12. Cadastro nacional de processos coletivos.
Uma das inovações mais importantes trazidas no bojo dos anteprojetos de Código Brasileiro de Processo Coletivo (art. 28. do CBPC-UERJ e art. 46. do CBPC-IBDP) é o Cadastro Nacional de Processos Coletivos. A previsão também é encontrada no art. 53. do projeto da nova lei de Ação Civil Pública, PL 5139/2009.50
Este cadastro, que deverá ser mantido e operado pelo Conselho Nacional de Justiça, é importante, pois serve para que o Poder Judiciário, o Ministério Público e todos os demais interessados tenham uma fonte confiável para saber da existência de ações coletivas e do atual estado em que elas se encontram. O ideal é que tal cadastro seja mantido na internet e acessível por qualquer pessoa.
Sem nenhuma dúvida, independentemente de outras medidas que sejam eventualmente adotadas para concretizar o princípio da notificação adequada, o cadastro nacional de processos coletivos deverá figurar entre elas. Ele terá o papel de centralização das informações sobre as ações coletivas, o que tem uma utilidade evidente.
O cadastro nacional evitará a propositura de mais de uma ação coletiva versando sobre o mesmo tema e com mesma abrangência geográfica. Os indivíduos terão um meio adequado para buscar ações coletivas de seu interesse, o que tornará estas ações significativamente mais eficazes e poderá diminuir a propositura de ações individuais. Até o trabalho do judiciário será facilitado pelo cadastro, uma vez que qualquer magistrado, ao verificar na prática uma demanda repetitiva, poderá buscar no sistema se já existe uma ação coletiva proposta no mesmo sentido.
Outra contribuição do cadastro nacional será a facilitação da obtenção de maiores informações acerca de uma ação coletiva. O indivíduo que for notificado por qualquer outro meio sobre a existência de ação que possivelmente lhe interesse, saberá que poderá encontrar neste cadastro uma fonte fiel de esclarecimento.
Uma vantagem adicional seria a possibilidade de que, criada esta base de dados, os indivíduos e organizações possam ser avisados de ações propostas em determinadas áreas de seu interesse pelo sistema informatizado. Este mecanismo atualmente é muito comum em sites da internet, inclusive governamentais, e funcionaria de forma simples. O cidadão precisaria apenas cadastrar um endereço de email e informar ao sistema sua localização e áreas de interesse, através da marcação de opções pré-definidas pelo administrador do cadastro.
O cadastro de ações coletivas certamente será um instrumento formidável de participação popular para o Brasil e colocará o país na vanguarda mundialdas práticas dee-government51 no Judiciário.
13. O Processo digital como concretização da notificação adequada
Uma contribuição significativa do anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Coletivo do IBDP é seu art. 10, epigrafado como “Prioridade de processamento e utilização de meios eletrônicos”. Além da prioridade do processamento das demandas coletivas sobre as individuais, que é uma ideia muito razoável, o enunciado também contém a ordem de que sejam utilizados preferencialmente os meios eletrônicos para a prática de atos no processo coletivo.
Apesar da regra não obrigar a adoção exclusiva de meio eletrônicos para o processo coletivo, ela evidencia a conveniência manifesta da utilização do processo digital neste tipo de tutela, em contraposição aos autos físicos. Considerando que osdireitos e deveressubjacentes à tutela coletiva são de titularidade de variados sujeitos, nada mais adequado que o processo inteiro desenvolva-se por meio digital, sendo as peças principais acessíveis por qualquer interessadoatravés da internet. Apesar dos autos físicos serem documentos públicos, obviamente seu acesso é muito mais difícil que o dos autos em meio digital.
A utilização do meio digital para a prática de atos no processo coletivo sem dúvidas colabora para a concretização da notificação adequada e facilita o acesso à justiça. Faz parte da garantia do direito das pessoas de terem informações sobre a tramitação da ação coletiva. Qualquer pessoa poderá verificar o andamento dos processos de seu interesse e eventualmente contratar um advogado para esclarecer questões ou praticar atos necessários.
É importante esclarecer que atualmente nada impede que as ações coletivas tramitem por meio digital no Brasil. A Lei nº 11.419/2006 permite que qualquer processo judicial se desenvolva desta forma e confere o arcabouço legal necessário. A decisão política de utilização do processo digital neste tipo de tutela seria muito bem vinda e auxiliaria na concretização do devido processo legal coletivo. O art. 10. do CBPC-IBDP evidencia esta necessidade. A adoção do meio digital para a prática de atos processuais também é uma medida fundamental, que, assim como a criação do Cadastro Nacional de Ações Coletivas, deverá acompanhar qualquer mudança que vise à melhoria do sistema de processo coletivo brasileiro.
