesmo se refere à distinção entre o Estado e um bando de salteadores, e remete à questão levantada antes por Santo Agostinho, em sua Civitas Dei. Para o jurista austríaco, a distinção se funda no fato de que é atribuído ao comando do órgão jurídico – o que não acontece no ato do salteador de estradas – o sentido objetivo de uma norma vinculadora de seu destinatário; em outras palavras: interpreta-se o comando de um, mas não o comando do outro, como uma norma objetivamente válida (KELSEN, 1999:49). Tal distinção processa-se de acordo com a metodologia kelseniana de separação do ser e do dever-ser, de modo que, enquanto a coação do salteador de estradas se apresenta como um será, ela opera no mundo do ser, ao passo que a norma estabelece algo que deve ser executado, portanto ligado ao plano do dever-ser (KELSEN, 1999:49-50). Não pode ser olvidado ainda que, para Kelsen, tanto o ato de um tribunal quanto o ato de qualquer órgão estatal ao aplicar o direito apresentam-se como uma norma individual dotada de um sentido objetivo. É por isso que, num caso, o ato pode ser visto como uma ameaça – isto é, um delito, um ato antijurídico – ao passo que em outro, como um ato jurídico – isto é, a execução de uma sanção pelo Estado (KELSEN, 1999:52).

[14] Entretanto, o fato de a teoria desenvolvida por Hart ser dotada de uma maior complexidade não a isenta de críticas, pois ainda deixa em aberto uma série de indagações, sendo a principal a seguinte: “Em que consiste a ‘aceitação’ de uma regra de reconhecimento? Muitos oficiais da Alemanha nazista obedeciam às ordens de Hitler como se fossem leis, mas só o faziam por medo. Isso significa que aceitavam uma regra de reconhecimento que o autorizava a criar leis? Se assim for, então a diferença entre a teoria de Hart e a de Austin torna-se ilusória, porque então não haveria diferença entre um grupo de pessoas que aceita uma regra de reconhecimento e outro que, por medo, simplesmente adota um modelo forçado de obediência. Se não foi assim, se a aceitação exige algo além da mera obediência, então parece possível afirmar que não havia direito na Alemanha nazista, que nenhuma proposição jurídica era verdadeira, lá ou em muitos outros lugares nos quais a maioria das pessoas afirmaria a existência de um direito, ainda que malévolo ou impopular. E assim a teoria de Hart não seria capaz de apreender, afinal, o modo como todos os advogados usam a palavra ‘direito’” (DWORKIN, 1999:43). Habermas (2002:12-13) destaca ainda uma distinção importante que escapa à tese de Hart: a diferença entre aceitação e aceitabilidade racional. Hart, assumindo a postura do observador sociológico, descreveu o Direito existente em uma sociedade como se o mesmo fossem jogos de linguagem: “Tal como a gramática de um jogo de linguagem, também a ‘regra cognitiva’ [ou seja, a sua regra de reconhecimento] enraíza-se numa práxis, que um observador só pode constatar como fato, enquanto ela representa, para os que dela participam, uma evidência cultural manifesta [...]” (HABERMAS, 2002:13). Essa explicação apenas corresponde ao fato de os integrantes dessa sociedade estarem “convictos” de suas normas; mas, ao deixar em aberto a questão acerca do sentido de justificação das mesmas, adota-se uma postura irracionalista, ou seja, esquece-se das pretensões de validade que devem ser aceitas de maneira racional.

[15] Tomando como base a teoria de Austin, Dworkin mostra que o teste de pedigree seria a afirmação de que o Direito é aquilo que o soberano diz ser; correspondentemente, na tese sustenta por Hart, a regra de conhecimento desempenhará esse papel. Apesar de silente no texto, ao lançar um olhar sobre a teoria kelseniana, pode-se concluir que a norma fundamental seria a candidata ao teste.

[16] Para tanto, basta observar a postura assumida por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, afirmando que a decisão do tribunal é discricionária, mas permaneceria como jurídica desde que estivesse incluída dentro da moldura de interpretações possíveis (1999:390). Contudo, após a edição de 1960, Kelsen dá uma guinada completamente diferente em sua teoria – um giro decisionista, ao admitir que o tribunal possa escolher uma interpretação que se situe fora dessa moldura interpretativa (1999:392-395). Como bem afirma Cattoni de Oliveira (2001:51), tal posicionamento coloca em “panne” a teoria kelseniana, pois rompe com o postulado metodológico da separação entre teoria e sociologia do Direito.

[17] Dworkin (1999:44) lembra que essa corrente radical é bastante implausível e freqüentemente cai em contradições: “Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, muitos juristas consideram o imposto de renda progressivo injusto, por exemplo, mas nenhum deles põe em dúvida o fato de que a lei desses países fixa o imposto a taxas progressivas”.

[18] “Sugerem, por exemplo, que quando uma lei permite diferentes interpretações, como no caso Elmer, ou quando os precedentes são inconclusivos, como no caso da sra. McLouglin, a interpretação que foi moralmente superior será a afirmação mais exata do direito” (DWORKIN, 1999:44).

[19] Interessante notar que essa afirmação de que o magistrado é livre totalmente para decidir, indiferentemente do que pensam seus demais pares, ou mesmo os teóricos jurídicos, ainda encontra acolhimento no Brasil, haja vista o voto do Min. Humberto Gomes de Barros, do STJ, no AgReg em ERESP n° 279.889-AL: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja” (grifos nossos).

