8. O atual sistema brasileiro de notificação nas ações coletivas
A legislação brasileira é extremamente pobre no que concerne às notificações nas ações coletivas. A regra geral é da não obrigatoriedade da realização de qualquer tipo de notificação aos interessados. É impressionante que a lei não cuide da informação ao público sobre a existência da ação coletiva, mesmo admitindo em variados casos a manifestação espontânea de órgãos e entidades, como, por exemplo, naação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (art. 7º, §2º, da Lei nº 9868/1999).
Mesmo na abordagem inicial da questão, fica patente a incongruência legislativa. Ao mesmo tempo em que a lei consagra a conveniência da manifestaçãode entidades distintas das que conduzem o processo, não cria nenhum mecanismo para informar ao público interessado da existência da ação. Há o direito de manifestação, porém, muitas vezes este fica prejudicado em virtude de não existir o direito à notificação. Por óbvio, ninguém pode intervir em um processo judicial cuja existência desconhece. A legislação brasileira parece ignorar esta simples premissa.
A única previsão expressa como requisito de validade geral do processo ocorre no art. 94. da Lei nº 8078/90. Este artigo obriga que, nas ações coletivas sobre direitos individuais homogêneos, depois de proposta a ação, seja publicado edital no Diário Oficial.O artigo aduz que tal publicação ocorre “sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor”. Neste ponto é pertinente a advertência de Antonio Gidi, de que, em uma interpretação literal, se alguma entidade tiver o interesse de realizar uma divulgação ampla do processo, ela está autorizada para tanto; entretanto, se não desejar fazê-lo, não há nenhuma consequência.27 Para Gidi, esta “segunda parte do art. 94. não é sequer uma norma jurídica no sentido tradicional, porque é despida de obrigatoriedade, de sanção ou de qualquer consequência jurídica”.28
O modelo de notificação brasileiro é claramente insuficiente. A notificação via Diário Oficial é tão restritiva que chega ao ponto de ser considerada por Gidi, com razão, como ausência completa de notificação. O professor ainda afirma que esta limitação debilita o poder político das ações coletivas e o poder de mobilização social dos membros do grupo. Sustenta, inclusive, a inconstitucionalidade de uma norma de notificação tão restritiva, face ao contraditório e ao devido processo legal.29
Como visto, na absoluta maioria dos casos, a legislação brasileira não prevê a mínima obrigatoriedade de notificação acerca das ações coletivas. Na rara hipótese em que ela existe, o art. 94. da Lei nº 8078/1990, a previsão é meramente formal e a notificação pode ser considera fictícia, uma vez quequase ninguém lerá o edital no Diário Oficial.
A prática de alguns magistrados de mandar afixar o edital nos murais do fórum também é de pouca valia. A maioria das pessoas não frequenta este ambiente e mesmo dentre os frequentadores poucos são os que param para ler este tipo de aviso. A lei não prevê qualquer parâmetro para o conteúdo do edital, como acontece na legislação norte-americana. Deste modo, muitos editais são elaborados com redação técnico-jurídica, o que dificulta em muito a compreensão de um cidadão leigo que eventualmente se depare com ele.
9. A notificação adequada e a o transporte da coisa julgada in utilibus
Uma questão bastante pertinente no exame da notificação adequada no processo coletivo ocorre em relação ao chamado transporte da coisa julgada in utilibus, previsto no §§ 3º e 4º da Lei nº 8708/1990. Trata-se de um efeito secundário da sentença de procedência de direitos essencialmente coletivos (difusos e coletivos stricto sensu) e da sentença penal condenatória.30
O transporte in utilibus permite que a coisa julgada produzida neste tipo de demanda possa ser aproveitada para as lides individuais derivadas da mesma causa de pedir. Isto será possível quando uma mesma situação de fato gere a tutela de direitos essencialmente coletivos e de direitos individuais.31 É um mecanismo extremamente engenhoso da legislação processual e de grande utilidade prática, pois reconhecida a existência do fato gerador de dano, os cidadão só precisa propor a liquidação em relação aos danos individuais sofridos. Há o transporte da coisa julgada coletiva.
