1. INTRODUÇÃO
O objeto desse estudo é o fato gerador do IPVA segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. São analisados os votos dos Ministros nos julgamentos dos três casos paradigmáticos que levaram a Suprema Corte a limitar a incidência do IPVA aos veículos automotores terrestres.
A controvérsia teórica que se pretende compreender reside exatamente na hipótese de incidência da referida exação, analisando o acerto ou equívoco de limitar à propriedade de veículos terrestres o fato gerador que proporciona o nascimento da obrigação tributária relativa ao pagamento do tributo em comento.
2. O ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O Supremo Tribunal Federal enfrentou a problemática acerca da possibilidade de incidência do IPVA sobre veículos automotores em três oportunidades, razão pela qual abordaremos cada uma delas em separado, pela ordem cronológica dos julgamentos paradigmáticos, vale dizer, o RE 134.509/AM, o RE 255.111/SP e o RE 379.572/RJ.
Analisa-se, pormenorizadamente, os votos proferidos pelos componentes do STF, combatendo cada argumento utilizado para afastar a incidência do IPVA sobre as aeronaves e embarcações.
2.1. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 134.509 AM
O recurso em comento adveio de um mandado de segurança impetrado em face da Fazenda Pública do Estado do Amazonas que pretendia cobrar IPVA dos proprietários de embarcações. A defesa da advocacia tributária privada se pautou na alegação de bitributação, uma vez que já eram cobradas taxas para garantir a licença de trânsito do veículo náutico.
Segundo o relatório do Min. Marco Aurélio, a Procuradoria do Amazonas ressaltou “o alcance genérico da expressão ‘veículos automotores’, a revelar todo e qualquer veículo terrestre, aéreo, aquático ou anfíbio, dotado de autopropulsão motriz, destinado ao transporte de pessoas ou cargas”. Fora trazida, ainda, alegação de que o imposto não se confundiria com as taxas de licenciamento cobradas pelas repartições de trânsito, como o DETRAN, ou de tráfego aéreo ou marítimo, citando-se o DAC e a Capitania dos Portos. Por fim, a Fazenda Publica Amazonense salientou a feição tipicamente patrimonial do IPVA, mencionando analogamente o IPTU (Imposto sobre propriedade predial e territorial urbana).
2.1.1. Entendimento do Min. Relator Marco Aurélio
Proferindo brilhante voto, defendeu o Min. Relator a possibilidade de incidência do imposto sobre as embarcações que sejam veículos automotores. Vale transcrever as palavras do eminente ministro:
O imposto em comento está compreendido no âmbito daqueles alusivos não à utilização, mas à propriedade de veículos automotores. Por outro lado, não se pode introduzir no dispositivo constitucional limitação que nele não se contem. A incidência abrange a propriedade de todo e qualquer veículo, ou seja, que tenha propulsão própria e que sirva ao transporte de pessoas e coisas.
Sob o ângulo jurídico, vale atentar não só para o enfoque consignado no parecer de Ioshiaki Ichiara, citado em “Comentários à Constituição do Brasil”, de Celso Bastos e Ives Gandra Martins, 1990, à pagina 357 – segundo a qual o imposto incide sobre a propriedade de veículos automotores, entendidos como qualquer veículo com propulsão por meio de motor, com fabricação e circulação autorizadas e destinadas ao transporte de mercadorias, pessoas ou bens – como, também, de forma mais específica, a lição de Cretella Júnior, para quem, lato senso, veículo automotor é o impulsionado por maquinismo interno com fabricação e circulação autorizadas, servindo para o transporte de pessoas, bens ou produtos de natureza terrestre, hídrica ou aérea – obra citada, página 3.649. Ademais, na lição de Pinto Ferreira, veículo automotor é todo aquele impulsionado por meio de motor, com sua fabricação e circulação destinadas ao transporte de pessoas, bens e mercadorias – “Comentários à Constituição Brasileira”, 5º volume, artigos 127 a 162, edição Saraiva, 1992. Fosse o alcance constitucional o sufragado pela Corte de origem, haveria não só a repetição do texto da Carta anterior, a vedar a cobrança das taxas, como também a referencia aos veículos automotores terrestres. (...) Por outro lado, inexistem aspectos a entender-se o preceito de forma limitada. O imposto nele previsto incide não só sobre a propriedade de veículos automotores terrestres, como também de natureza hídrica ou aérea. [1]
É digno de encômios o voto proferido pelo Relator neste julgamento, tendo percebido que o imposto previsto na Constituição Federal não deve ter sua incidência restrita aos veículos terrestres, pois esse entendimento coloca limite não autorizado à expressão utilizada pelo legislador. Caso o texto constitucional quisesse limitar o sentido da expressão, o teria feito explicitamente.
2.1.2. O Voto Divergente do Min. Sepúlveda Pertence
Apesar do brilhante voto acima comentado, foi vencido o Relator pela divergência instaurada pelo Min. Sepúlveda Pertence, que se apegou à interpretação histórica do tributo, analisando sua origem na TRU, além de considerar o que muitos Estados-membros entendiam por veículo automotor para efeito de incidência do IPVA.
