Artigo Destaque dos editores

ADPF nº 54 à luz do biodireito: interrupção da gestação do feto anencéfalo

Exibindo página 2 de 4
19/04/2013 às 19:36
Leia nesta página:

3INÍCIO DA VIDA

A saúde tem o seu conceito contemplado por diversos enfoques, muito mais que simplesmente ausência de doença, abraçando aspectos sociais e emocionais. Seja no âmbito das Ciências da Saúde ou da Ciência Jurídica, o entendimento sobre saúde tem ganhado amplitude envolvendo também os aspectos inerentes ao bem-estar físico e psíquico da mulher quando se trata da interrupção da gravidez. Com este foco, a temática da reprodução humana teve sua primeira oportunidade no âmbito jurídico como direitos reprodutivos, conforme leciona Sérgio Pereira da Cunha:

Os direitos reprodutivos foram reconhecidos, pela primeira vez, como Direitos Humanos, na Conferência Internacional de Direitos Humanos, celebrada em Teerã, em 1968. (CUNHA, 2005, p.3).

Estes “direitos reprodutivos” foram conceituados posteriormente na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo, em 1994, conforme leciona Sérgio Pereira da Cunha sobre o tema: “a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo” (CUNHA, 2005, p.3).Este entendimento terminou por abrir um imenso leque de interpretações que dialoga até os dias atuais sobre as questões da interrupção da gravidez, sua segurança para a mulher, sua opção de escolha e principalmente a segurança jurídica que a decisão de realizar tal procedimento irá levar à consciência da sociedade.

A interrupção da gravidez de feto vivo chama para si a prática do aborto,descrita desde as civilizações mais antigas, com seus próprios conceitos e reflexos inerentes à sociedade da época. Para esse breve apanhado histórico, leciona a Doutora em Ciências Médicas, Ginecologista e Obstetra, Elaine Christine Dantas Moisés:

O aborto foi assunto tratado pela legislação babilônica como um delito contra a propriedade. Na civilização hebraica, só era punido o aborto ocasionado, ainda que involuntariamente, mediante violência, mas a partir da lei mosaica passou-se a considerar ilícita a interrupção da gravidez. Em Roma, nem as XII Tábuas nem as leis da República cuidaram do aborto, entendendo-se que o feto fazia parte do corpo da gestante, que dele podia dispor livremente. Portanto, no mundo greco-romano era prática comum. [...] Hipócrates, nos séculos V e IV antes da era cristã, no seu juramento, declarou não dar a nenhuma mulher uma substância abortiva. Já Aristóteles estimulava essa prática, desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma, para manter o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência. Platão também era favorável ao aborto em toda mulher que concebesse depois dos quarenta anos. Foi com o cristianismo que o aborto passou a ser reprimido e a Igreja Católica passou a condenar severamente os seus executores, sendo aplicada a pena de morte tanto à mulher como ao executor (MOISÉS, 2005, p.15).

Pelo texto da Doutora Moisés, pode-se observar diferentes gradações para a prática do aborto. Conclui-se que as legislações foram mudando com a sociedade e evoluindo com suas diversidades sobre o assunto a depender da cultura do lugar, alguns defendendo o aborto - como um direito da mulher para preservar sua saúde física e mental, outros, simplesmente, condenando severamente a sua prática e outros liberando de forma ampla a execução do aborto.Por este último, simpatizaa teoria alemã, que, conforme os ensinamentos de Elaine Christine Dantas Moisés: “baseava-se na ideia que se o feto não é uma pessoa, portanto não possuía direito e consequentemente não haveria delito no aborto”. (MOISÉS, 2005, p.15).Neste trecho de Moisés, o posicionamento da teoria alemã se assemelha com entendimentos modernos do atual ordenamento jurídico, os quais serão pontuados momento ulterior.