[20] Como lembra Araújo (2001:121), Dworkin pretende superar o seguinte dilema: “Ou advogados, apesar das aparências, realmente aceitam, em linha gerais, os mesmos critérios para decidir quando uma afirmação sobre o direito é verdadeira, ou não pode existir absolutamente nenhum verdadeiro acordo ou desacordo sobre o que é o direito” (1999:56). Dworkin (1999:55) explica que seria razoável uma discussão somente quando se tratar de casos limítrofes – para exemplificar, ele transporta a questão para o universo literário: pode-se discutir se tal obra se trata de um livrinho ou um panfleto, todavia não podemos estar em desacordo quanto a se Moby Dick é ou não livro, apenas porque, na opinião pessoal de um dos debatedores, esse não considera romance uma forma de livro. A solução, então, na convergência das afirmações que não necessita ser total em todas as fases da interpretação.

[21] “Quando essa atitude interpretativa passa a vigorar, a instituição da cortesia deixa de ser mecânica; não é mais a deferência espontânea a uma ordem rúnica. As pessoas agora tentam impor um significado à instituição – vê-la em sua melhor luz – e, em seguida, reestruturá-la à luz desse significado” (DWORKIN, 1999:58, grifo no original).

[22] A partir da exigência da interpretação artística de tratar o objeto ou prática como o melhor possível, todavia, não decorre a afirmação de que o intérprete poderá fazer ou compreender o que bem quiser, pois lembrando o princípio gadameriano da história efetual, tem-se que “[...] a história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos [...]” (DWORKIN, 1999:64). Vale, ainda, lembrar que a experiência artística é, também, para Gadamer uma referência importante. Desse modo, o autor faz uso dela para iniciar a explicação sobre a experiência hermenêutica: “A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá transformar aquele que a experimenta. O ‘sujeito’ da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de que a experimenta, mas a própria obra de arte” (GADAMER,  2001:32).

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[23] Algumas teorias da interpretação jurídica, contudo, ainda parecem ter como referência a interpretação conversacional, remontando ao pensamento da hermenêutica pré-gadameriana ou aos estudos de Betti. Assim, essa tese compreende mal, como já visto, a própria atividade de interpretação: no caso das práticas sociais, portanto, a atividade de interpretação deve sim conduzir a uma construção do melhor objeto possível, isto é, identificar uma interpretação que melhor satisfaça a finalidade da regra; não pode, portanto, se limitar a busca da intenção do autor – como querer os originalistas, principalmente, no Direito norte-americano –, como forma de garantia de objetividade da interpretação, ainda assim, essa busca se pautaria por escolhas que o intérprete fez no sentido de compreender melhor o seu objeto, o que nada mais é do que a aplicação da interpretação construtiva; por fim, não se pode nem tomar uma prática social como uma obra de um autor determinado, nem atribuí-la a ninguém, e com isso, lançar mão de uma interpretação científica, pois uma prática social para ser compreendida exige uma atitude interna, condizente com a condição de um participante dessa prática, não havendo lugar para uma simples descrição (DWORKIN, 2004:5).

[24] Araújo (2001:122) e Souza Cruz (2003:30-31) apresentam excelentes esquemas, que podem ser tomados como complementares a esse. Segundo este último autor, através da interpretação construtiva Dworkin supera o aguilhão semântico inerente ao positivismo, “[...] uma vez que percebe haver elemento de mutação temporal no conceito interpretativo do Direito, próprio do ciclo paradigmático. Em outras palavras, a comunidade jurídica não possui um conjunto uniforme de compreensões sobre as proposições jurídicas, mas, ao contrário, tais compreensões se modificam à medida que a sociedade se modifica também”.

[25] Sobre do que se entende por paradigma e “paradigmas jurídicos” ver o primeiro capítulo da presente pesquisa.

[26] Em sentido contrário, para o aguilhão semântico, a identificação dessas práticas acontece por meio de uma definição comum daquilo que necessariamente configura um sistema jurídico, bem como das instituições que o constituem (DWORKIN, 1999:114; ARAÚJO, 2001:123).

[27] Deve-se atentar para a distinção dworkiana entre os termos concepção e conceito: “o contraste entre conceito e concepção é aqui um contraste entre níveis de abstração nos quais se pode estudar a interpretação da prática” (1999:87). Nessa lógica, tem-se que um conceito possuiria um conteúdo aberto que admite diferentes concepções, segundo uma perspectiva tomada. Falar em teoria sobre o conceito de Direito seria um retorno à tese semântica que justamente pretende ser combatida; a concepção de Direito, portanto, não está pautada sob regras básicas da linguagem de observação obrigatórias a todos que desejam fazer-se entender, mas antes disso, em uma compreensão interpretativa, temporal, que se mantém graças a um padrão de acordo e desacordo.

[28] “As concepções do direito aprimoram a interpretação inicial e consensual que [...] proporciona nosso conceito de direito. Cada concepção oferece as respostas relacionadas a três perguntas colocadas pelo conceito. Primeiro, justifica-se o suposto elo entre o direito e a coerção? Faz algum sentido exigir que a força pública seja usada somente em conformidade com os direito e responsabilidade que ‘decorrem’ de decisões políticas anteriores? Segundo, se tal sentido existe, qual é ele? Terceiro, que leitura de ‘decorrer’ – que noção de coerência com decisões precedentes – é a mais apropriada? A resposta que uma concepção dá a essa terceira pergunta determina os direitos e responsabilidade jurídicos concretos que reconhece” (DWORKIN, 1999:117-118).