A divergência teve como lastro um parecer da lavra de Moacir Antonio Machado da Silva, que à época da elaboração do opinativo ocupava o cargo de Procurador Geral da República. Seis pontos fulcrais foram elencados para defender a interpretação restritiva da expressão veículo automotor: (i) os trabalhos preparatórios para a instituição do imposto criado em substituição à Taxa Rodoviária Única, de modo que os critérios conceituais do IPVA deveriam ser definidos em harmonia com o tributo extinto; (ii) a expressão veículo automotor contida na Emenda Constitucional 27 de 1985 deveria ser tomada em sentido técnico, referindo-se apenas aos que percorrem as vias terrestres, consoante se vê na legislação do tráfego e trânsito; (iii) os veículos aéreos sempre receberam a denominação de aeronaves; (iv) a tributação pretendida provocaria sérios problemas administrativos, tendo em vista a sobreposição do registro estadual de aeronaves ao registro aeronáutico a cargo da União; (v) as demais unidades da Federação, ao descreverem a hipótese de incidência do imposto, apenas se referiram a veículos de transporte terrestre; (vi) a tentativa de tributar as aeronaves e embarcações é incompatível com a determinação de distribuição de receita do IPVA para os Municípios onde estivessem licenciados os veículos.
Alguns dos argumentos utilizados já foram objetos de críticas em outro estudo[2], como a referência ao conceito de veículo automotor utilizado pelas legislações que cuidam apenas do trânsito terrestre. A questão da denominação utilizada para se referir ao veículo também não merece maior atenção, pois não é razoável defender que uma embarcação ou aeronave, somente pelo fato de assim estarem designadas por algum diploma legal, não poderiam ser abarcadas pela incidência da norma tributária, já que consistem, faticamente, em um veículo automotor.
O fato de serem chamados por outras alcunhas para efeito da legislação de trânsito ou regulamentação de registros e licenças, não possui o condão de invadir a esfera tributária e impedir o enquadramento dos veículos na hipótese de incidência. Aliás, importante dizer que é inaplicável à controvérsia o art. 110 do CTN, pois os atos normativos e leis que trazem diferente denominação aos objetos aqui abordados não fazem parte do direito privado, mas do direito público.
O dado fático indicativo de que grande número de Estados federados instituiu o IPVA como um imposto incidente apenas sobre a propriedade de veículos terrestres não possui qualquer rigor científico. É desprovida de qualquer relevância tal alegação, uma vez o objeto da discussão é a possibilidade teórica de incidência da exação sobre os veículos aéreos e náuticos. A não regulação dessas hipóteses pelos entes citados pode representar, tão somente, verdadeira má aplicação ou má interpretação da inovação constitucional, e não a correção de limitar a base de incidência do imposto.
Ainda, poderia representar verdadeira proteção da classe privilegiada dos Estados-membros, que sempre possui forte influência na edição de atos normativos, pois muitos dos representantes do povo são componentes da classe econômica dominante.[3]
A argumentação baseada na repartição da receita do IPVA com os Municípios, hoje expressamente regulada pelo art. 158, III, da Constituição Federal, não convence. A norma[4] diz, apenas, que pertence aos municípios cinqüenta por cento do produto da arrecadação sobre os veículos licenciados em seus territórios.
A idéia de que isso vedaria a incidência aqui defendida parece uma alegação realizada sem detida análise, afinal, a Constituição jamais vedou que houvesse um registro ou licenciamento municipal das aeronaves e embarcações e, além disso, deve-se ter em conta que, apesar de alguns veículos automotores não estarem sujeitos a registro ou licenciamento, são objeto de tributação. Seria responsabilidade do legislador desenvolver um sistema capaz de garantir que a tributação desses bens ocorresse de forma harmoniosa e sistemática.
Quando o veículo não está sujeito a registro, licenciamento, matricula, recoloca-se a questão do conflito de interesses dos Municípios. O art. 15 da Lei 2.877/97 do Rio de Janeiro, por exemplo, afirma que quando não há obrigação de registro e licenciamento, inscrição ou matrícula do veículo, a receita será destinada ao ‘município do domicilio do seu proprietário’. A mesma solução esta expressa no art. 17, parágrafo único, da Lei mineira 12.735/97: ‘Não estando o veículo sujeito a registro, matrícula ou licenciamento, 50% (cinquenta por cento) do produto da arrecadação do imposto pertencem ao município mineiro onde se encontrar domiciliado o contribuinte’. [5]
Frise-se que um problema administrativo de dificuldade de registro ou licenciamento nada influencia na discussão aqui travada que, repita-se, visa compreender a possibilidade teórica de incidência do IPVA sobre os veículos automotores náuticos e aéreos. Não se pretende dizer como tal tributação deve ocorrer, como deverão ser realizados lançamentos, registros, ou quaisquer outras nuances decorrentes da aplicação da norma tributária.