Em relação ao aproveitamento da coisa julgada das ações sobre direitos coletivos, a questão da notificação adequada adquire extremo relevo em virtude do art. 104. da Lei nº 8078/1990. Este artigo dispõe que as ações sobre direitos coletivos“não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias”, contando da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva. O artigo trata do direito do sujeito excluir-se da abrangência da ação coletiva, caso queira prosseguir com sua ação individual. É o chamado right to opt outno direito norte-americano.32
Para poder optar por prosseguir ou não no processo individual, o sujeito deve ter garantida a ciência inequívoca da existência do processo coletivo33 .O texto da lei se refere à ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva, portanto, a melhor interpretação parece ser a de que se trata de um ônus do réu a comunicação da existência de processo coletivo em curso. Ônus este, que, se se não cumprido, permite que o autor individual se beneficie da ação coletiva mesmo no caso de sua ação individual ser julgada improcedente.34
Outra ponderação acerca do princípio da notificação adequada e da abrangência da coisa julgada coletiva é em relação às causas individuais em que o autor não tenha a assistência de advogado. Tal situação ocorre, por exemplo, em causas de valor inferior a 20 salários mínimos na sistemática da Lei nº 9099/95. Nestas situações, em virtude da incapacidade técnica do autor, a notificação da existência de ação coletiva pendente deve ser feita de modo extremamente claro, de sorte que o autor possa compreender os riscos inerentes à opção de prosseguir ou suspender a ação individual. Com isto se consagra a aludida garantia da ciência inequívoca da existência de processo coletivo. O juiz tem o poder/dever de controlar o conteúdo da notificação feita pelo réu e invalidá-la caso perceba que a opção do autor foi expressa por erro, em virtude da não compreensão das consequências de sua atitude.
O aproveitamento da coisa julgada coletiva in utilibus para as demandas individuais também faz surgir questões acerca da necessidade de notificação adequada nas ações que versam exclusivamente sobre direitos transindividuais (difusos e coletivos stricto sensu). O cerne do problema é novamente a falta de informação para o exercício dos direitos. Mesmo existindo o direito de promover a liquidação e execução dos danos individuais sofridos nestas situações, este poder não poderá ser exercido caso o indivíduo não tenha ciência da existência da ação ou de que ela foi provida.
Resta evidente que não se deve pensar apenas na melhoria do deficiente sistema de notificação das ações sobre direitos individuais homogêneos. É necessário criar um sistema de notificações adequado para toda a tutela coletiva, uma vez queé inerente à própria dinâmica das ações coletivas que elas interessem a toda a comunidade envolvida. A informação adequada é condição básica para o exercício dos direitos.
10. Crítica ao modelo de notificação individualizada para os membros identificáveis do grupo
Após verificar a insuficiência do modelo de notificação do processo coletivo brasileiro, deve-se verificar qual seria o modelo adequado. Para isto, vale a pena inquirir se seria recomendável a adoção do modelo de notificação norte-americano das class actions for damages, que além de ordenar que os membros da classe sejam notificados da melhor maneira possível, fixa a obrigatoriedadeda notificação pessoal para todos os componentes do grupo que possam ser identificados por meio de razoável esforço.35
A fórmula da “melhor notificação possível” precede à edição da citada regra 23 das federal rules of civil procedure. Richard Nagareda noticia a referência a esta fórmula em uma decisão da Suprema Corte americana do ano de 1950: Mullane v. Central Hanover Bank & Trust Co., 339 U.S. 306, 314-15, em que a corte já discutia que tipo de notificação para os membros do grupo seria adequado ao devido processo legal.36 A referência histórica evidencia o fato de podermos extrair a necessidade de respeito ao princípio da notificação adequada da própria cláusula do devido processo legal.