Neste pensar, o aborto sempre foi tema polêmico com diversas discussões e diferentes pontos de vista através da história, se fazendo importante dar vez a um breve estudo sobre o início da vida humana sob o ponto de vista da Ciência da Saúde e a partir de qual ponto do desenvolvimento do ser humano, antes do seu nascimento, a ciência jurídica brasileira considera e protege o início da vida, definindo, com base neste estudo, se a interrupção de uma gestação de um feto anencéfalo estaria ceifando a vida de um novo ser humano em detrimento da saúde psicológica da mulher, pontuando quais as suas prováveis consequências jurídicas no seio da sociedade brasileira.

Como já observado nos supracitados textos lecionados por Elaine Christine Dantas Moisés, o breve histórico que trouxe à baila ideias de como as sociedades mais relevantes pensou sobre a prática do aborto.Surgirame ainda surgem muitas indagações que questionam em que momento se considera a interrupção da gravidez de feto anencefálico como direito da mãe para preservar sua integridade física e moral.Estas indagações são oriundas de questões de maior proporção, como: Quando se inicia a vida? Até quando uma mãe tem o poder de decisão sobre o seu corpo? A partir de quando o produto da concepção passa a ter direitos na esfera jurídica e passa a ser considerado como indivíduo? Estas são as mais comuns no meio jurídico e tem amplo foco nas academias de Ciências Jurídicas na ministração das aulas teóricas por sua importância na vida prática do técnico jurídico, devido aos anseios da sociedade para o tema por sua pulverização no meio jurídico e na sociedade de uma forma geral.

Necessário se faz delimitar como se dá o início da vida do ser humano no âmbito da Ciência da Saúde, para compreender a partir de que ponto o sistema jurídico brasileiro entende ser o início da vida.

No prisma do campo biológico, o desenvolvimento do ser humano se inicia com a fecundação, momento em que o espermatozoide se funde com o óvulo gerando uma célula que representa um novo ser. No entanto, não basta essa fusão para garantir a geração de um novo ser humano, é necessário que ocorra a chamada nidação, que é a implantação do embrião intrauterino. Desta forma, começam os processos morfogenéticos[3], quando ocorre a diferenciação dos órgãos e tecidos iniciando-se assim a formação do novo ser pelas trocas metabólicas e o relacionamento entre a mãe e o embrião.

Com o seu regular desenvolvimento, o embrião inicia os batimentos cardíacos ao atingir entre três a quatro semanas. Já com seis semanas o embrião começa a apresentar características humanas e ao final da sétima semana praticamente todos os sistemas orgânicos já estão formados, apresentando respostas de reflexos a estímulos.

Passando pela oitava semana, começa o período fetal. É a fase em que a aparência humana já está expressa e é possível detectar ondas eletroencefalográficas e atividade no tronco cerebral, quando o feto apresenta determinada movimentação ativa, mesmo que ainda não percebida pela mãe. No decorrer da décima sétima e vigésima semanas é que a mãe passa a perceber a movimentação do feto.

No auge das vinte e seis semanas o feto tem todos os seus órgãos bem desenvolvidos, porém ainda não teria condições apropriadas de sobrevivência extrauterina, principalmente pela imaturidade do sistema respiratório.

Já com vinte e oito semanas, cerca sete meses, apresenta um padrão de sono e vigília e já é possível sobreviver fora do útero apesar do seu sistema respiratório ainda não apresentar total maturação, motivo pelo qual os bebês que nascem prematuramente permanecem sob vigilância e fazem uso de medicamentos e algumas vezes, ventilação artificial para finalizar o completo amadurecimento do sistema respiratório.

Conclui-se, portanto, que na seara biológica a vida humana se inicia após a fecundação, sendo suas fases seguintes parte do processo natural do seu desenvolvimento, como resumea médica, Mestre e Doutora em Tocoginecologia[4], Elaine Christine Dantas Moisés:

A vida humana, biologicamente, inicia-se após a fecundação e as alterações que ocorrem entre a implantação, um embrião de seis semanas, um feto de seis meses, um bebê de uma semana ou um adulto, são meros estados de desenvolvimento e maturação, como ficou definido durante o Primeiro Simpósio Internacional sobre Aborto, realizado nos Estados Unidos da América.(MOISÉS, 2005, p.13).