Na mesma linha, sem apresentar obstáculos teóricos ao tema, é a defesa de que apenas os veículos terrestres se submetem a registro de competência estadual, fato que ocasionaria diversos problemas em relação à determinação do Estado-membro competente para tributar aeronaves sujeitas a um registro de caráter nacional, e embarcações cuja inscrição pode se dar na jurisdição onde for domiciliado o armador ou o proprietário (Decreto 87.648, de 24 de setembro de 1982, alterado pelo Decreto 511, de 27 de abril de 1992). Há quem diga que a edição de lei complementar nacional seria a solução para esse impasse, reconhecendo, de maneira inequívoca, a possibilidade de incidência do IPVA sobre os referidos veículos, condicionando tal atuação estatal à edição da lei, pois
Percebe-se, outrossim, da redação do parágrafo único do art. 106 do Código Brasileiro de Aeronáutica, que o registro das aeronaves, ao contrário do registro dos veículos automotores terrestres, é nacional e não de competência estadual. Sendo nacionais o registro e a matrícula da aeronave, não se pode aplicar a regra segundo a qual é o Estado-Membro onde o veículo é registrado o competente para a imposição do IPVA. Também sob esse prisma se conclui que é necessária a edição de lei complementar que discipline essa questão, pois, no ordenamento atual, podem ocorrer situações em que uma mesma aeronave seja tributada por mais de um Estado-Membro. [6]
No caso dos veículos náuticos já foi adotada semelhante posição, admitindo a tributação das embarcações, porém, condicionando o exercício dessa competência à edição da lei complementar nacional:
Dessa forma, uma mesma embarcação cujo proprietário é domiciliado em um Estado e armador em outro poderá ser tributada por ambos os Estados. O problema torna-se mais complexo se a embarcação pertencer a mais de um proprietário, quando então poderemos estar diante de uma imposição tributária por mais de dois Estados-Membros sobre um mesmo objeto. Mister, portanto, a edição de lei complementar disciplinando esse conflito de competência. Em nosso entendimento, somente após a promulgação da referida lei haverá possibilidade de cobrar IPVA sobre embarcações dentro dos limites da Constituição Federal. [7]
Discorda-se totalmente da pura e simples alegação de dificuldades administrativas como óbice à instituição da exação sobre os veículos aéreos e náuticos, mas parece que tal idéia, desprovida de qualquer valia teórica para o debate, seduziu o então Min. Francisco Rezek, que chegou a dizer em sua manifestação, não conhecendo do recurso extraordinário em comento:
Penso no que seriam as conseqüências de se abonar a constitucionalidade dessa exação. Penso em como se deveriam alterar normas relacionadas com registros e cadastros. Penso no IPVA, que o constituinte manda ser arrecadado por Estados e repartido depois com o município onde está licenciado cada veículo. Penso como se afetarão navios e aviões aos municípios...
Se isso devesse ser feito, para dar valia operacional à pretensão tributária de alguns Estados, imagino as conseqüências. [8]
Argumentações desse tipo não contribuem em nada para o debate jurídico da matéria. Admitida a tributação, certamente milhares de soluções administrativas viriam à tona, possibilitando plenamente o que este Ministro pensou ser tão problemático e difícil. Muito pior que uma adaptação dos registros e licenças, é admitir situação patente de injustiça fiscal em nosso sistema.
Se, antigamente, o legislador não percebeu a evidência claríssima de riqueza que a propriedade de veículos aquaviários e aéreos traz em si, hoje, tal consideração não tem qualquer cabimento. Não é irrisória a quantidade de aeronaves que circulam no país, muitas delas com vultosos valores venais pertencentes à ínfima parcela de possuidores de altíssima renda e patrimônio, mas que têm seus veículos fora do alcance da norma constitucional que obrigaria os proprietários a contribuir para os cofres públicos.
Segundo dados colhidos pela Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC -, que em 30 de setembro de 2011, estão registradas[9] cerca de 13.883 (treze mil, oitocentas e oitenta e três) aeronaves, 1.361 (mil, trezentos e sessenta e um) helicópteros e, ainda, 1.278 (mil, duzentos e setenta e oito) aeronaves agrícolas. Certamente, pode-se dizer que o número de veículos aéreos é consideravelmente menor que o de embarcações, aqui considerados lanchas, iates, jet-skis, ou qualquer objeto que enquadre no conceito.
A Marinha do Brasil não disponibiliza dados estatísticos em seu sítio virtual, assim como boa parte das Capitanias dos Portos, que não fornecem o número de embarcações registradas em seus bancos de dados. As máximas da experiência autorizam imaginar que o número de embarcações seja substancialmente maior que o de aeronaves, inclusive por já ter sido estimado que a quantidade ultrapassava os 600.000 (seiscentos mil) veículos no ano de 2010[10].
Por fim, cabe atacar a utilização da interpretação histórica adotada pelo voto divergente, aduzindo a importância de se ter em conta a origem do IPVA na Taxa Rodoviária Única, a qual foi substituta da Taxa Rodoviária Federal. O método de interpretação histórico não fora bem empregado na análise levada a cabo pelo Supremo Tribunal Federal.
A melhor visão não recomenda o entendimento de que a incidência do IPVA deve quedar circunscrita aos veículos anteriormente tributados pela TRU. Essa taxa foi criada em momento embrionário da malha rodoviária brasileira, tempo histórico em que a frota de veículos terrestres era muito pequena e, menor ainda, era a quantidade de veículos náuticos e aéreos. Não é razoável a sustentação de que um imposto fora o substituto de uma taxa, assim como anteriormente exposto, mesmo com todas as críticas que essa figura recebia, com razão, da doutrina.
Muito mais sistemático é entender que o legislador percebeu que a propriedade de veículos automotores constituía situação material presuntiva de riqueza, instituindo um imposto real com função eminentemente fiscal, razões suficientes para enxergar-se verdadeira injustiça e desigualdade na tributação de carros e motos, enquanto iates, jet-skis, jatinhos e helicópteros ficam à margem da incidência tributária.