[29] Dworkin (1999:152) identifica dois tipos de convencionalismo: estrito e moderado. O “convencionalismo estrito restringe a lei de uma comunidade à extensão explícita de suas convenções jurídicas, como a legislação e o precedente” (LAGES, 2001:42). Trata-se de uma concepção bastante restrita do Direito. Por outro lado, o convencionalismo moderado compreende o Direito de uma comunidade como incluindo tudo o que estiver dentro da extensão – mesmo que implicitamente – das convenções. Desse modo, o convencionalismo estrito declara a existência de uma lacuna e requer o exercício do poder discricionário do juiz – que por meio de padrões extrajurídicos, cria um novo direito. Para o convencionalismo moderado, não haveria necessidade de declarar a existência da lacuna; ainda que de maneira polêmica, afirma que há uma maneira “correta” de interpretar as convenções abstratas, de modo que elas possam responder a qualquer caso que surja (DWORKIN, 1999:155). Sob essa ótica, então, o convencionalismo moderado – que é assumido por Hart – pode-se mostrar como uma forma subdesenvolvida da tese do Direito como integridade – já que “não garante e nem mesmo promove o ideal das expectativas asseguradas, segundo o qual as decisões do passado somente serão tomadas por base para justificar a força coletiva quando sua autoridade e seus termos forem inquestionáveis sob a perspectiva das convenções amplamente aceitas (LAGES, 2001:42). Dessa forma, apenas o convencionalismo estrito será objeto das críticas de Dworkin. 

[30] “Um juiz que visa à coerência de princípio se preocuparia, de fato, como os juízes de nossos exemplos, com os princípios que seria preciso compreender para justificar leis e procedentes do passado” (DWORKIN, 1999:163-164).

[31] Dworkin (1999:167-168) reconhece que, com o passar dos tempos, as regras de um jogo podem sofrer mudanças; mesmo assim, há uma diferença quando essas regras foram aceitas como uma convenção. “Se um congresso mundial de xadrez se reunisse para reconsiderar as regras para os torneios futuros, os argumentos apresentados em tal congresso estariam claramente deslocados dentro de um jogo de xadrez, e vice-versa. Talvez o xadrez fosse mais estimulante e interessante se as regras fossem mudadas de modo a permitir que o rei avançasse duas casas em cada lance. Mas ninguém que pensasse assim traria a sugestão como um argumento de que o rei pode agora, como o determinam as regras, avançar duas casas por vez. Por outro lado, mesmo durante o jogo,os advogados muitas vezes pedem por mudanças de práticas estabelecidas. Alguns dos mais antigos argumentos que as intenções legislativas levam em conta foram apresentados a juízes no decorrer de processos. Importantes mudanças na doutrina do precedente também foram feitas no decorrer do jogo: juízes foram convencidos, ou se convenceram eles próprios, de que na verdade não estavam presos às decisões que seus predecessores haviam considerado obrigatórias. [...] não foram o resultado de acordos especiais com a finalidade de chegar a uma nova série de convenções” (1999:168).

[32] “A atitude interpretativa precisa de paradigmas para funcionar efetivamente, mas estes não precisam ser questões de convenção. Será suficiente que o nível de acordo de convenção seja alto o bastante em qualquer momento dado, para permitir que o debate sobre práticas fundamentais como a legislação e o precedente possa prosseguir da maneira como descrevi no segundo capítulo, contestando os diferentes paradigmas um por um, como a reconstrução do barco de Neurath no mar, prancha por prancha” (DWORKIN, 1999:169).

[33] Souza Cruz (2003:34-35) lembra que o pragmatismo aproxima-se do realismo jurídico, como o convencionalismo aproxima-se do positivismo, mas certamente é algo mais radical. O realismo jurídico compreende o Direito como uma criação social do Judiciário, voltando-se para uma perspectiva utilitarista na avaliação de direitos individuais e interesses comuns. Rejeita-se de plano a tentativa de desenvolver uma “jurisprudência dos conceitos” como faz o positivismo, tentando-se descobrir conceitos jurídicos puros.

[34] O presente trabalho faz uso da expressão equanimidade, por considerá-la mais adequada que o termo eqüidade, utilizado nas traduções brasileiras de Dworkin e de Rawls. Para tanto, transcreve-se o alerta de Cattoni de Oliveira (2001:113): “Não traduzimos o termo inglês fairness por eqüidade e sim por equanimidade, a fim de marcar o quadro não-aristotélico em que a Teoria da Justiça de Rawls [bem como, a Teria do Direito como Integridade de Dworkin, foram elaboradas], [assim, o termo assume] uma concepção que se pretende procedimental e não substancialista [...]”.

[35] Esses procedimentos atribuem a todos os cidadãos mais ou menos a mesma influencia sobre as decisões que os governam.

[36] “Se aceitarmos a justiça como uma virtude política, queremos que nossos legisladores e outras autoridade distribuam recursos materiais e protejam as liberdade civis de modo a garantir um resultado moralmente justificável” (DWORKIN, 1999:200).

[37] “[...] se o aceitarmos [o devido processo legal adjetivo] como virtude, queremos que os tribunais e as instituições análogas usem procedimentos de prova, de descoberta e de revisão que proporcionem um justo grau de exatidão, e que, por outro lado, tratem as pessoas acusadas de violação como devem ser tratadas as pessoas em tal situação”(DWORKIN, 1999:200-201).