Neste norte, aseara jurídicaé tendenciosa a concordar que o início da vida de um ser humano se faz pelo mesmo entendimento do campo biológico. O ensinamento da civilista brasileira Maria Helena Diniz, vem para elucidar a questão:

A ontogenia humana, isto é, o aparecimento de um novo ser humano, ocorre com a fusão dos gametas feminino e masculino, dando origem ao zigoto, com um código genético distinto do óvulo e do espermatozoide. A fetologia[5] e as modernas técnicas de medicina comprovam que a vida inicia-se no ato da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, dentro ou fora do útero. (DINIZ, M.H., 2008, p.25).

Com este trecho, Diniz sintetiza como se dá o ponto de partida do início da vida, apresentando a opção natural e artificial de fecundação dos gametas. No contínuo de suas lições, permeia o seu entendimento no mesmo sentido de Moisés, compartilhando que as fases seguintes à fecundação fazem parte do desenvolvimento humano enquanto ser vivo. Continua Diniz:

A partir daí tudo é transformação morfológico-temporal, que passará pelo nascimento e alcançará a morte, sem que haja qualquer alteração do código genético, que é singular, tornando a vida humana irrepetível e, com isso, cada ser humano único. (DINIZ, M.H., 2008, p.25).

Para levar credibilidade a sua síntese do ponto inicial do início da vida e desenvolvimento do ser humano, Diniz, imprime em sua obra, o pensamento de autoridade mundialdo campo biológico. Conforme, Diniz:

Jérôme Lejeune[6], geneticista francês e autoridade mundial em biologia genética, asseverou: “Não quero repetir o óbviomas, na verdade, a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com os 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o novo ser humano já estão presentes. A fecundação é o marco do início da vida. Daí para frente, qualquer método artificial para destruí-la é um assassinato”. (DINIZ, M.H., 2008, p.25).  

Com esta passagem, a doutrinadora de nada acrescentou sobre o seu entendimento, sendo, de fato, uma ratificação dos seus conceitos sobre o início da vida e seu desenvolvimento.

Rumo ao Direito Penal Brasileiro, o penalista Luis Regis Prado também compartilha que o feto é desenvolvimento do ser humano, na forma que: “Feto, é pelo menos uma pessoa em formação.” (PRADO, 1997, p.501).

No mesmo pensar, o também penalista Cezar Roberto Bitencourt, quando conceitua o bem jurídico tutelado no crime de aborto, ressaltando que: “O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação”. (BITENCOURT, 2009, p.344).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Concorda, também, outro doutrinador do Direito Penal, Damásio Evangelista de Jesus, quando trata do tema. Conforme o penalista:

A proteção penal ocorre desde a fase em que as células germinais se fundem, com a resultante constituição do ovo, até aquele em que se inicia o processo do parto. Dessa forma, embora fale comumente que o sujeito passivo é o feto, o Código não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto. É necessário, porém, que o objeto material seja produto de desenvolvimento fisiológico normal.(JESUS, 2005, p.122).

Ainda sob o manto da seara penal, Julio Fabbrini Mirabete leciona sobre o tema com intimidade nas palavras, aproximando seu texto com os conceitos da Ciência Biológica:

Tutela-se [...] a vida humana em formação, a chamada vida intra-uterina, uma vez que desde a concepção (fecundação do óvulo) existe um ser em germe, que cresce, se aperfeiçoa, assimila substâncias, tem metabolismo orgânico exclusivo e, ao menos nos últimos meses da gravidez, se movimenta e revela uma atividade cardíaca, executando funções típicas de vida. (MIRABETE, 2006, p.62).

Conclui-se através dos fragmentos explanados, que há concordância dos entendimentos entre a ciência médica e jurídica nas áreas civil e penal. É unânime que o início da vida se inicia com a fecundação, sendo natural ou artificial, perpassando por todo um desenvolvimento estrutural de sobrevivência, considerando-se vida humana desde o seu início nuclear.