Não é admissível, também, sustentar que os veículos náuticos e aéreos não poderiam se sujeitar a registros Estaduais somente pelo fato de que a União detém competência exclusiva para legislar sobre direito aeronáutico e marítimo[11]. Uma competência não se confunde com a outra. Não se está defendendo que os Estados-membros invadam a competência da União, mas tão somente se deseja que as unidades federadas possam utilizar, de forma efetiva, sua competência constitucionalmente atribuída.
Para exercer, de maneira plena, a possibilidade de tributar as aeronaves e embarcações, os Estados-membros devem contar com os instrumentos necessários para tanto. Neste sentido, dizendo o que seria a Teoria dos Poderes Implícitos, anota Manoel Jorge e Silva Neto: “Significa simplesmente o seguinte: ali onde foi atribuído o ônus a uma unidade federativa, deve ser reservado, ainda que implicitamente, o respectivo bônus a fim de ser cumprida a obrigação firmada em nível constitucional.”[12] Mais interessante ainda é a referência que o constitucionalista faz à origem dessa teoria, dizendo:
Mas é importante esclarecer que a Teoria dos Poderes Implícitos, nos domínios do direito constitucional norte-americano não foi aplicada exclusivamente às hipóteses de necessidade institucional, tanto que dela se valeram os juízes da Suprema Corte para solucionar os impasses causados pela inexistência de circunstanciada distribuição de competências tributárias entre os órgãos daquela Federação, fato que instilou grande disputa pela arrecadação. [13]
Permitir que os Estados possuam um cadastro ou registro de aeronaves e embarcações não provoca uma ingerência em competência exclusiva da União, simplesmente permite o pleno exercício da competência tributária estadual.
2.1.3. O Voto Divergente do Min. Francisco Rezek
O Min. Francisco Rezek também divergiu do relator para afastar a incidência do IPVA sobre veículos náuticos e aéreos. A argumentação do jurista se apegou ao percurso histórico da tributação de veículos:
Tentei saber, mediante pesquisa da realidade objetiva, qual a trajetória histórica da norma, e o que neste momento sucede sob o pálio da regra constitucional que atribui aos Estados competência para instituir imposto sobre a propriedade de veículos automotores. Verifiquei que temos, neste caso, um imposto que, na trajetória constitucional do Brasil, sucede à Taxa Rodoviária Única, e não me pareceu, examinados os sucessivos textos constitucionais recentes que, em qualquer momento, tenha sido intenção do constituinte brasileiro autorizar aos Estados, sob o pálio do imposto sobre a propriedade de veículos automotores, a cobrança sobre a propriedade de aeronaves e embarcações de qualquer calado. Os conhecedores do modo nacional de se produzirem textos constitucionais hão de perguntar-se sempre se o constituinte, caso quisesse que o legatário da velha e conhecida Taxa Rodoviária Única se tornasse um imposto capaz de alcançar aviões e navios, teria se omitido de fazer referencia a embarcações e aeronaves. [14]
Não se limitando a acolher a interpretação histórica nos moldes assinalados, o julgador se manifestou sobre a consideração da etimologia dos termos veículo e automotor:
É claro: se se fizer a analise etimológica da expressão ‘veículos automotores’, como fez o autor citado nos autos, é sempre possível concluir que se pode enquadrar no conceito de veiculo automotor o navio e a aeronave. Pode ser enquadrada também qualquer criatura do reino animal, veículo que é porque capaz de transportar coisas, e automotor porque independente de qualquer de tração externa à sua própria estrutura física. Dos animais mais lentos, na espécie dos moluscos, aos mais velozes; dos mais robustos, como a formiga que carrega vinte e cinco vezes o seu próprio peso, aos mais frágeis, todos nos incluiríamos no conceito de veículo automotor se ele devesse ser compreendido semanticamente. [15]
Apesar do quanto escrito pelo Min. Rezek, data maxima venia, se equivocou de maneira grosseira o componente do STF. Ele parece ter tentado se utilizar de uma espécie de argumentação que, embora não demonstre mérito próprio, tenta ridicularizar a sustentação alheia, no caso, a do Min. Marco Aurélio.
Obviamente, o termo “automotor” não se refere somente à possibilidade de movimentação, ainda que por meios naturais, como pela força dos músculos humanos. O vocábulo qualifica o conceito de veículo, trazendo a necessidade de aparato artificial que gere movimento ou que possibilite a movimentação, como as turbinas, os motores que impulsionam as hélices dos monomotores, ou a combustão de substâncias inflamáveis, cuja explosão movimenta pistões, dando giro a um eixo conexo, como nos automóveis. Contrariando a frágil alegação dessa divergência, há cristalino escólio de Gladston Mamede:
A palavra motor está intimamente ligada à palavra movimento, mas transcende-a: traduz melhor a idéia de ‘mecanismo de movimento’. O motor é justamente isso: o mecanismo (a máquina, o aparelho) que gera movimento e pode transmitir movimento, provocar movimento. Esse movimento é gerado por formas diversas; por exemplo, por campos magnéticos nos motores elétricos, ou pela combustão de substancias inflamáveis (como os derivados de petróleo, gases, alcoóis etc.), cuja explosão movimenta um pistão (ou mais), dando giro a um eixo conexo, ou pelo vapor etc. Não há definição que dê uma conformação obrigatória ao motor que movimenta o veículo; apenas a exigência de que o movimento seja produzido por um motor, mesmo que de forma auxiliar. Como resultado dessa definição – a limitar o poder da Fazenda Pública – estão incluídos todos os veículos movimentados por força animal (incluindo a força humana) ou por mera captação de forças naturais.[16]
O Min. Francisco Rezek continua seu voto abordando os problemas administrativos dos registros de aeronaves e embarcações. Posteriormente, ainda trata da idéia de que tais veículos não se vinculam ao território dos municípios, fazendo referência à norma que estabelece a repartição da receita do IPVA.