[38] Sobre a integridade esclarece Dworkin (1999:202): “Essa exigência específica de moralidade não se encontra, de fato, bem descrita no clichê de que devemos tratar os casos semelhantes da mesma maneira. Dou-lhe um título mais grandioso: é a virtude da integridade política. Escolhi esse nome para mostrar sua ligação com um ideal paralelo de moral pessoal”. 

[39] “O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram [...] em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que ‘lei é lei’, bem como o cinismo do novo ‘relativismo’. Considera esses dois pontos de vista como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer” (DWORKIN, 1999:274).

[40] “Alguns filósofos negam a possibilidade de qualquer conflito fundamental entre justiça e [equanimidade] por acreditarem que, no fim das contas, uma dessas virtudes deriva da outra. Alguns afirmam que, separada da [equanimidade] a justiça não tem sentido, e que em política, como na roleta dos jogos de azar, tudo aquilo que provenha de procedimentos baseados na [equanimidade] é justo. Esse é o extremo da idéia denominada justiça como [equanimidade]. Outros pensam que, em política, a única maneira de pôr à prova a [equanimidade] é o teste do resultado, que nenhum procedimento é justo a menos que tenda a produzir decisões políticas que sejam aprovadas num teste de justiça independentes. Esse é o extremo oposto, o da [equanimidade] como justiça” (DWORKIN, 1999:214). 

[41] “É claro que aceitamos distinções arbitrárias sobre certas questões: o zoneamento, por exemplo. Aceitamos que estabelecimentos comerciais ou fábricas sejam proibidos em certas zonas e não em outras, e que se proíba o estacionamento de um dos dois lados da mesma rua em dias alternados. Mas rejeitamos uma divisão entre as correntes de opinião quando o que está em jogo são questões de princípio” (DWORKIN, 1999:217).

[42] “Quem acredita que o aborto é assassinato pensará que a lei conciliatória sobre o aborto produz mais injustiça que uma proibição cabal, e menos que uma autorização ilimitada; quem acredita que as mulheres têm direito vai inverter essas opiniões. Assim, os dois lados têm uma razão de justiça para preferir uma solução que não seja a conciliatória” (DWORKIN, 1999:218-219). Outro exemplo, este sim bastante concreto, está relacionado às normas escravocratas norte-americanas: “[...] se contavam três quintos da população de escravos de um estado para determinar sua representação no Congresso e para proibir que este limitasse o poder original dos [E]stados de importar escravos, mas somente antes de 1808” (DWORKIN, 1999:223).

[43] Com Habermas (1998), será possível compreender como público e privado representam elementos equiprimordiais e, por isso mesmo, complementares.

[44] Neste momento, a presente explanação preocupa-se apenas com trazer uma noção do romance em cadeia, uma vez que a metáfora será explorada no tópico seguinte,  o que tornaria redundante a discussão.

[45] O presente trabalho faz uso da expressão resposta correta em vez de resposta certa, opção feita pelos tradutores nacionais (DWORKIN. 2001:175), pois pode-se perceber que a resposta correta encerra em si uma pretensão de validade normativa (correção). Para melhor compreensão, ver as pesquisas de Habermas (2004; 1998) e Günther (1993).

[46] Desde já, faz-se um esclarecimento: sustentar a possibilidade da “resposta correta” em momento algum está relacionado à descoberta de uma única interpretação que solucione o caso concreto – pois, nesse sentido, estar-se-ia virando as costas para todos os ensinamentos de Gadamer, o que não é o caso. A “resposta” correta pode ser mais bem compreendida a partir de uma busca pela melhor interpretação para um caso concreto, levando em conta, para tanto, a integridade do Direito – isto é, todo o processo de compreensão dos princípios jurídicos ao longo da história institucional de uma sociedade, de modo a dar continuidade a essa história, corrigindo eventuais falhas, ao invés de criar novos direitos a partir da atividade jurisdicional. Uma versão modificada dessa crítica, como a levada adiante por Freitas (2003; 2004), somente se sustenta tomando o curso de uma interpretação axiológica do Direito, que converte princípios em valores e reduz o processo (dialético/discursivo) de aplicação do Direito à esfera da racionalidade solipsista do julgador, uma vez que Direito passa a ser tratado à luz de critérios de preferência e não ligado ao que seja licitude/ilicitude. 

[47] Trata-se do texto Model of Rules, publicado originalmente na Chicago Law Review, n. 35 (1967-1968), tendo sido depois republicado como o capítulo 2 da obra Levando os Direitos a Sério (com tradução para o português pela Editora Martins Fontes, em 2002).

[48] Todavia, adianta-se que, diferentemente do que foi argumentado ao se apresentar a teoria de Alexy, Dworkin afirmará que: (1) não se reduz a questão de distinção entre princípios e regras a uma questão morfológica; (2) nem atribui-se a aplicação das regras a um raciocínio de subsunção e a aplicação de princípios a um método de ponderação; e (3) muito menos se procede a uma equiparação funcional entre princípios e valores. Tanto princípios como regras continuam a gozar de uma natureza deontológica, cuja aplicação procede mediante um juízo de adequabilidade, como observa Günther (1993) e Habermas (1998).

[49] Deve-se alertar para o fato de que as traduções para a língua espanhola utilizam o termo normas como sinônimo de regras jurídicas, como faz Calsamiglia (1992:168-169), o que acaba por induzir à idéia errônea de que princípios não são normas jurídicas, mas sim ligados ao chamado Direito Natural.