A princípio, este modelo parece ser razoável, pois todos os membros identificáveis terão ciência inequívoca da ação, sendo a notificação feita normalmente por carta. Ao mesmo tempo, providências serão tomadas para garantir a melhor notificação possível para os membros não identificáveis, o que pode ser feito, por exemplo, através de anúncios em periódicos.
A regra da notificação individualizada dos sujeitos identificáveis algumas vezes gera grandes perplexidades na solução das class actions. Os tribunais norte-americanos apresentam diversos precedentes nos quaisa delimitação da classe para fins de certificação e verificação da notificação adequada tornou-se uma das questões centrais da ação. Um bom exemplo é o caso Amchem Products, Inc v. Windsor, 521 U.S. 591. (1997) que trata da responsabilidade de algumas companhias pelos danos à saúde causados pelo uso de amianto. É intuitiva a dificuldade de se delimitar contornos precisos para um grupo que pleiteia direitos desta natureza. O grupo podia chegar a centenas de milhares, quiçá milhões de pessoas, agrupadas pela homogeneidade das demandas.37 A necessidade de definir com a máxima precisão os limites do grupo representado, no regramento das class actions for damages, muitas vezes constitui um fator que dificulta o manejo destas ações.
Outra grande fonte de dificuldades para obediência da regra de notificação das class actions for damages são os custos envolvidos na notificação. Os altos custos deste sistema normalmente são utilizados como argumento pelos defensoresdo sistema da notificação por edital. Gidi informa que normalmente este setor da doutrina cita o caso Eisen v. Carlisle & Jacquelin38 como argumento para evidenciar que os custos de notificação envolvidos neste sistema são inviáveis. O professor, entretanto, explica que esta decisão da Suprema Corte de 1974 foi extremamente infeliz eé criticada por doutrinadores americanos e estrangeiros.39
Para que se tenha ideia da dimensão da dificuldade e do custo envolvidos na notificação do caso Eisen, considerando o preço de apenas seis cents de dólar por carta na época, a notificação individualizada para os membros identificáveis custaria centenas de milhares de dólares.40 Neste caso, o juízo de primeiro grau, reconhecendo a grande possibilidade da causa ser provida, determinou que os réus suportassem noventa por cento dos custos de notificação. Entretanto, o segundo grau e a Suprema Corte americanas foram unânimes em reverter a decisão.
Stan Karas noticia outro caso curioso, ocorrido na Califórnia, que evidencia os limites do sistema de notificação norte-americano: State v. Levi Strauss & Co., 715 P.2d 564, 570 (Cal. 1986). A ação foi movida pelo Estado da Califórnia contra a fábrica de calças Levi´s, pleiteando que os consumidores californianos fossem indenizados pelo fato da Levi´s ter cobrado de trinta a quarenta centavos a mais do que poderia no começo dos anos 1970. Após muito tempo, foi certificada uma classe de mais de sete milhões de afetados. Daí foi utilizada a fluid recovery em um acordo que resultou no pagamento de 12.5 milhões de dólares. Entretanto, apenas em razão dos custos de notificação para que as pessoas soubessem que podiam receber trinta centavos pelo par de jeans, foram gastos dois milhões de dólares deste fundo. Mesmo com tanto dinheiro de notificação gasto, somente uma parcela muito pequena dos afetados requereu a reparação, em virtude da bagatela que receberia.41
Com estes precedentes, se percebe que o modelo de notificações americano também encontra sérias limitações, sendo a necessidade de definição rigorosa dos membros da classe e o custo envolvido na notificação os fatores mais negativos. Este modelo é desaconselhável em virtude de não ser eficiente para propiciar a economia de recursos pretendida com a adoção da tutela coletiva42 e por não ser consentâneo com a maximização do acesso à justiça.