Reforça seu voto mencionando a pesquisa dos trabalhos preparatórios, a interpretação histórica e, ainda, revela se importar com o fato de a grande maioria dos legisladores estaduais não terem elaborado norma sobre a tributação de veículos náuticos e aéreos.
Pela semelhança de argumentação e idéias, remete-se o leitor ao tópico anterior, onde todas estas questões foram abordadas de forma detalhada, contrariando-se as alegações em favor da interpretação restritiva da expressão “veículo automotor”.
2.2. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 255.111 SP
Este recurso extraordinário versou sobre a Lei paulista 6.606/89, que tentou fazer incidir o imposto sobre a propriedade de veículos automotores sobre as aeronaves. Interessante notar que o julgamento desse caso ocorreu no mesmo dia do precedente anterior, 25 de maio de 2002.
O Min. Relator era Marco Aurélio, que manteve sua orientação manifestada no precedente do Estado amazonense, defendendo a tributação sobre as aeronaves, utilizando-se, inclusive, da fundamentação desenvolvida no caso antecedente.
O Min. Sepúlveda Pertence abriu a dissidência e reportou-se ao voto divergente por ele proferido no RE 134 509 AM, para afastar a possibilidade de tributação de aeronaves, tendo em vista todos os argumentos utilizados e já comentados no tópico anterior.
Prevaleceu, mais uma vez, o entendimento exposado no voto divergente, tendo defendido posicionamento contrário apenas o Min. Marco Aurélio, relator do caso. Os demais Ministros se limitaram a acompanhar o voto divergente proferido, sem acrescentar nada relevante ao debate jurídico ali travado.
Resta analisar o caso mais recente julgado pela Suprema Corte brasileira, que adveio do Estado do Rio de Janeiro.
2.3. O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 379.572 RJ
O julgamento deste Recurso Extraordinário é a apreciação mais recente do tema pelo Supremo Tribunal Federal, ocorrido na data de 20 de setembro de 2006. A relatoria coube ao Min. Gilmar Mendes e, segundo a ementa, o caso versava sobre a possibilidade de incidência do IPVA sobre embarcações.
2.3.1. O Voto do Relator Min. Gilmar Mendes
Produzido o relatório e ultrapassada a alegação de ausência de prequestionamento, assim se manifestou o Relator:
Substancialmente, trata-se de se determinar se o IPVA – Imposto Sobre Veículos Automotores, qualifica campo de incidência que inclua embarcações e aeronaves. A matéria foi discutida no RE 134.509, acórdão relatado por Sepúlveda Pertence.
Em discussão travada junto à primeira turma, Marco Aurélio relatou e votou pela incidência do IPVA sobre embarcações, em discussão relativa a interesse do Estado do Amazonas, que pretendia lançar a exação.
A questão foi afeta ao Plenário. Pertence lembrou que 1986, quando Procurador Geral da República, oferecera a esta Corte a Rp 1344, argüindo a inconstitucionalidade de legislação dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, que sujeitavam embarcações e aeronaves ao IPVA – então recentemente inserido na competência tributaria dos Estados-membros pela EC 27/85 à Carta de 1969.
Pertence recordou-se de parecer de autoria de Moacir Antonio Machado da Silva, então Procurador da República, transcrevendo-o. Identificou-se a trajetória do IPVA, que sucedeu a Taxa Rodoviária Única, TRU, e que, historicamente, entre nós, exclui embarcações e aeronaves. Vencedora a tese de Pertence (...)
Ante o exposto, e tendo em vista a jurisprudência firmada pela Corte, dou provimento ao Recurso Extraordinário para declarar a não incidência de IPVA sobre embarcações, nos limites da discussão deste recurso extraordinário. [17]
O Min. Gilmar Mendes manteve, então, o posicionamento já adotado pelo Supremo Tribunal Federal, excluindo da incidência do IPVA as embarcações, no caso concreto, e, obliquamente, as aeronaves.
2.3.2. O Voto do Min. Carlos Britto
O Min. Carlos Britto acompanhou o entendimento do Relator, aduzindo: “Entendo que veículos automotores, à luz da Constituição, tem sentido estrito e não lato; implica, a meu sentir, deslocamento por via terrestre.”[18]
Não indicou o Ministro qualquer razão que fundamentasse seu entendimento. Não se sabe de onde o julgador retirou o sentido estrito por ele atribuído à expressão utilizada pelo texto constitucional.
2.3.3. O Voto do Min. Sepúlveda Pertence
O Min. Sepúlveda Pertence se reportou ao seu longo voto proferido no precedente RE 134.509 AM e manifestou seu convencimento de que “a interpretação literal, no caso, desconhece o sistema da Constituição. O IPVA é claramente um substitutivo da velha Taxa Rodoviária Única. As embarcações marítimas estão sujeitas a outra disciplina, que é a federal.” [19]
A disciplina federal a que o Ministro se refere há de ser, certamente, à competência da União para legislar sobre direito marítimo e, de outro lado, a sujeição de tais veículos a um registro nacional. Sucede que as idéias aqui referidas não obstaculizam a tributação dos veículos náuticos pelos Estados, uma vez que a competência para tributar é deferida expressamente pela Constituição e, ainda, os licenciamentos, a título de fiscalização e registro, estão inseridos na esfera do exercício do poder de polícia, área completamente distinta da exação não vinculada.