Rumando para as lições de doutrinadores constitucionalistas para captar o que advém da matéria constitucional sobre o assunto, a fim de observar a consonância das matérias e ratificar a unicidade do Direito no tratamento da questão, José Afonso da Silva, considerado o pai do Direito Constitucional Brasileiro, em sua obra Curso de Direito Constitucional Positivo, ultrapassa os limites traçados pela Biologia para definir a vida.Sob o ponto de vista do doutrinador a vida não se resume a um conjunto de células orgânicas com funções de desenvolvimento gradativo que começará de uma simples união de células a vários sistemas de funções que formam o ser humano, seu espaço ultrapassa esta barreira. Além do organismo funcional biológico, deve lhe ser atribuído elementos físicos, psíquicos e espirituais.O estudo sobre estes novos elementos atribuídos à pessoa humana não é exaustivo em sua obra, porém, possível apreciar que este novo conjunto de caracteres experimentado para definir a vida humana, demonstra-se mais nutrido e complexo em relação as definições anteriormente delineadas, tornando palpável o elemento da vida atribuído ao ser humanoenquantoparte integrante de uma sociedade de alta complexidade. Esse acréscimo de características elencados por José Afonso da Silva pode ser oriundo da difícil tarefa de definir em que ponto inicia a vida humana, como explanado em sua obra, no capítulo que trata do Direito à Vida. Preleciona, Silva:

Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o grave risco de ingressar no campo da metafísica supra-real, que não nos levará a nada.(SILVA, J.A., 2011, p.197).

No seu observar, diante da desnutrida definição de vida como um simples organismo com funções de desenvolvimento, o doutrinador arrisca lançar de seus novos elementos,a fim de ingressar aquele ser vivo - antes delimitado a um conjunto biológico com suas funções que evolui gradativamente - no meio social como ser humano integral; completo não só por suas funções orgânicas e vitais, mas por suas funções e desenvolvimento orgânicos, intelectuale espiritual, fazendo do ser humano uma unidade de sistemas materiais e imateriais que faz parte de um conjunto de semelhantes que se integram e interagem entre si.

Na obra, o doutrinador não aprofunda seus estudos sobre os novos elementos atribuídos à vida humana.No entanto, à baila do exposto, já é possível compreender e visualizar o ser humano como um ser que demanda sistematização para se organizar e viver como um conjunto, atribuindo-lhe deveres, obrigações e direitos. Neste ponto, trabalha os seus estudos aproximando a vida orgânica do ser humano ao direito à vida protegido na Constituição Federal de 1988, como explana o doutrinador: “A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º., caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais).” (SILVA, J.A., 2011, p.198). Com esta revelação primeira, José Afonso da Silva ousa e inova o mundo jurídico, levando o entendimento sobre a vida humana a ultrapassar os seus próprios limites, trazendo para o corpo legal novas interpretações sem alterar uma única letra da lei. A importância da sua introdução deverá repercutir no mundo fático-social amenizando, senão dirimindo, conflitos antes insuperáveis.

Mantendo o curso da discussão entre doutrinadores constitucionalistas, nem todos arriscam avançar em seus conceitos como fez José Afonso da Silvaao explanar sobre os elementos materiais e imateriais. O constitucionalista Alexandre de Moraes, em sua obra Direito Constitucional, limita-se a tratar da importância do direito à vida conforme a literalidade do corpo textual da Constituição, deixando a definição de vida para os profissionais da Ciência da Saúde.Conformepreleciona, Moraes:

A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão-somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico da vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto. Conforme adverte o biólogo Botella Lluziá, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina.  (MORAES, 2005, p.30).

Neste trecho, Moraes define que o Estado, através de sua Constituição, deve proteger a vida como um direito do ser humano e sua definição de vida não ultrapassa o plano biológico. O doutrinador não pretende retirar do profissional de saúde a sua competência técnica para definir quando se dá a vida, apenas levando parte desta responsabilidade para o técnico jurídico no âmbito o qual lhe compete, porém sem ousar ultrapassar o limite da materialidade, como o fez, José Afonso da Silva.

