Resumo
A proteção constitucional à liberdade de expressão representa um dos mais importantes instrumentos consagrados pela Constituição Federal de 1988, na medida em que possibilita a construção de ambiente caracterizado pela pluralidade política, religiosa e cultural, viabilizando a formação de uma sociedade em que os diversos pontos de vista se façam ouvir.
Em razão da proteção a outros bens igualmente relevantes, e orientada a Carta Magna pelo princípio da dignidade da pessoa humana, faz-se necessário analisar se se encontra protegido pela liberdade de expressão o chamado discurso do ódio, tomando-se como parâmetro, para fins de análise, o entendimento jurisprudencial norte-americano, cuja Constituição tem por princípio básico a proteção da liberdade.
Considerando essa diferença fundamental, podem ser analisadas as razões pelas quais o chamado discurso do ódio não se encontra albergado pela liberdade de expressão no Brasil, podendo ensejar a responsabilização, inclusive criminal, nos termos das leis brasileiras, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos da América, em que tal modalidade de expressão é tolerada pela Suprema Corte.
Palavras-chave: Discurso do ódio. Proteção constitucional.
1. INTRODUÇÃO
A liberdade, característica intrínseca à vida do homem, deve se manifestar em toda sua plenitude, possibilitando à humanidade o alcance de todas as suas potencialidades, tornando concretas as perspectivas que se abrem a todos. A preservação de tal direito, que se projeta em diversas esferas, deve ser assegurada pelo Estado e pela Sociedade, não podendo sofrer limitações, salvo no caso de ofensas à dignidade da pessoa humana e a outros direitos de igual relevância.
Uma das projeções da liberdade mais caras à humanidade vem a ser a livre manifestação de pensamento. Tal direito, reconhecido como fundamental pelo artigo 5º, incisos IV e IX, da Constituição Federal de 1988, possibilita ao homem pensar e livremente veicular suas ideias através da ação. Ao fazê-lo, criando o novo, transforma o mundo que o cerca, impulsionando-o a novas descobertas.
A Carta Magna, em seu artigo 220, caput, também estabelece, ao tratar da Comunicação Social, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Reconheceu o constituinte, assim, a impossibilidade de, ao firmar as bases de um Estado Democrático, deixar de assegurar o valor da liberdade, ao mesmo fortemente relacionado.
A busca pela essência do que se entende por justo, atributo de que o Direito deve se revestir, tomando por parâmetro o Direito Natural, assim considerado aquele pressuposto, modelo para o Direito posto, passa pelo reconhecimento da democracia como um dos seus pilares. A democracia não se limita à mera representatividade, cada vez mais restrita ante os vícios inerentes ao processo eleitoral. Antes, busca assegurar participação popular efetiva na gestão da coisa pública, pressupondo discussão ampla e aberta acerca da atuação estatal, em ambiente de máxima pluralidade. Sobre a mesma, leciona a doutrina:
“Evidencia-se, ainda, o quanto ela, a democracia, depende do respeito à liberdade e à igualdade. Liberdade, para que as pessoas possam manifestar seus pontos de vista, das mais diversas formas, a fim de que os demais deles tenham conhecimento e por eles sejam influenciados [...]. A importância da multiplicidade de pontos de vista ressalta, ainda, a necessidade de se prestigiar – também como pressuposto da liberdade, da igualdade e da democracia – a tolerância...”.[1]
A preservação da liberdade, em suas diversas formas, não pode se verificar em outro ambiente que não no Estado Democrático de Direito. O instituto da democracia, por sua vez, não se coaduna com restrições indevidas a que a voz de todos se faça ouvir. A participação popular se dá não apenas no momento em que se deposita o voto na urna, mas também quando a mesma participa, se fazendo ouvir, de um debate plural, caracterizado pela exposição e troca de ideias, resultando na formação de um consenso que a todos beneficia.
Tal participação não se restringe ao aspecto político, mas também abrange questões religiosas (as quais estão, inclusive, relacionadas à origem da própria liberdade de manifestação de pensamento), culturais, artísticas e científicas, sendo em todas essas esferas possibilitado ao homem expor suas convicções em ambiente de liberdade e pluralismo. A multiplicidade de pontos de vista sobre os mais diversos temas será necessariamente benéfica à humanidade, inclusive porque temas que hoje não mais despertam maiores controvérsias eram pelas gerações anteriores vistos como autênticos tabus.