2.3.4. O Voto do Min. Cezar Peluso
O Min. Cezar Peluso aderiu à tese do Relator, citando diversos trechos do precedente analisado. Manifestou-se da seguinte forma em seu voto, elencando os principais motivos que o levaram ao entendimento adotado:
a) a definição do alcance da expressão “veículos automotores”, que deve ser tomada em sua acepção técnica, abrange exclusivamente os veículos de transporte viário ou terrestres; escapam ao seu alcance, pois, as aeronaves (‘aparelho manobrável em vôo, apto a se sustentar e circular no espaço aéreo mediante reações aerodinâmicas e capaz de transportar pessoas e coisas’) e embarcações. Se houvesse pretendido abrangê-las, o constituinte deveria ter sido específico;
b) O IPVA fio criado em substituição à Taxa Rodoviária Única (T.R.U.), como demonstram os trabalhos preparatórios e justificações do Congresso Nacional. Sua instituição foi motivada por razões de ‘distribuição mais equitativa do produto da arrecadação do novo imposto, em beneficio dos Estados e Municípios’, e não visou a ‘elastecer o âmbito de incidência pertinente ao tributo substituído, para alcançar novas áreas reveladoras de capacidade contributiva;
c) outras normas constitucionais corroboram o entendimento segundo o qual os veículos automotores são apenas os terrestres, como é o caso do art. 23, §13, da Constituição Federal, acrescentado pela EC nº 27/85, que destina cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto para o município onde estiver licenciado o veículo. Só faz sentido falar-se em ‘municÍpio onde estiver licenciado o veículo’ se estiver em jogo a propriedade de veículos terrestres, únicos que, ‘em face da legislação e pela ordem natural das coisas, estão sujeitos a licenciamento nos Municípios de residência ou domicilio dos proprietários’, nos termos do Código Tributário Nacional.
d) em contraste, as embarcações estão sujeitas a registro no Tribunal Marítimo (ou nas Capitanias dos Portos, para embarcações abaixo de 20 (vinte) toneladas), cujo efeito é o de conferir validade, segurança e publicidade de sua propriedade. (...)
e) não há atribuição de competência, seja aos Estados, seja aos Municípios, para legislar sobre navegação marítima ou aérea, ou para disciplinar ‘trafego aéreo ou marítimo, espaço aéreo ou mar territorial, que são bens da União’.[20]
Cezar Peluso citou a obra “Aspectos Controvertidos do IPVA”, de Roberto Ferraz, que merece ser transcrita para, posteriormente, ser criticada:
Não abrangência de aviões e embarcações na expressão veículos automotores. (...) A interessante questão merece ser examinada sob a ótica da interpretação gramatical, histórica e sistemática.
Do ponto de vista gramatical, não resta dúvida de que as categorias dos aviões e embarcações aquáticas são abrangidas pelo conceito manifestado pela expressão “veículos automotores”, eis que certamente são meios de transporte auto-propulsados. Ocorre que nem sempre o significado semântico indica a melhor interpretação da norma (...). Assim, a simples correspondência de vocábulos não basta para a configuração da competência impositiva constitucionalmente estabelecida em favor dos Estados quanto à propriedade dos veículos automotores. Faz-se necessário o exame histórico e teleológico da norma, como sustenta EZIO VAZONI, ou, ainda, com estes e outros métodos interpretativos nominados mais recentemente.
Ainda dentro da interpretação gramatical (...), surge desde logo a necessidade de averiguar-se qual o sentido comum da expressão veículos automotores para identificar se alcança embarcações e aeronaves. O que se verifica é que na linguagem comum, as embarcações são referidas como barcos ou navios, e as aeronaves são chamadas de aviões. Já os automóveis são chamadas veículos e a expressão tem clara ligação com a usualmente utilizada automóvel. Não parece ser da linguagem usual pretender referir embarcações e aeronaves como “veículos automotores”, que parecem compreender apenas carros, caminhões e ônibus.
Vejamos se a interpretação histórica confirma essa conclusão (...). Fica claro no contexto histórico de transferência da competência tributária sobre a propriedade de automóveis, caminhões e similares, excluída a relativa a embarcações e aeronaves, por dois aspectos muito importantes:
a) Não compunha a base de arrecadação da Taxa Rodoviária Única a incidência sobre embarcações e aeronaves.
b) A atribuição de competência tributária feita pela EC n. 27/85 assentou-se na competência administrativa para licenciar o uso dos veículos que, no caso dos aviões e embarcações, é federal.
A interpretação teleológica presta-se frequentemente a distorções enormes do sentido da norma [quando desvinculada de seu contexto histórico e sistemático]. Sem estender o argumento, pode-se citar o voto do Ministro Francisco Rezek quando da discussão dessa matéria no Supremo Tribunal Federal, em que parece haver adequada interpretação finalística, bem associada à histórica e à sistemática: ‘Verifiquei que temos neste caso um imposto que (...) sucede a Taxa Rodoviária Única, e não pareceu, examinados os textos constitucionais recentes, que, em qualquer momento, tenha sido intenção do constituinte brasileiro autorizar aos Estados, sob o palio do imposto sobre a propriedade dos veículos automotores, a cobrança sobre aeronaves e embarcações de qualquer calado.’
