TEORIA DA EMPRESA – SISTEMA SUBJETIVO MODERNO
Alguns passos adiante e com o crescimento do entendimento de que o Direito Comercial é muito maior que a simples prática de atos de comércio, bem como as falhas encontradas na Teoria dos Atos de Comércio, iniciou-se uma nova forma de enxergar o Direito Comercial, ultrapassando os limites dos atos de comércio e buscando a empresa como um todo.
O extraordinário desenvolvimento da economia capitalista tornou a visão objetiva e isolada de ato de comércio desacreditada. No século XIX, auge da Revolução Industrial, destaca um novo ponto de vista do comércio e do Direito Comercial, tendo como foco o empresário e a empresa.
Na pobre visão dos atos de comércio e por óbvios motivos de completo rompimento com o sistema feudalista, a agricultura e a pecuária não eram entendidos como comércio, bem como outras atividades que essencialmente eram empresariais, e assim, faziam a circulação de bens e riquezas, o que gerava falhas e lacunas na competência do Direito Comercial.
A limitação imposta ao Direito Comercial pela Teoria dos Atos de Comércio era tamanha que segundo o artigo 632, do Código Francês, empresa nada mais era que a prática reiterada e em cadeia dos atos de comércio, conceito este que não valora a organização do capital e trabalho24.
Na vanguarda da troca do foco no comércio puro e simples para uma visão mais complexa de empresa, encontra-se o Código Comercial de 1897, da Alemanha, o qual reintroduziu o conceito subjetivo, devidamente modernizado e readequado aos tempos em que se inseria25.
O referido código, no artigo 343, expressa que os atos de comércio são aqueles praticados por comerciantes, relativos e estritamente relacionados à prática comercial, vinculando o comerciante a exploração empresarial. Com este novo conceito surge o Direito das empesas, tal como conceituado também em 1942 no respeitado Código Unificado Italiano.
De acordo com a Teoria da Empresa, o Direito Comercial tem seu campo de abrangência ampliado, incorporando atividades até então excluídas pela Teoria dos Atos de Comércio. Ao contrário da teoria francesa não se divide mais as atividades econômicas em dois grandes grupos, civil e comercial. A Teoria da Empresa prevê de forma ampla as atividades econômicas, excluindo somente atividades específicas, que são, as atividades intelectuais, de natureza literária, artística ou científica.
Já no tocante a atividade agrícola o Direito Empresarial brasileiro deixou a cargo do agricultor decidir, vez que cabe a este a opção pelo regime comercial, através do registro empresarial perante as Juntas Comerciais e Registro Público de Empresas. Vale consignar que tal opção não caracteriza a manutenção da agricultura e pecuária fora do direito empresarial.
Tal opção somente existe em face dos pequenos produtores rurais e da agricultura familiar, que efetivamente não podem ser considerados empresas ou empresários, pois praticamente trabalham para sua subsistência e não com o intuito de comercializar sua produção.
A Teoria da Empresa nasceu em 1942, na Itália, alargando a incidência do Direito Comercial. Esta terceira etapa de desenvolvimento do Direito Comercial apareceu aos olhos do mundo em época e local que devem ser considerados, haja vista o mundo estar em plena Segunda Guerra Mundial e a Itália ser governada pelo ditador fascista Mussolini.
O fascismo buscava a harmonização da luta de classes intermediada pelo estado nacional. A empresa no ideário fascista representa o local de harmonização entre o proletariado e a burguesia, reunindo os ideais econômicos da empresa com os interesses dos trabalhadores.
Obviamente a configuração empresarial moderna não encontra como seu princípio norteador os interesses dos trabalhadores, porém a Teoria da Empresa sobreviveu a redemocratização da Itália graças aos seus méritos jurídico-tecnológicos, facilitando a operacionalidade das empresas perante o ordenamento jurídico moderno.
A Teoria da Empresa começa a surgir no direito brasileiro a partir de 1960 em contraposição à defasada Teoria dos Atos de Comércio, especialmente pela não inclusão de atividades de extrema importância ao desenvolvimento econômico nacional, como a prestação de serviços, atividades rurais e negociação de imóveis.