14. O sistema de notificações no anteprojeto do código de processo civil coletivo de Antonio Gidi
Após analisar os demais anteprojetos de código de processo coletivo, passemos ao exame da sistemática das notificações no anteprojeto de Antonio Gidi.52 Este foi o primeiro anteprojeto apresentado no país e é o único que traz uma modificação substancial em relação à sistemática apresentada pelalegislação atual. Neste anteprojeto, a preocupação com o temadas notificações está patente desde a exposição de motivos:
“Uma das contribuições deste projeto é eliminar injustificadas diferenças procedimentais em ações coletivas. Tais diferenças existem no Brasil e nos Estados Unidos meramente por casualidades e equívocos históricos e esta é a oportunidade para corrigir tais deformações. Não há nada que justifique que a notificação nas ações coletivas indenizatórias americanas (class actions for damages) seja mais rigorosa do que nas demais ações coletivas...”53
Em outro trabalho, em que criticava o sistema de notificações do Código Modelo para Ibero-américa, Antonio Gidi demonstrou a mesma preocupação, afirmando que aquele código deveria conter uma norma intermediária, que não fosse tão custosa e absurda como a norte-americana, nem tão insuficiente e fictícia com a brasileira. Sustentava que uma norma adequada poderia, por exemplo, informar ao grupo como um todo, através de notificação ao ministério público, aos entes públicos e privados importantes e notificar individualmente alguns membros do grupo, que seriam selecionados por amostragem.54
O professor baiano desenvolveu toda a sistemática das notificações de seu anteprojeto no artigo 5º, que é epigrafado como “notificação adequada”. A localização deste dispositivo no corpo do texto já demonstra uma modificação significativa no tratamento das notificações, pois o artigo está inserido no Título II que regulamenta o procedimento coletivo como um todo. Daí já se percebe a primeira diferença substancial em relação ao atual ordenamento: o sistema das notificações é unificado para todas as ações coletivas. Há uma preocupação evidente com a informação adequada na tutela de todos os tipos de direitos coletivos e não há nenhuma diferenciação em relação aos direitos individuais homogêneos.
O caput do artigo utiliza a fórmula originária da suprema corte americana55, afirmando que, na fase inicial do processo, o juiz promoverá, com o auxílio das partes a melhor notificação possível para o grupo e seus membros, atendendo às peculiaridades do caso concreto. Entretanto, o anteprojeto não se limitou a enunciar esta regra, de interpretação tão aberta, e disciplinou as notificações de modo pormenorizado nos pontos subsequentes.
O art. 5.1. enuncia as características da notificação, afirmando que esta deve ser econômica, eficiente e abrangente, direcionada a atingir o maior número possível de legitimados coletivos e membros do grupo. O enunciado também define os entes de notificação compulsória em todos os casos: o Ministério Público, o Fundo dos Direitos de Grupo, as entidades e órgãos relevantes, as associações nacionais e regionais mais representativas e uma pequena amostra dos membros do grupo facilmente identificáveis. Tal rol se demonstra adequado e extremamente representativo.
O art. 5.2. confere ao juiz a possibilidade de proceder a notificação adequada através de qualquer meio eficiente em relação às particularidades do grupo. Já o art. 5.3. traz a disciplinado custeio das notificações, tema muito controvertido na jurisprudência norte-americana como demonstrado com o caso Eisen. A regra geral do anteprojeto é que o representante do grupo suporte este ônus, porém, quando o juiz verificar que a notificação é difícil e custosa para o representante, mas não o é para a parte contrária ao grupo, o juiz poderá atribuir-lhe tal função. Após o exame da probabilidade de sucesso da pretensão coletiva, o juiz pode até mesmo ordenar que as despesas com notificação sejam total ou parcialmente suportadas pelo réu (art. 5.12).
Um bom exemplo da necessidade da inversão aconteceria numa ação em que um sindicato atuasse contra algumas empresas, na condição de representante de seus empregados. O sindicato teria dificuldade em realizara a notificação, porém o juiz poderia determinar que as empresas incluíssem um aviso nos contracheques, que costumeiramente já tem uma parte formatada para mensagens, implicando em um custo inexpressivo para as empresas rés. Este exemplo talvez se enquadre até melhor na previsão específica do art. 5.13, que explicita a possibilidade da notificação através de alguns meios de comunicação constante que o réu mantenha com os membros do grupo, após um juízo de probabilidade de sucesso da pretensão coletiva realizado pelo magistrado. Outro exemplo enquadrado nesta previsão é a notificação de usuários de serviços continuados, como telefonia, água e luz, através da fatura mensal.
Há uma preocupação evidente com o conteúdo substancial da notificação do art. 5.4. ao 5.6. O anteprojeto cria parâmetros normativos para a linguagem utilizada na notificação, define seus elementos essenciais e confere ao juiz o poder/dever de controle de seu conteúdo. O regramento é nitidamente inspirado na regra 23(c)(2)(b), das Federal Rules of Civil Procedure norte-americanas, porém se afasta da descabida necessidade de notificação individual de todos os membros identificáveis. Para não restarem dúvidas de que o anteprojeto não consagra esta regra infeliz, o art. 5.7. explicita que em determinadas situações o juiz pode até reduzir ou dispensar a notificação individual da pequena amostra dos membros do grupo.