Finalmente, numa interpretação sistemática, também se verifica a lógica de que o IPVA seja restrito aos veículos automotores terrestres, excluindo-se as embarcações e aeronaves, dada a vocação desses últimos em atender transporte intermunicipal, interestadual e internacional. A competência administrativa para a fiscalização destes meios de transporte é exercida pela União, de maneira coerente com a natural independência ou desvinculação desses meios de transporte relativamente a um município ou região, o que confirma ser mais sistemático corresponda sua tributação à União. [21]
Pode-se ver que alguns dos argumentos levados em consideração pelo eminente Ministro Cezar Peluso já foram objeto de críticas desse Autor, como a equivocada interpretação histórica da norma que, realizada como defende o doutrinador Roberto Ferraz, contempla flagrante situação de injustiça fiscal, permitindo a discriminação de pessoas com igual capacidade contributiva, ou pior, permite a não sujeição ao dever de pagar tributo de pessoas capacidade econômica mais relevante.
A boa utilização do método de interpretação sistemático tem de considerar a finalidade fiscal do tributo e a classificação de imposto real. Mostra-se oportuno, inclusive, realizar um cotejo entre IPVA e o Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU -, analisando o mecanismo de tributação de exações afins.
Aliás, não se pode deixar de criticar com contundência a afirmação lançada por Roberto Ferraz, dizendo que as aeronaves e embarcações possuem vocação para a realização de transporte intermunicipal, interestadual ou internacional. Se, muitas das vezes, alguns desses veículos praticamente só realizam estes percursos, tal fato jamais poderá constituir uma regra. De outro lado, muitos destes veículos são utilizados exclusivamente para transporte dentro do mesmo município, como muitos helicópteros, por exemplo, já freqüentes no céu da cidade de São Paulo.
No mesmo sentido, podemos citar as lanchas, iates ou jet-skis, que, sendo de porte menor, servem basicamente ao deleite e divertimento de seus proprietários nos mares, rios ou lagos mais próximos às suas residências. A alegação utilizada pelo autor é de uma fragilidade patente, não merecendo aplausos dos estudiosos.
Por último, Cezar Peluso faz referência aos veículos náuticos que utilizam fonte de energia alternativa ou subsidiária, como os veleiros, que só utilizam de motor em momentos de calmaria. Na opinião do Ministro
(...) uma embarcações movida por energia natural é coisa que se afasta sobremaneira da noção de veículos automotor, adotada pela Constituição Federal como substrato apto a ensejar a cobrança do imposto. É o caso, por exemplo, dos veleiros dotados de motores auxiliares, cuja destinação precípua é o acionamento em tempos de calmaria, em que a energia eólica não basta para inflar o velame da embarcação. Se já não incide IPVA sobre embarcações em geral, aqui a não incidência é ainda mais evidente, à luz do conceito de veículos automotor, prestigiado pela Constituição Federal, já que um veículo movido por fonte natural de energia tem por característica essencial, justamente, não ser automotor (ainda que possa, de forma meramente acidental, ser dotado de propulsão própria auxiliar, o que não o desnatura). [22]
Em verdade, a maioria dos veleiros e catamarãs não utiliza de forma meramente eventual seu motor, vez que todas as saídas de portos ou ancoradouros, assim como suas chegadas, são feitas, quase sempre, por manobras conduzidas pela utilização da energia artificial do equipamento de propulsão. A realidade demonstra que não somente em lapsos de calmaria no meio do mar se utilizam os motores mas, antes e praticamente todas as vezes, as manobras de saída e chegada em todas as marinas ou ancoradouros demandam um domínio da embarcação que só pode ser obtido mediante o uso de uma força motriz controlada pelo condutor do veículo.
Atracar utilizando-se de força natural constitui eventualidade raríssima no mundo real, que nem os velejadores mais especialistas experimentam, uma vez que arriscariam seriamente a integridade de sua embarcação ao tentar realizar a aproximação do porto mediante o uso de uma força não controlada.
2.3.5. O Voto Divergente do Min. Joaquim Barbosa
O Min. Joaquim Barbosa discordou da orientação adotada pela Corte e abriu divergência para defender a incidência do IPVA sobre as embarcações, proferindo o sucinto voto:
(...) entendo que a expressão veículos automotores é ampla o suficiente para abranger as embarcações, ou seja, veículos de transporte aquatico. Não vejo no dispositivo constitucional pertinente a limitação que nele se vislumbrou, por ocasião do precedente RE 134509. [23]
Concluindo, disse: “A exemplo do que se sustentou no voto do Eminente Min. Marco Aurélio, o dispositivo constitucional tem aptidão para abranger a propriedade de qualquer veículo que tenha propulsão própria e sirva ao transporte de pessoas e coisas.”[24]
2.3.6. A Divergência do Min. Marco Aurélio
O Min. Marco Aurélio, que fora relator nos dois casos citados anteriormente, nos quais havia se manifestado pela incidência do IPVA sobre aeronaves e embarcações que se enquadrem no conceito de veículo automotor, manteve sua orientação. O eminente jurista não se limitou a fazer menção ao seu voto proferido naquelas oportunidades, mas enriqueceu sua defesa, com razão, dizendo:
Peço vênia para continuar no convencimento formado. Estabelece o inciso III do art. 155 da Constituição Federal um tributo que incide sobre a propriedade de veículos automotores. Aqui, veiculo automotor, para mim, não é apenas aquele que tem quatro rodas, pode ser uma embarcação ou uma aeronave.