[50] Aqui cabe uma ressalva importante. Aleinikoff (1987) busca traçar um panorama da utilização da chamada ponderação ou balanceamento, que os tribunais norte-americanos alegam adotar, a partir do início do século XX. Todavia, aponta que, em vários os casos, não é preciso vislumbrar a questão a partir da ótica do conflito entre interesses a serem ponderados; desse modo, ele assinala uma importante diferença que parece ser olvidada pelos seus defensores: nem sempre ponderar significaria algo como colocar interesses concorrentes (ou princípios) numa balança e sopesá-los. Dentro da tradição norte-americana, ponderar acaba por significar, ainda, refletir; de modo que a solução dos conflitos entre princípios envolve muito mais um exercício de reflexão que vai culminar com uma construção teórica acerca do princípio adequado  do que um tratamento axiológico. Dirá Aleinikoff (1987:1001): “In sum, balancing is not inevitable. To balance the interests is not simply to be candid about how our minds – and legal analysis – must work. It is to adopt a particular theory of interpretation that requires justification”. Logo, há uma diferença importante no emprego do termo por um autor como Dworkin – que dele faz uso no sentido de realizar uma reflexão – e por outro como Alexy – que o utiliza no primeiro sentido.

[51] Aqui, portanto, já é possível notar uma diferença fundamental na compreensão dworkiana acerca dos princípios para a tese sustentada por Alexy: tanto princípios como regras são enunciados deontológicos, isto é, visam ao que é devido; logo uma aplicação que preserve essa natureza deve observar a tese da bivalência –  conforme será explicado mais à frente – caso contrário, a decisão que aplicasse gradualmente os princípios  careceria de referências quanto à pretensão de correção da ação.

[52] Dworkin (2002:43) reconhece que é muito difícil distinguir entre um ou outro standard. Logo, a questão fica transferida não para uma construção semântica, mas sim pragmática, isto é, a separação se dará de acordo com a argumentação e a apresentação de razões pelos envolvidos na discussão, o que denota uma especial atenção com a dimensão pragmática da linguagem e do Direito. Uma observação importante diz respeito à compreensão que a dogmática jurídica brasileira vem desenvolvendo com relação às normas que apresentam cláusulas gerais. O alerta dworkiano (2002:45) é importante: “Palavras como ‘razoável’, ‘negligente’, ‘injusto’ e ‘significativo’ desempenham freqüentemente essa função. Quando uma regra inclui um desses termos, isso faz com que sua aplicação depende, até certo ponto, de princípios e [diretrizes] políticas que extrapolam a [própria] regra. A utilização desses termos faz com que essa regra se assemelhe mais a um princípio. Mas não chega a transformar a regra em princípio, pois até mesmo o mesmo restritivo desses termos restringe o tipo de princípios e [diretrizes] políticas dos quais podem depender as regras”. Assim, equivocam-se aqueles que afirmam que, por exemplo, o Código Civil vigente seja um “código principiológico”, tal afirmação traz uma contradição nos próprios termos (contradictio in adjecto); além do mais, tal técnica de redação de regras, tão elogiada por muitos juristas, apenas tem servido para reforçar a tese da discricionariedade dos juízes, que preenchem essas regras a partir de razões unilaterais e juízos de conveniência (NOJIRI, 1998:97); por isso tal construção encontra sérias objeções em uma compreensão procedimentalista do Estado Democrático de Direito.

[53] Ver, RAZ, Joseph. Legal principles and the limits of Law. Yale Law Journal. n. 823 (1972).

[54] “O meu ponto não é que ‘o direito’ contenha um número fixo de padrões, alguns dos quais são regras e outros, princípios. Na verdade, quero opor-me à idéia de que ‘o direito’ é um conjunto fixo de padrões de algum tipo. Ao contrário, o que enfatizei foi que uma síntese acurada dos elementos que os juristas devem levar em consideração, ao decidirem um determinado problema sobre deveres e direitos jurídicos, incluirá proposições com a forma e a força de princípios e que, quando justificam suas conclusões, os próprios juristas e juízes, com freqüência, usam proposições que devem ser entendidas dessa maneira” (DWORKIN, 2002:119-120).

[55] Dworkin (2002:131) utiliza como exemplo de uma decisão pautada em uma diretriz política o caso Spartan Steel & Alloys Ltd. vs. Martin & Co., [1973] 1 Q.B. 27. Aqui os empregados do réu haviam rompido um cabo elétrico pertencente a uma companhia que fornecia energia ao autor da ação, de modo que este foi forçado a fechar sua fábrica durante o período de manutenção do cabo, gerando prejuízos econômicos. A pergunta posta para o tribunal foi se o demandante tinha direito a ser indenizado em razão de sua perda econômica – o que é uma questão de princípio – e não se a questão poderia ser resolvida concluindo-se que seria economicamente sensato repartir a responsabilidade pelo acidente, como sugerido pelo demandante – o que é um argumento derivado de uma diretriz política. Todavia, o tribunal não poderia ter feito às vezes de órgão legislativo, de modo que a segunda opção para argumentar sua decisão não estaria disponível, conforme critica Dworkin (2002:132).

[56] “A história institucional da sociedade, nesta perspectiva, não age como um limite, ou um constrangimento à atividade jurisdicional. Ao contrário, ela atua como um ingrediente desta atividade [...]. Os direitos dos indivíduos são, ao mesmo tempo, frutos da história e da moralidade de uma determinada comunidade. Estes direitos dependem das práticas sociais e da justiça das suas instituições” (KOZICK, 2000:184-185).