Em 1965 a Teoria da Empresa é adotada pelo Projeto de Código das Obrigações que não veio a se tornar lei. Posteriormente em 1975 esta teoria figura novamente no Projeto de Código Civil, o qual tramitou com lentidão histórica, tornando-se o atual Código Civil de 2002. Todavia, durante a tramitação do Código Civil diversas leis de interesse comercial utilizaram o sistema italiano, por exemplo o Código de Defesa do Consumidor de 1990, a Lei de Locação Predial Urbana de 1991 e a Lei de Registro de Empresas de 199426.
HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DO DIREITO COMERCIAL NO BRASIL
No Brasil colonial as relações jurídicas eram caracterizadas pela legislação da pátria mãe, Portugal, vigorando a época as Ordenações Filipinas e forte influência do Direito Canônico e Romano.
Todavia, com a chegada da família real ao solo da colônia tupiniquim, acossada pela invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão, foi imprescindível a atualização das práticas comerciais implantadas no Brasil, e consequentemente do Direito Comercial que regia tais transações.
Ato de Dom João VI, assinado em 28 de janeiro de 1808, seis dias após a chegada da Família Real portuguesa a Salvador, decretou a abertura dos portos brasileiros às nações amigas de Portugal, o que excluía a França, então em guerra contra Portugal. Antes da vigência da abertura dos portos toda mercadoria que era importada ou exportada pelo Brasil deveria obrigatoriamente ter como entreposto Portugal, onde era pesadamente taxada.
No mesmo ano outros avanços legislativos e econômicos vieram à tona, como a criação do Banco do Brasil através do alvará de 12 de outubro de 1808 e a criação da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, que tinha como intuito fomentar a produção e comercio de insumos brasileiros.
A principal função da Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação era organizar as frotas, fiscalizar o comércio e intervir nas falências, além de receber as contribuições para pagamento dos marinheiros da Índia, definir a capacidade e preço do frete dos navios e fiscalizar a carga e descarga de produtos nos navios, atuando como agente alfandegário.
Com a Proclamação da Independência não houve uma completa secção da legislação portuguesa, fato este comprovado pela Lei da Boa Razão, que autorizava em caso de lacuna da lei pátria, invocar os subsídios da legislação comercial das nações cristãs mais evoluídas e depuradas da boa jurisprudência. Neste liame, durante anos a legislação comercial brasileira foi na verdade o Código Francês de 1807, o Código Comercial Espanhol de 1829 e por fim o de Portugal de 183327.
O jovem Império não satisfeito com a utilização de legislação estrangeira, através da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, incumbiu o Visconde de Cairu de organizar um novo Código Comercial puramente brasileiro. Em 1832, o Príncipe Regente nomeou comissão para este fim, a qual era composta quase integralmente de grandes comerciantes nacionais da época, dentre eles Antônio Paulino Limpo de Abreu, José Antônio Lisboa, Inácio Ratton, Guilherme Midosi, e Lourenço Westin. A comissão presidida por Antônio Paulino Limpo de Abreu e posteriormente por José Clemente Pereira enviou o projeto do Código Comercial Brasileiro à Câmara em 1834.
Frisa-se que quase todos os idealizadores do Código Comercial eram homens vinculados a importantes atividades comerciais: Ratton era banqueiro e membro da Sociedade dos Assinantes da Praça do Comércio do Rio de Janeiro, Midosi era comerciante sediado no Rio de Janeiro, Westin cônsul da Suécia no Brasil e proprietário da casa de comércio Westin e Cia, Limpo de Abreu era genro de um importante fazendeiro e comerciante de Minas Gerais, figurando como principal abastecedor de alimentos da Corte28.
O projeto foi exaustivamente debatido no legislativo até sua promulgação em 1850, Lei 556 de 25 de junho de 1850. O atual Código Comercial Brasileiro, atualmente quase inteiramente esvaziado pelo Código Civil de 2002, permanecendo em vigência somente as normas de Direito Marítimo.