Não calha também invocar a atuação das Capitanias dos Portos, porque ela ocorre num âmbito diverso, o do poder de polícia. E, então, há cobrança de taxa.
Como a Constituição Federal, a meu ver, não distingue, não restringe a incidência do imposto sobre a propriedade de veículos automotores, considerados automotores terrestres, não me cabe operar essa distinção.
Repito – o tributo apenas requer o elo entre o veículo, gênero e o proprietário, o detentor da titularidade, ou seja, a propriedade, como está no texto, desse mesmo veículo automotor, pouco importando a natureza. [25]
O julgador tem razão, mais uma vez. Os registros e licenças relativas a embarcações afetas às Capitanias dos Portos e, analogamente, o registro nacional de aeronaves, constituem exercício do Poder de Polícia[26], fato gerador das taxas cobradas em decorrência de tal atividade da administração pública. O campo da tributação de veículos automotores é uma outra esfera de competência que em nada se confunde com a de regular o trânsito no espaço aquaviário ou, até mesmo, legislar sobre direito marítimo e aeronáutico.
Pode-se afirmar que há, com a devida licença, grave equivoco na interpretação daqueles que, apegados de forma cega à extinta TRU ou às denominações de aeronaves e embarcações, negam a possibilidade de incidência do IPVA sobre os veículos automotores náuticos e aéreos.
Então, no julgamento do RE 379.572, o entendimento histórico da Corte Suprema foi mantido, afastando-se a incidência do IPVA sobre as aeronaves e embarcações, pelos fundamentos aqui detalhadamente elencados. Vencidos no julgamento, os Ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, que defenderam a incidência da referida exação sobre aqueles veículos, por não reconhecerem no sistema constitucional a orientação para o acolhimento do sentido estrito da expressão veículos automotores.
3. CONCLUSÃO
Estes são os casos emblemáticos decididos pelo STF acerca do tema, razão pela qual foram abordados com riqueza de detalhes, analisando-se cada voto e os seus fundamentos. Acredita-se que houve um equívoco na análise do tema por parte do Supremo Tribunal Federal, pois a melhor solução para o caso aponta para a constitucionalidade da incidência do IPVA sobre os veículos automotores náuticos e aéreos.
Notas
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 134509 AM. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgado em 26 de maio de 2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso em 02 de outubro de 2011.
[2] FREAZA GARCIA, Ricardo Oliveira. O fato gerador do IPVA: breve defesa da incidência sobre veículos aéreos e náuticos. Disponível em:<http://jus.com.br/revista/texto/21966/o-fato-gerador-do-ipva-breve-defesa-da-incidencia-sobre-veiculos-aereos-e-nauticos#ixzz2BUyuut2W>
[3] PATRIMÕNIO dos Deputados Federais Eleitos no Brasil é de R$ 2,4 milhoes, em média. Disponível em: <http://d24am.com/noticias/politica/patrimonio-dos-deputados-federais-eleitos-no-brasil-e-de-r-24-milhes-em-media/8668>. Acesso em 25 de outubro de 2011; e PATRIMÔNIO dos Deputados cresce em média 150% em quatro anos. Disponível em: <http://www.vigilantesdademocracia.com.br/wilsonpickler/News9583content106110.shtml>. Acesso em 25 de outubro de 2011.
[4] Art. 158. Pertencem aos Municípios:(...)
III - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios;
[5] MAMEDE, 2002, p. 153-154.
[6] MARTINS, 2011, p. 872.
[7] MARTINS, 2011, p. 873.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 134509 AM. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgado em 26 de maio de 2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso em 02 de outubro de 2011.
[9] BRASIL. Agencia Nacional de Aviação Civil. Disponível em: <http://www2.anac.gov.br/arquivos/dadosposterioresa2010.pdf>. Acesso em 15 de outubro de 2011.
[10] BRASILEIROS vão gastar R$ 1 bilhão em barcos e iates em 2010. Disponível em: <http://economia.ig.com.br/empresas/industria/brasileiros+vao+gastar+r+1+bilhao+em+barcos+e+iates+em+2010/n1237797675212.html>. Acesso em 17 de outubro de 2011.
[11] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
[12] SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Lumen Júris: Rio de Janeiro, 2006, p. 267.
[13] SILVA NETO, 2006, p. 269.
[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 134509 AM. Relator: Min. Marco Aurélio. Julgado em 26 de maio de 2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso em 02 de outubro de 2011.
[15] Ibid., p. 11.
[16] MAMEDE, 2002, p. 54.
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 379.572 RJ. Relator Min. Marco Aurélio. Julgado em 20 de setembro de 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp>. Acesso em 02 de outubro de 2011.
[18] Ibid., p.7.
[19] Ibid., p. 8.
[20] Ibid., p. 11-12.
[21] Ibid., p. 13-15.
[22] Ibid., p. 15.
[23] Ibid., p. 6.
[24] Ibid., p. 6.
[25] Ibid., p. 18-19.
[26] Art. 78 do CTN. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.