Outro olhar na seara constitucional traz nova definição que complementa de forma tímida a conceituação meramente biológica, mas ainda sem alcançar a amplitude trazida por José Afonso da Silva quando trata de seus elementos materiais e imateriais. Como ensina Ricardo Cunha Chimenti, em sua obra Curso de Direito Constitucional:

O direito à vida é o direito de não ter interrompido o processo vital, senão pela morte espontânea e inevitável. É considerado o direito fundamental mais importante, condição para o exercício dos demais direitos. Observe que, sem vida, não há de se falar em liberdade, propriedade, segurança etc. Como dizia Impallomeni, todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida.O direito à vida abrange o direito de não ser morto (direito de não ser privado da vida de maneira artificial; direito de continuar vivo), o direito a condições mínimas de sobrevivência e o direito a tratamento digno por parte do Estado. (CHIMENTI, 2006, p.60).

Como se pode concluir, Chimenti(2006) consegue ultrapassar o plano biológico da definição de vida. O diâmetro da vida, traçado pelo doutrinador, agora também alcança o compromisso de segurança do Estado que atrai a dignidade para uma boa convivência em sociedade. Ainda sob o seu olhar, o percurso da vida deve ser protegida lhe garantindo meios de proporcionar um ambiente digno, declinando apenas por seu processo natural, sem interferências de outra ordem.Desta forma, uma vez que a vida humana se torna objeto de direito numa sociedade de um Estado Democrático de Direito, amplifica-se novamente sua conceituação, demonstrando que o desenvolvimento da vida humana não se dá somente por suas funções celulares quando da sua formação de vida, mas que sua maturação poderá ocorrer por estágios, sendo um deles o convívio em sociedade.

Num olhar panorâmico para a definição do início da vida do ser humano e seu processo de desenvolvimento numa sociedade de alta complexidade, enxerga-se que a definição trazida por José Afonso da Silva(2011) abrange todos os requisitos necessários reclamados por uma sociedade que se desenvolve além do seu ordenamento jurídico. Este manto de elementos materiais e imateriais elencados pelo doutrinador revela a base suficiente sobre o qual se deve assentar o rol regulatório da sociedade, tendo por fim levar à sua lei maior entendimento amplo e completo que deverá ser disseminado para as leis de plano inferior, satisfazendo com plenitude os clamores sociaisdo qual fará emergir do seu comportamento, organização, satisfação e felicidade do seu conjunto.

Para trazer substância a este entendimento, José Afonso da Silva(2011), ao elencar o conteúdo do conceito de vida, revela todos os elementos necessários para dar concretude e ritmo ao regulamento jurídico ante a sua sociedade.Conforme o doutrinador:

No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência (SILVA, J.A., 2011, p.198).

Nesse condão, observa-se que pelo simples fato do desenvolvimento advindo da união celular, o ser humano já passa a existir para a sociedade, interage ainda que passivamente com todo o seu conjunto de semelhantes, que por força do ordenamento jurídico, lhe atribui direitos de integridade e de proteção à sua existência, para quando concluído seu estágio inicial de maturação (com o nascimento), iniciar seu novo estágio de desenvolvimento e interagir ativamente com o meio.

Este mesmo entendimento emerge dos textos de Maria Helena Diniz, na oportunidade da sua obra: O estado atual do Biodireito. À luz de seus escritos:

A vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou direitos correlatos decorre de um dever absoluto erga omnes, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer. Ainda que não houvesse tutela constitucional ao direito à vida, que, por ser decorrente de norma de direito natural, é deduzida da natureza do ser humano, legitimaria aquela imposição erga omnes, porque o direito natural é o fundamento do dever-ser, ou melhor, do direito positivo (DINIZ, M.H., 2008, p.20).

Neste trecho, Diniz revela que não importa todo um sistema jurídico se não fosse pela existência natural do ser humano. Sem o indivíduo, não existe o regramento; porém, sem o regramento, existe o indivíduo. Em suma, toda a sociedade tem um compromisso com o ser em desenvolvimento, e tal obrigação não é justificada pelo ordenamento legal, mas pelo fato natural da existência do ser humano.