Conforme André Ramos Tavares, “o certo é que o termo liberdade de expressão não se reduz ao externar sensações e sentimentos. Ela abarca tanto a liberdade de pensamento, que se restringe aos juízos intelectivos, como também o externar sensações”.[2] Trata-se de direito fundamental que se projeta à tutela da liberdade de comunicação através de diversos meios de imprensa, inclusive aqueles que dependem de concessão estatal, e fortemente potencializado com o advento da internet, graças a qual toda ideia pode ser exposta a cidadãos do mundo inteiro em tempo real.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, consagra entre os fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, autêntico vetor que orienta toda a interpretação atinente aos direitos fundamentais, que ao mesmo tempo que dela decorrem, também a realizam quando implementados. Trata-se de norma de cunho principiológico, em oposição às chamadas normas-regra.
A análise das normas que disciplinam a liberdade de manifestação de pensamento, notadamente à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, faz surgir a seguinte indagação: todo e qualquer discurso, entendido como manifestação do pensamento, será objeto da proteção outorgada pelo artigo 5º, incisos IV e IX, os quais vedam a censura? Existem direitos dotados de hierarquia superior na Carta Magna de 1988?
Infelizmente não com pouca frequência, tem sido noticiada a prática de uma série de atos que evidenciam a intolerância racial, étnica, decorrente de orientação sexual, etc., que encontram eco e ressonância, por vezes em proporções alarmantes, inclusive com propagação instantânea com a consolidação da internet e a popularização das chamadas redes sociais. O discurso do ódio, assim, ainda se faz presente em um mundo que se pretende evoluído e moderno.
Ideias são expostas com cada vez maior facilidade, dado o acesso facilitado ao computador, muitas vezes sem atentar para as graves consequências que podem fazer surgir. Por outro lado, ideias que hoje se apresentam como odiosas poderão representar, no futuro, a expressão da maioria, ante as constantes transformações sociais. Cabe indagar: pode ser proibida a divulgação das mesmas, ainda que se afigurem como odiosas ao senso comum e no atual estágio evolutivo?
É fato que na sociedade brasileira atual, especialmente após a superveniência da Constituição Federal de 1988, tem-se quadro de pluralismo político, embora associado a uma uniformização cultural, em parte provocada pelos meios de comunicação. Embora não se punam pessoas por expressarem suas opiniões de cunho político, surgem controvérsias em razão da intolerância à veiculação de determinados discursos.
Ainda que a liberdade de manifestação de pensamento tenha surgido para dar voz a minorias políticas e religiosas, contribuindo para a formação de um ambiente marcado pela mais acentuada pluralidade de pontos de vista, é sabido, notadamente a partir de uma análise histórica, que as palavras se apresentam, em dadas circunstâncias, tão ou mais poderosas que as armas. Poderia o Estado, sob qualquer fundamento, impedir a divulgação de determinadas ideias, sem que com isso viesse a ser caracterizado como anti democrático?
Uma resposta às indagações acima formuladas pode ser alcançada a partir da análise de dois casos distintos, no Brasil e nos Estados Unidos da América (Caso Mayara Petruso e Brandenburg vs. Ohio, respectivamente), com desfechos também diferentes, cuja análise também contribui para o entendimento acerca de divergências fundamentais na compreensão do tema segundo a jurisprudência dos dois países acima referidos, como se expõe a seguir.