É estabelecida uma relação interessante entra a notificação e a representação adequadas no art. 5.8. do código modelo. O representante do grupo, mesmo tendo passado em um exame inicial de legitimidade, pode passar a ser considerado ilegítimo caso não mantenha os membros do grupo constantemente informados sobre os fatos relevantes da ação coletiva. Caso o magistrado entenda insatisfatória a informação periódica fornecida pelo representante, também poderá promover,de ofício, a notificação formal de qualquer evento do processo.
A sistemática apresentada pelo anteprojeto inclui a proteção do réu quanto às ações manifestamente incabíveis ou infundadas no art. 5.10. A notificação destas ações poderia causar prejuízos injustificáveis, portanto, o juiz não deve nem promover a notificação nestes casos. Em casos duvidosos, o juiz pode retardar a notificação mais ampla, notificando apenas os legitimados coletivos mais significativos em um primeiro momento, até formar sua convicção sobre o cabimento e a boa-fé da ação coletiva (art. 5.11).
O anteprojeto ainda disciplina expressamente a possibilidade de criação e manutenção de um site na internet para facilitar a comunicação sobre a ação coletiva no art. 5.14. A sistemática da notificação adequada apresentada por Antonio Gidi em seu anteprojeto é extraordinária. Inova completamente em relação ao parco regramento atual e atende todos os anseios relacionados às ações coletivas. Sua adoção representaria um grande salto qualitativo para o processo coletivo brasileiro, garantido um efetivo acesso à justiça.
15. Conclusão
A notificação adequada se apresenta como um princípio basilar para o respeito ao devido processo legal coletivo. Sem a informação adequada sobre a existência das ações coletivas e seus desdobramentos é impossível que o sistema da tutela coletiva funcione de modo eficiente e produza os resultados desejáveis.
A sistemática das notificações no atual processo coletivo brasileiro é de uma insuficiência patente. Difere a notificação da tutela de direitos individuais homogêneos das demais, de forma injustificada. Quando muito, exige a notificação através de edital publicado no Diário Oficial, cujo alcance real é praticamente nulo. Apesar de a lei permitir uma divulgação mais ampla através dos instrumentos de comunicação social, não há qualquer consequência se isto não for realizado. Também não existem preocupaçõesem relaçãoàpublicidade de demandas sobre direitos essencialmente coletivos, o que impede que indivíduos conheçam das ações de seu interesse e possam aproveitar a coisa julgada coletiva para eventualmente serem ressarcidos de danos individuais.
Em um estudo de direito comparado, é possível perceber que as notificações das class actions for damages norte-americanas não constituem um paradigma adequado ao processo coletivo brasileiro. Este regramento exige a notificação individualizada de todos os membros do grupo identificáveis, o que tornao procedimento de certificação extremamente complexo, notadamente quando a ação envolve uma quantidade grande de indivíduos. Além disso, esta obrigatoriedade gera custos tão elevados que tornam as demandas por vezes inviáveis e em outras diminuem significativamente seu resultado útil.
Examinando as propostas doutrinárias para um código de processo coletivo, percebe-se que a maioria delas mantém a mesma insuficiência nas notificações apresentada pela legislação atual. No entanto, trazem algumas inovações interessantes, como o Cadastro Nacional de Ações Coletivas e a regra da preferência de utilização de meios eletrônicos no processo coletivo, que podem contribuir de forma decisiva para a melhoria do sistema.
Diante da insuficiência da notificação na legislação brasileira, pode-se considerar que estamos diante de uma lacuna jurídica, que, segundo Karl Engisch, é a incompletude da lei contrária ao plano.56 A ausência da notificação adequada é completamente contrária às normas que orientam a tutela coletiva e o acesso à justiça. De lege lata, a melhor interpretação para a legislação atual seria que os magistrados efetivassem a notificação adequada em obediência aos princípios constitucionais do contraditório e do devido processo legal.57
O mais indicado para aperfeiçoar o sistema da tutela coletiva em relação à notificação adequada é a mudança legislativa, com a fixação de critérios normativos para sua realização. Dentre as propostas apresentadas, o regramento contido no artigo 5º do Código Modelo de Antonio Gidi é o mais completo e eficiente, tendo logrado êxito na tarefa que se propôs de criar um sistema de normas intermediário entre o insuficiente sistema brasileiro e o pesado sistema norte-americano. Esta proposta, aliada ao Cadastro Nacional de Ações Coletivas e a priorização do meio digital para este tipo de tutela, certamente contribuiria decisivamente para a evolução do tratamento processual das situações jurídicas coletivas.