[57] “Um argumento de princípio pode oferecer uma justificação para uma decisão particular, segundo a doutrina da responsabilidade, somente se for possível mostrar que o princípio citado é compatível com decisões anteriores que não foram refeitas, e com decisões que a instituição está preparada para tomar em circunstâncias hipotéticas” (DWORKIN, 2002:138).

[58] Hércules é primeiro apresentado aos leitores no ensaio Casos Difíceis (Hard Cases, no título original), presente como o capítulo 4 da obra Levando os Direitos à Sério, mas originalmente publicado como um ensaio na Harvard Law Review nº. 88 (1974-1975), retornando posteriormente no Império do Direito (1999:165). São de chamar a atenção as diversas leituras feitas dessa figura de linguagem, o que levou à formulação de diversas críticas quanto ao solipsismo de Hércules, as quais se mostram infundadas por olvidarem: as demais construções de Dworkin que complementam a metáfora e sua herança hermenêutica, como se fez questão de destacar no início do presente trabalho. Nesse mesmo sentido, tem-se a leitura de Dworkin realizada por Cattoni de Oliveira (2003:116).

[59] Ao analisar os precedentes, Hércules observará a existência de um fenômeno que Dworkin (2002:176) chama de força gravitacional dos precedentes: um juiz tenderá sempre a demonstrar que sua decisão está associada a uma decisão tomada no passado por outros juízes; desse modo segue a idéia intuitiva de que deve procurar decidir casos semelhantes de maneira semelhante. Essa força gravitacional é restrita aos argumentos de princípio necessários para justificar as decisões anteriores.

[60] “Assim, Dworkin descreve como Hércules julgaria o caso McLoughlin. Primeiramente, o juiz selecionaria diversas hipóteses para corresponderem à melhor interpretação dos casos precedentes. Em cada interpretação possível, Hércules pergunta-se se uma pessoa poderia ter dado os veredictos dos casos precedentes se estivesse, coerente e conscientemente, aplicando os princípios subjacentes a cada interpretação (note-se que os juízes não podem se utilizar de questões de política, como os legisladores). Posteriormente, num passo mais avançado, o juiz deve colocar à prova as interpretações restantes, confrontando-as com a totalidade da prática jurídica de um ponto de vista mais geral. Para tanto, deve levar em consideração se as decisões que exprimem um princípio parecem mais importantes, fundamentais ou de maior alcance que as decisões que exprimem o outro (mesmo que um ou outro princípio não estejam explícitos em decisões passadas). Seguindo-se o processo decisório, o magistrado deve decidir que é a interpretação que mostra o histórico jurídico como o melhor possível do ponto de vista da moral política substantiva (que análise mostra a comunidade sob uma luz melhor, a partir do ponto de vista da moral política?). Assim, segundo Dworkin, sua resposta dependerá de sua convicções sobre as duas virtudes que constituem a moral política: a justiça e a equidade em cada caso concreto (pois, muitas vezes, é necessário o sacrifício parcial de alguma virtude política)” (ARAÚJO, 2001:133, grifos no original).

[61] “A segunda parte de sua teoria dos erros deve demonstrar que ela é, não obstante isso, uma justificação mais forte do que qualquer alternativa que não reconheça erros, ou que reconheça um conjunto diferente de erros. Essa demonstração não pode ser uma dedução a partir de regras simples de construção teórica, mas, se Hércules tiver em mente a ligação que anteriormente estabeleceu entre precedente e [equanimidade] tal ligação indicará duas diretrizes para sua teoria. Em primeiro lugar, a [equanimidade] vincula-se à história institucional não apenas [como] história, mas como um programa político ao qual o governo se propõe a dar continuidade no futuro; em outras palavras, ela vincula-se a implicações futuras do precedente, e não às passadas. Se Hércules descobrir que alguma decisão anterior, seja uma lei ou uma decisão judicial, é presentemente muito criticada no ramo pertinente da profissão, tal fato, por si só, revela a vulnerabilidade daquela decisão. Em segundo lugar, Hércules deve lembrar-se de que o argumento de [equanimidade] que exige consistência não é o único argumento de [equanimidade] ao qual devem responder o governo em geral, e os juízes em particular. Se Hércules acreditar, deixando de lado qualquer argumento de consistência, que uma lei ou uma decisão específica é errônea por não ser eqüitativa no âmbito do conceito de [equanimidade] da própria comunidade, essa crença será suficiente para caracterizar tal decisão e torná-la vulnerável. Ele deve, por certo, aplicar as diretrizes sem perder de vista a estrutura vertical de sua justificação geral, de modo que as decisões tomadas em um nível inferior sejam mais vulneráveis do que as que pertencem a um nível superior” (DWORKIN, 2002:191).

[62] Segundo Habermas (1998:283): “La teoría del juez Hércules reconcilia las decisiones racionalmente reconstruidas del pasado con la pretensión de aceptabilidad racional en el presente, reconcilia la historia con la justicia. Esa teoría disuelve la «tensión entre la originalidad del juez y la historia institucional … los jueces han de emitir fallos nuevos sobre las pretensiones de partes que se presentan ante ellos, pero estos derechos políticos no se oponen a las decisiones políticas del pasado, sino que las reflejan»”.