De acordo com MENDONÇA29, o código Comercial não é cópia servil de nenhum diploma antes encontrado, sendo o primeiro trabalho original que apareceu na América, porém baseou-se principalmente no Código Português de 1833, e subsidiariamente no Francês de 1807 e Espanhol de 1829.
Revela esclarecer que o Código Comercial brasileiro apesar de baseado na Teoria dos Atos de Comércio, em nenhum de seus artigos apresenta a enumeração dos atos de comércio, nos moldes do Código Comercial Francês de 1807, o qual delimita os atos de comércio nos artigos 632 e 63330.
Visando sanar esta lacuna o legislador brasileiro editou o Regulamento nº. 737, de 1850, que tratava do processo comercial, e nos artigos 19 e 20 enumerou os atos de comércio baseando-se novamente no Código Comercial Francês.
Com o advento do Código Comercial os tribunais do comércio foram modificando-se até sua extinção pela Lei 2.662, de 1875, com a unificação do processo judicial. Em 1866 o juízo arbitral, que era obrigatório, ganhou caráter facultativo e, em 1882, as sociedades anônimas desvincularam-se do controle estatal, podendo serem constituídas livremente. Em 1908, o Direito Cambiário, por meio do Decreto 2.044, adaptou-se à nova fase do país, dando origem ao instituto da concordata31.
A importância do rol dos atos de comércio do Regulamento 737 só veio a diminuir a partir do ano de 1960, com a aproximação do direito italiano e a utilização da teoria da empresa no Projeto de Código das Obrigações.
Com o advento do Código Civil de 2002, o Direito Comercial, modernamente chamado de Direito Empresarial, voltou a aplicar o caráter subjetivo, focando no profissional empresário, aquele que exerce como profissão atividade empresarial, voltada para a produção e circulação de bens e serviços, conforme estabelecido pelo Código Civil de 2002 nos artigos 966 a 119532.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta deste artigo foi realizar um levantamento histórico do comércio e do Direito Comercial, visando um melhor entendimento da atual situação dessa tão importante matéria do Direito Privado. Decalca-se que é indispensável o estudo histórico do Direito para que se possa compreender profundamente as instituições e dispositivos existentes na atualidade.
No decorrer do levantamento bibliográfico pode-se perceber algumas contradições sobre o início das atividades comerciais no mundo antigo, bem como do Direito Comercial, seja através de normas esparsas, as quais regulavam situações pontuais na evolução comercial, seja através do Direito Comercial como disciplina autônoma na seara jurídica.
Vale consignar que a dificuldade para delimitar a atividade comercial e o Direito Comercial no tempo é grandemente fruto da falta de estudos mais detalhados e da falta de documentos antigos escritos, capazes de convalidar as diversas teorias sobre o nascimento deste ramo do direito privado.
A autonomia do Direito Comercial, hoje Direito Empresarial, no direito nacional pode ser defendida sobre três aspectos: didática, formal e substancial ou jurídica.
A autonomia didática percebe-se através de fácil análise curricular nas universidades de Direito, sendo o Direito Empresarial uma cátedra autônoma. O ponto de vista formal é o mais difícil de ser defendido, haja vista o esvaziamento do Código Comercial pelo Código Civil de 2002, persistindo as regras de Direito Marítimo.
Todavia, ao analisar a vasta legislação esparsa que trata exclusivamente de questões puramente empresariais, como a Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas), o Decreto 57.663/1966 (Letra de Câmbio e Nota Promissória), Lei 7.357/1985 (Lei do Cheque), Lei 8.934/1994 (Registro de Empresas), dentre outras, comprava a autonomia substancial ou jurídica.
Conclui-se que do comércio à empresa, o Direito Comercial modificou-se em decorrência da necessidade de acompanhar as rápidas transformações econômicas, das arcaicas corporações de ofício às atuais multinacionais e empresas digitais. Neste cenário espera-se um ritmo cada vez maior de evolução do comércio e sua consequente transformação no Direito Comercial que deve estar em constante mutação e atualização para regulamentar a nova economia globalizada.
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