2. A livre manifestação de pensamento
Os direitos fundamentais podem ser considerados como decorrentes da positivação, no texto constitucional, dos direitos naturais, conceito ao qual se pode equiparar, para os fins do presente estudo, o de direitos humanos. De fato, o reconhecimento, por texto com força normativa, de um conjunto de direitos e garantias aptos a proteger o cidadão em face do Estado, e em face dos demais cidadãos, representa importante conquista dos tempos atuais, representando fruto de lutas revolucionárias. Na lição de Paulo Bonavides, “não há Constituição sem garantia efetiva dos direitos fundamentais”.[3]
Todos os direitos fundamentais, notadamente os ditos de primeira geração (tomada a expressão em termos cronológicos, e não de suposta hierarquia, segundo a clássica lição de Karel Vasak), podem, direta ou indiretamente, ser remetidos à proteção do status libertatis do indivíduo, o qual se manifesta de diversas formas, notadamente através da ação e da palavra. Trata-se de concepção que influenciou fortemente o constitucionalismo moderno. Extrai-se da doutrina:
“Não há direitos fundamentais sem reconhecimento duma esfera própria das pessoas, mais ou menos ampla, frente ao poder político; não há direitos fundamentais em Estado totalitário ou, pelo menos, em totalitarismo integral. Em contrapartida, não há verdadeiros direitos fundamentais sem que as pessoas estejam em relação imediata com o poder, beneficiando de um estatuto comum e não separadas em razão de grupos ou das condições a que pertençam; não há direitos fundamentais sem Estado ou, pelo menos, sem comunidade política integrada”.[4]
Na lição de Ingo Sarlet, “o processo de elaboração doutrinária dos direitos humanos, foi acompanhado, na esfera do direito positivo, de uma progressiva recepção de direitos, liberdades e deveres individuais que podem ser considerados os antecedentes dos direitos fundamentais”.[5]
É no exercício de sua liberdade que o homem pode alcançar todas as suas imensas potencialidades de criar, desenvolver e transformar a sociedade e a realidade em que vive e convive com seus semelhantes. A conquista de tal direito, em suas bases atuais, decorre de intensas lutas travadas, notadamente por meio da Revolução Francesa e da independência das colônias norte-americanas.
No dizer de Bobbio, mencionando a doutrina de Kant, centrada na supremacia da liberdade, “...o homem natural tem um único direito, o direito de liberdade, entendida a liberdade como 'independência em face de todo constrangimento imposto pela vontade do outro', já que todos os demais direitos, incluído o direito à igualdade, estão compreendidos nele”.[6]
Tem-se por intrínseco à liberdade e à democracia, nesse sentido, a garantia a todos os homens de que suas vozes serão necessariamente ouvidas, ainda que não se apresentem em consonância com a voz da maioria. Dissertando acerca da experiência democrática ateniense, Fustel de Coulanges salienta, em obra clássica, que “a discussão era indispensável porque todas as questões sendo mais ou menos obscuras, só a palavra podia iluminar a verdade. O povo ateniense queria que cada assunto lhe fosse apresentado sob todos os seus diferentes aspectos e que lhe mostrassem claramente os prós e os contras”.[7] Do mesmo modo, poderão se expressar de forma artística, intelectual ou científica sem que possa o Estado tolhê-los previamente.
Em regimes totalitários, a perda do direito de expressão pelos indivíduos e a perseguição aos veículos de comunicação será uma das primeiras medidas implementadas pelos novos titulares do poder, que se pretendem perpétuos, rechaçando com violência seus críticos, de forma a não permitir o surgimento de focos de contestação ao poder ilegítimo, combatendo os mesmos, com idênticas intensidades, tanto o poderia da oposição bélica quanto o poderio da oposição pela palavra.
Com a superveniência da Constituição Federal de 1988, foi inserido no extenso rol previsto no artigo 5°, em capítulo dedicado aos direitos e deveres individuais e coletivos, o direito de todos à todos a livre manifestação de pensamento, vedando contudo o anonimato. Prevê ainda em seu inciso IX, ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. As normas em tela, assim como as demais introduzidas pela CF/88, decorrem de um contexto de redemocratização nacional.
Em seu artigo 220, § 2º, a Lex Magna também estabelece ser vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, passando o Constituinte a dispor acerca do exercício da liberdade de informação jornalística e da manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, o que representa uma proteção mais intensa à liberdade de discurso público, o qual deve necessariamente se processar em ambiente livre, limitando-se o poder estatal com o escopo de permitir o alcance de todas as potencialidades individuais. Colhe-se da doutrina:
“A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar de uma sociedade monista que mutila os seres e engendra as ortodoxias opressivas. O pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos. Optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos”.[8]