[63] Dworkin (1999:276) reconhece que esse empreendimento pode ser considerado fantástico, mas não impossível: “Na verdade, alguns romances foram escritos dessa maneira, ainda que com uma finalidade espúria, e certos jogos de salão para os fins de semana chuvosos nas casas de campo inglesas têm estrutura semelhante. As séries de televisão repetem por décadas os mesmos personagens e um mínimo de relação entre personagens e enredo, ainda que sejam escritas por diferentes grupos de autores e, inclusive, em semanas diferentes”. Todavia, Dworkin (1999:276) faz uma advertência: “Em nosso exemplo, contudo, espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidade de continuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível”.

[64] A questão pode ser, então, examinada pelo prisma de duas dimensões muito utilizadas: “a dimensão ‘formal’, que indaga até que ponto a interpretação se ajusta e se integra ao texto até então concluído, e a dimensão ‘substantiva’, que considera a firmeza da visão sobre o que faz com que um romance seja bom e da qual se vale a interpretação” (DWORKIN:2001:236). Mas ainda assim é possível uma discordância razoável, sem que, contudo, se caia no ceticismo de afirmar que tudo é uma questão meramente subjetiva. “Nenhum romancista, em nenhum ponto, será capaz de simplesmente ler a interpretação correta do texto que recebe de maneira mecânica, mas não decorre desse fato que uma interpretação não seja superior às outras de modo geral. De qualquer modo, não obstante, será verdade, para todos os romancistas, além do primeiro, que a atribuição de encontrar (o que acreditam ser) a interpretação correta do texto até então é diferente da atribuição de começar um novo romance deles próprios” (Dworkin, 2001:236-237).

[65] Assim caem por terra as pretensões de teorias que busquem – quer na Literatura, quer no Direito – atingir a interpretação do autor. Sobre esse ponto deve-se indagar: (1) é possível descobrir o que o autor realmente pretendia?; e (2) isso é realmente importante? O autor lembra que a própria noção de “intenção” pode ser mais problematizada do que uma mera descrição de um estado mental do autor. Através do exemplo de uma montagem contemporânea da peça shakespeariana O Mercador de Veneza, Dworkin ilustra que a repetição estrita das intenções do autor ao conceber a personagem Shylock pode representar uma traição ao próprio propósito do autor ao imaginá-lo e construí-lo inicialmente. O intérprete, então, tem a tarefa de fazer o que Gadamer nomeou de fusão de horizontes, de modo que a “interpretação deve, de alguma maneira, unir dois períodos de ‘consciência’ ao transportar as intenções de Shakespeare para uma cultura muito diferente, situada no término de uma história diferente” (DWORKIN, 1999:68). Os intencionalistas, então, desconsideram que um autor pode separar o que escreveu de suas intenções e crenças, de modo a tratá-las como objeto em si. Por isso mesmo, pode-se compreender que novas conclusões são possíveis, permitindo que um livro possa ser lido de modo mais coerente, da melhor forma possível. Talvez fosse possível isolar as opiniões de um autor – fruto de um momento específico – mas, mesmo que isso fosse considerado como “intenções”, estar-se-ia ignorando outros níveis de intenções, como exemplo, a intenção de criar uma obra que não seja assim determinada. Mas isso passa despercebido pelos defensores da escola de intenção do autor, ao tomarem o valor de uma obra de arte a partir de uma visão restrita às possíveis intenções de quem a produziu.