José Afonso da Silva (2011)sintetizauma abordagem mais ampla do relacionamento da sociedade com o ser humano durante o seu desenvolvimento até o seu nascer. O feto é ser humano, afirma o doutrinador sob os ensinamentos de Jacques Robert, e como ser humano lhe são assegurados direitos para manter sua existência. O princípio da moral médica é uma ponte de aproximação entre as Ciências da Saúde e Jurídicas que fundamentará o dever-ser desta parcela da sociedade. Fica a moral médica embebida da ética, não só profissional, mas também moral.Ética oriunda da consciência do profissional enquanto ser humano para com outro ser humano. Conforme ensina, José Afonso da Silva:

No dizer de Jacques Robert: “O respeito à vida humana é a um tempo umas das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não-aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori[7], a de outrem e, até o presente, o feto é considerado como um ser humano”. (SILVA, J.A., 2011, p. 198).

Neste trecho, José Afonso da Silva, pelos dizeres de Jacques Robert, chama a atenção do leitor para o respeito à vida humana. Preciosa é a vida humana, e para garanti-la o caminho correto é o respeito -obrigação natural e comum a todos os indivíduos da sociedade. Frustrada esta diligência natural, se manifesta o Estado através do seu regramento a fim de fazer prevalecer o zelo pela vida.

O Direito, como matéria de ampla discussão, permite em toda a sua extensão o embate de ideais entre os seus pensadores, estudiosos e aplicadores técnicos. Como não poderia deixar de ser, mais uma vez, José Afonso da Silva, consegue atribuir mais uma ampliação sobre o conceito da vida do ser humano quandotraz em seus textos o conceito de direito à existência:

Consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital.  SILVA, J.A. (2011, p.201)

Com este entendimento, o doutrinador fecha o cerco para qualquer interrupção da vida do ser humano em qualquer estágio que esteja. O fim da vida deve ser “pela morte espontânea e inevitável”, leciona. Uma vez iniciado o processo que dá a vida ao ser humano, este, em nenhuma hipótese poderá ser interrompido pela vontade humana.

Pela necessidade de defender direito tão primaz que é a vida, José Afonso da Silva, explana: “De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos” (SILVA, J.A., 2011, p.201).

Pela amplitude do Direito, vários são os olhares que recaem sobre si para definirem e caracterizarem os institutos da vida em comum que devem ser elencados e protegidos na seara jurídica. Por isso, existirão conceitos de maior ou menor dimensão conforme o entendimento de cada doutrinador. Desta forma, não menos importante, porém numa explanação sucinta, Vicente Paulo consegue sintetizar toda a essência trazida por José Afonso da Silva, tornando-se um fiel seguidor de seus conceitos. Em seus textos, Paulo elucida:

A Constituição protege a vida de forma geral, não só a extrauterina como também a intrauterina. Corolário da proteção que o ordenamento jurídico brasileiro concede à vida intrauterina é a proibição da prática do aborto, somente permitindo o aborto espontâneo como meio de salvar a vida da gestante, ou o aborto humanitário, no caso de gravidez resultante de estupro. Não se resume o direito à vida, entretanto, ao mero direito à sobrevivência física. Lembrando que o Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, resulta claro que o direito fundamental em apreço abrange o direito a uma existência digna, tanto sob o aspecto espiritual quanto material. Portanto, o direito individual fundamental à vida possui duplo aspecto: sob o prisma biológico traduz o direito à integridade física e psíquica [...]; em sentido mais amplo, significa o direito a condições materiais e espirituais mínimas necessárias a uma existência condigna à natureza humana. (PAULO, 2010, p.114).