A questão da notificação adequada é complexa, sendo impossível transplantar um modelo estrangeiro por inteiro para a nossa legislação. É preciso pensar com afinco os diversos matizes que a questão envolve e desenvolver um sistema de notificação intermediário, que não gere os inconvenientes do sistema americano, nem seja insuficiente como o brasileiro.43
11. A notificação adequada e os anteprojetos de código de processo coletivo
Atualmente existem quatro anteprojetos de código de processo civil coletivo44, que alcançaram grande repercussão nacional e internacional. Existe o Código Modelo elaborado por Antonio Gidi (CM-GIDI), o Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América feito pelo Instituto Ibero-americano de Direito Processual (CM-IIDP), o Código Brasileiro de Processos Coletivoscriado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (CBPC-IBDP) e o Código Brasileiro de Processos Coletivos elaborado no âmbito dos programas de pós-graduação da UERJ e UNESA (CBPC-UERJ/UNESA).
Cada um desses anteprojetos doutrinários tem diversas peculiaridades. Para os fins deste trabalho, o que interessa é a análisedos mecanismos de notificação trazidos por eles. Neste ponto, serão analisados os aspectos gerais das notificações dos três últimos anteprojetos referidos, dada a sua semelhança. Alguns mecanismos específicos trazidos pelos anteprojetos serão examinados adiante. Em razão de suas peculiaridades, será dedicado um ponto exclusivo ao exame do sistema de notificações do Código Modelo de Gidi.
Para começar, é importante salientar que o Código Modelo do IIDP, assim como os anteprojetos do IBDP e da UERJ/UNESA praticamente reproduzem a sistemática atual de notificações dos membros do grupo nas ações coletivas, já criticada por sua insuficiência. Todos os três anteprojetos restringem a ideia da notificação ao procedimento das ações sobre direitos individuais homogêneos e utilizam a mesma sistemática do edital publicado no órgão oficial de imprensa.
O Código Modelo para Ibero-américa regula a questão no art. 21, sendo esta quase a reprodução do art. 94. da Lei nº 8078/1990. O anteprojeto do IBDP, apesar do avanço em trazer expressos os princípios da “participação pelo processo e no processo” (art. 2º, c) e “ampla divulgação da demanda e dos atos processuais” (art. 2º, o), também restringe às notificações ao procedimento das ações sobre direitos individuais homogêneos em sistemática igual à já existente (art. 30). O anteprojeto da UERJ/UNESA regula a matéria da mesma forma, no art. 32. e traz como novidade apenas um rol exemplificativo de “meios de comunicação social” pelos quais podem ser divulgadas as ações no art. 32, §2º, entretanto, rigorosamente, a não realização da divulgação também não gera qualquer consequência.
Comentando o art. 21. do Código Modelo do IBDP, Teori Albino Zavascki relata que em virtude da natureza dos direitos individuais homogêneos, a participação das pessoas interessadas não é considerada essencial, nem obrigatória, mas sim facultativa. Por isso é que não são convocadas pessoalmente, mas sim através de edital.45 Entretanto, Zavascki cita e concorda com as críticas tecidas por Antonio Gidi contra o sistema da notificação por edital, que já foram analisadas em ponto supra. Para Gidi, “uma notificação adequado é o mínimo que o processo coletivo adequado deve proporcionar ao grupo titular da pretensão coletiva”.46 Considera a notificação ao grupo uma questão constitucional de respeito ao devido processo legal, tão importante quanto à representação adequada47.
Também comentando o art. 21. do Código Modelo para Ibero-américa, o professor colombiano Martín Bermúdez Muñoz, tece a mesma crítica da insuficiência da notificação no sistema adotado e afirma como correto o art. 5º do Código Modelo elaborado por Gidi,48 que será analisado adiante. O professor Muñoz noticia que na Colômbia, a notificação sobre ações coletivas é ainda pior. Limita-se à inclusão de um aviso de baixo custo em um periódico, que também ninguém lê e muitas vezes este requisito não é sequer cumprido, por falta de meios de quem ajuizou a ação e em virtude do sistema colombiano dispor que este tipo de ação poder ser impulsionada de ofício, o que faz com que os juízes substituam a publicação por um aviso na própria secretaria da vara.49