[66] Para ilustrar isso, tem-se a hipótese da tia que, pelo telefone, sofreu dano emocional ao saber que sua sobrinha tinha sido atropelada, vindo, ao ingressar em juízo, argumentar a seu favor a aplicação de um precedente da Suprema Corte do Estado de Illinois, que considerou indenizável o dano emocional de uma mãe que presenciasse o atropelamento de sua filha por um motorista negligente (DWORKIN, 2001:220). O juiz desse caso “[...] deve decidir qual é o tema, não apenas do precedente específico da mãe na rua, mas dos casos de acidente como um todo, inclusive esse precedente. Ele pode ser obrigado a escolher, por exemplo, entre estas duas teorias sobre o ‘significado’ da corrente de decisões. Segundo a primeira, os motoristas negligentes são responsáveis perante aqueles a quem sua conduta pode causar dano físico, mas são responsáveis perante essas pessoas por qualquer dano – físico ou emocional – que realmente causem. Se esse é o princípio correto, então a diferença decisiva entre esse caso e o caso da tia consiste apenas em que a tia não corria o risco físico e, portanto, não pode ser indenizada. Na segunda teoria, porém, os motoristas negligentes são responsáveis por qualquer dano que é razoável esperar que prevejam, se pensarem sobre sua conduta antecipadamente. Se é esse o princípio correto, então a tia tem direito à reparação. Tudo depende de determinar se é suficientemente previsível que uma criança tenha parentes, além de seus pais, que possam sofrer choque emocional ao saber de seu ferimento. O juiz que julga o caso da tia precisa decidir qual desses princípios representa a melhor ‘leitura’ da corrente de decisões a que deve dar continuidade” (DWORKIN, 2001:238-239). Dworkin (1985:179) fornece ainda um outro exemplo do que seria uma resposta correta, desta vez, através da crítica à decisão proferida pelo Juiz Bork no julgamento do caso Dronenburg v. Zech (741 F.2d 1388, D.C. Cir. 1984) e de sua reconstrução. Dronenburg processou a Marinha Norte-Americana sustentando que sua dispensa se deu em prejuízo de seus direitos fundamentais, que foram violados. Em contrapartida, argumentaram que a causa de sua dispensa havia sido a acusação confessa de ter tido relações homossexuais em um quartel. A decisão de Bork, contudo, limitou-se a afirmar, bem na esteira da tradição positivista, que não existia nenhuma regra positivada na legislação norte-americana que consagrasse uma proteção aos homossexuais. Logo, inexistiria qualquer direito capaz de assegurar o que Dronenburg reivindicava para si. Todavia, Dworkin reconstruirá o caso para lembrar a Bork – textualista, isto é  um convencionalista que, como tal, defende que a Constituição não contempla outros direitos que não sejam os que estão expressamente apresentados em seu texto e mais: que esses devem ser interpretados de acordo com a intenção original dos constituintes (BRITO, 2005:58) – que as circunstâncias fáticas individualizadoras daquela demanda exigiam um outro olhar. No Direito positivo norte-americano, existem a Due Process Clause (Cláusula de Devido Processo) e um conjunto de precedentes que afirmam um direito fundamental à privacidade das pessoas. É claro que nenhum desses precedentes trata exatamente do problema de Dronenburg ou de direito para homossexuais. Mas essas decisões indicam uma compreensão que a sociedade tem sobre a necessidade de proteção da privacidade de uma pessoa e da garantia de que o Estado não poderá interferir em suas escolhas privadas (como por exemplo, o precedente Loving v. Virginia, no qual foi declarada a inconstitucionalidade da proibição de casamento inter-racial). Logo, o Direito não pode ser meramente algo preso ao que foi estabelecido pelas convenções sociais do passado e, frente ao julgamento deste novo caso, é sim possível falar que o argumento anteriormente suscitado em defesa da privacidade se estenda também aos homossexuais. Deve ser lembrado, portanto, que não se está criando um direito com a decisão, mas sim reinterpretando o direito já existente a partir de uma base já posta, qual seja, de que as escolhas pessoais não devem ser sujeitas à interferência estatal. Uma decisão diversa, como a proferida pelo Juiz Bork, é sim uma resposta que carece de correção.

[67] Importante esclarecer que essa flexibilização não destrói a distinção entre interpretação e decisões novas sobre o que o Direito deve ser (DWORKIN, 2001:240-241). Um juiz, ao verificar a finalidade ou a função do direito, acabará por assumir uma concepção de integridade e de coerência do Direito, tomado como uma instituição, o que irá tutelar e limitar suas convicções pessoais.

[68] É possível uma leitura que associe a comunidade de princípios dworkiana com uma sociedade de nível pós-convencional (Estágio 6), conforme dos estudos de Kohlberg. Nesse estágio, a orientação para a ação decorre de princípios universais, que toda a humanidade deve seguir (FERREIRA, 2000:143).

[69] Dworkin lembra que a concepção convencionalista do Direito toma como referência o modelo da comunidade “de regras”: “O convencionalismo se ajusta às pessoas que tentam promover sua própria concepção de justiça e de [equanimidade], através da negociação e do acordo, sujeitas apenas à estipulação superior, geral e única de que, uma vez realizado o acordo da maneira apropriada, as regras que formam seu conteúdo serão respeitadas até que sejam alteradas por um novo acordo” (1999:254).

[70] “Faz com que essas responsabilidade sejam inteiramente pessoais: exige que ninguém seja excluído; determina que, na política, estamos todos juntos para o melhor ou o pior; que ninguém pode ser sacrificado, como os feridos em um campo de batalha, na cruzada pela justiça total” (DWORKIN, 1999:257).

[71] “Pues la precomprensión paradigmática del derecho sólo puede restringir la indeterminación del proceso de decisión teoréticamente dirigido y garantizar un grado suficiente de seguridad jurídica si es intersubjetivamente compartida por todos los miembros de la comunidad jurídica y expresa una autocomprensión constitutiva de la comunidad jurídica. Mutatis mutandis, esto vale también para una comprensión procedimentalista del derecho que cuenta de antemano con una competencia entre diversos paradigmas, regulada discursivamente. Por esta razón es menester un esfuerzo cooperativo para invalidar la sospecha de ideología bajo la que tal comprensión de fondo se halla. El juez individual ha de entender básicamente su interpretación constructiva como una empresa común, que viene sostenida por la comunicación pública de los ciudadanos” (HABERMAS, 1998:295).

[72] “Tales paradigmas descargan a Hércules de la supercompleja tarea de poner en relación con los rasgos relevantes de una situación aprehendida de la forma más completa posible todo un desordenado conjunto de principios aplicables sólo prima facie, y ello a simple vista y sin más mediaciones. Pues entonces también para las partes será pronosticable el resultado, en la medida en que el correspondiente paradigma determine una comprensión de fondo que los expertos en derecho comparten con todos los demás miembros de la comunidad jurídica” (HABERMAS, 1998:292).

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Sobre o autor
Flávio Quinaud Pedron

Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do Mestrado da Faculdade Guanambi (Bahia). Professor Adjunto no curso de Direito do IBMEC/MG. Professor Adjunto da PUC-Minas (graduação e pós-graduação). Advogado em Belo Horizonte (MG).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRON, Flávio Quinaud. A proposta de integridade para o direito de Ronald Dworkin.: Como casos podem ser decididos à luz de uma “resposta correta”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3526, 25 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23808. Acesso em: 23 dez. 2024.

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