Vê-se que Paulo segue fielmente as lições de José Afonso da Silva, compartilhando da existência dos elementos materiais e imateriais que devem ser intrínsecos à vida desde o seu início, atribuindo àquele ser, vida humana. No mesmo sentido, também concorda o doutrinador Dirley da Cunha Júnior, em sua obra Curso de Direito Constitucional, o autor traz em suas palavras os elementos materiais e imateriais citados por José Afonso da Silva, conforme Júnior:

O direito à vida é o direito legítimo de defender a própria existência e de existir com dignidade, a salva de qualquer violação, tortura ou tratamento desumano ou degradante. Envolve o direito à preservação dos atributos físico-psíquicos (elementos materiais) e espirituais-morais (elementos imateriais) da pessoa humana, sendo, por isso mesmo, o mais fundamental de todos os direitos, condição sine qua non para o exercício dos demais. O direito à vida é garantido pela Constituição contra qualquer tipo de interrupção artificial do processo natural da vida humana, ainda que seja para pôr termo a um sofrimento e agonia (eutanásia), salvo quando justificado, como nas hipóteses do aborto necessário para salvar a vida da mãe ou em caso de gravidez decorrente de crime de estupro. (JÚNIOR, 2008, p.657).

Júnior, assim como José Afonso da Silva e Paulo, segue o raciocínio que os elementos materiais e imateriais devem seguir a pessoa humana desde o seu início. Pode-se concluir, mediante os textos dos doutrinadores defensores destes elementos, que a pessoa humana se dá desde à sua formação inicial, sendo-lhe garantido a obrigação da sociedade de não interferir em sua formação e desenvolvimento, sendo o respeito à vida,a ferramenta que os indivíduos devem se utilizar para cumprir tal obrigação.

Num observar panorâmico das lições explanadas neste trabalho monográfico, conclui-se que a simples união de células com suas funções de desenvolvimento contínuo determinará um ser humano. Por conseguinte, caminha-se para uma ampliação visionária do ordenamento jurídico sob o manto da moral e da ética, quando embutido de elementos materiais e imateriais, sendo incorporado no Direito uma nova disciplina que traz em sua contextualização as Ciências da Saúde e Jurídicas. Esta atração promoverá para o mundo jurídico novos entendimentos,abrindo um leque de maior diâmetro para ventilar número maior de casos concretos e muitos ainda não elencados nos textos das leis. Tão verdade que é, e também urgente esta reforma pelo menos interpretativa – se não literal, que Maria Helena Diniz “biologiza” e “medicaliza” o Direito. Conforme ensinamento de Diniz:

Faz-se necessária uma “biologização” ou “medicalização” da lei, pois não há como desvincular as “ciências da vida” do direito. Assim, a bioética e o Biodireito caminham pari passu[8] na difícil tarefa de separa o joio do trigo, na colheita dos frutos plantados pela engenharia genéticas, pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até onde as “ciências da vida” poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana. (DINIZ, M.H., 2008, p.8).

Maria Helena Diniz quer fazer o leitor entender não só da urgência da atualização do Direito com as matérias das Ciências da Saúde, mas também que esta atração deve ser tão próxima que as duas áreas tornar-se-ão única.Desta forma surge o Biodireito, que vem para aproximar estas duas grandes áreas em prol do interesse comum da sociedade, fazendo emergir para o direito novos entendimentos dos fatos sociais os quais retornaramao mundo fático pelo regramento jurídico.

A interrupção da gestação de feto anencéfalo como objeto do presente trabalho monográfico é um destes novos entendimentos advindos do seio da sociedade, que veio a despontar no mundo jurídico como uma pergunta sem resposta devido acarência de legislação positiva. O Biodireito, matéria novata no meio jurídico, ainda é enfrentada como caloura pelos estudiosos e pelo próprio Estado, levando a um acanhando da ponte que faz ligar os dois mundos (Saúde e Jurídico) para a resolução dos problemas sociais.

Um breve estudo acerca da anencefalia é mais um dos elos que integra o entendimento sobre a interrupção da gravidez do feto anencéfalo.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Santos

Graduando em Direito em Salvador (BA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS,. ADPF nº 54 à luz do biodireito: interrupção da gestação do feto anencéfalo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3579, 19 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24228. Acesso em: 24 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos