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ADPF nº 54 à luz do biodireito: interrupção da gestação do feto anencéfalo

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19/04/2013 às 19:36
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4ANENCEFALIA

Parcela da doutrina jurídica em parceria com as Ciências da Saúde tem entendido a necessidade da interrupção da gestação de feto anencefálico pela sua inviabilidade de nascimento com vida ou nascendo com vida, sua certeza de não continuar vivo mesmo que haja qualquer tipo de intervenção médica atualmente disponível.

O médico José Hib, em sua obra Embriologia médica, traz a definição e características da anencefalia. Conforme sua obra:

São malformações ocasionadas pelo fechamento defeituoso do tubo neural e dos tecidos mesodérmicos que o rodeiam, em particular a abóbada craniana e a coluna vertebral. De acordo com a sua localização, sua extensão e as estruturas afetadas, ocorre a anencefalia. A anencefalia ou falta de cérebro é acompanhada de acrania (ausência de abóbada craniana) e é devida ao não-fechamento da parte cefálica do tubo neural. Esta malformação é incompatível com a vida pós-natal e durante a gestação ocasiona a formação de poliidrâmnio, isto é, acúmulo excessivo de líquido na cavidade amniótica. O excesso de líquido se deve ao fato de que, ao não possuir cérebro, o feto carece dos centros nervosos da deglutição e não ingere o líquido amniótico. (HIB, 2008, p.228).

Conforme o texto, evidente a inviabilidade da vida de qualquer ser humano diante do quadro apresentado pela anencefalia. A anencefalia tem lugar certo em todos os livros da área de saúde que trata de ginecologia, obstetrícia e áreas correlatas. A consequência de morte do ser é certa, sendo unânime o entendimento entre os estudiosos do assunto.

Na obra Enfermagem Obstétrica, traduzida para o Brasil, mais uma definição da anencefalia e sua consequência inequívoca de morte para o feto: “A anencefalia é uma condição na qual considerável parte dos hemisférios cerebrais e do crânio e do couro cabeludo que os recobrem está faltando. É incompatível com a vida.” (ZIEGEL, 2011, p.656).

Decerto que as obras e escritos das áreas da saúde são unânimes quanto a anencefalia e sua inevitável consequência morte. É fato, comprovado cientificamente pelos estudos e procedimentos disponíveis atualmente pelas Ciências da Saúde, como um mais um é igual a dois, que a morte é inevitável para o feto acometido da anencefalia.

A anencefalia é uma anomalia genética de cunho biológico e funcional em que todos os especialistas concordam com sua definição e consequência. Desta forma, importante levantar o breve entendimento sobre o tema na seara jurídica a fim de confrontar os entendimentos e observar o consenso da matéria. Maria Helena Diniz, em sua renomada obra O estado atual do Biodireito, explana longos capítulos sobre os direitos fundamentais, confrontando-os com as possibilidades trazidas pelos avanços tecnológicos das Ciências da Saúde para o campo jurídico, analisando as possibilidades de tutelarem em norma jurídica os novos procedimentos, levando o regramento jurisdicional a uma inevitável atualização e adequação aos casos concretos, como poderia ser o caso da interrupção da gestação do feto anencefálico. Conforme a doutrinadora, em sua referida obra, leciona como ocorre a anencefalia:

Como ocorre a anencefalia:O tubo neural, que dá origem ao cérebro, começa a se formar a partir dos 15 primeiros dias de gestação. A parte anterior do tubo aumenta de tamanho para formar o cérebro. A parte final evolui para a medula espinhal. Cada um desses elementos se desenvolve independentemente, de acordo com a programação genética. Por volta da quarta semana de gravidez ocorre o fechamento do tubo neural. Se esse processo, por vários motivos, não transcorrer de forma adequada, o feto pode ficar anencefálico, ou seja, sem o cérebro e sem a calota craniana. Quando há um defeito muito grave no desenvolvimento, pode haver um aborto natural. A anencefalia é diagnosticada entre o 3º e o 4º mês de gravidez. (DINIZ, M.H., 2008, p.52).

Maria Helena Dinizabriu o assunto para a população jurídica. Neste norte, o universo jurídico tende a concordar com as Ciências da Saúde e com a deformidade irreversível – até os dias atuais – que é a anencefalia.

Os estudos e ferramentas atualmente disponíveis na seara médica é que devem tratar com propriedade do assunto. A doutrinadora simplesmente levou aos seus textos entendimentos já consolidado pela ciência médica após muitos erros e acertos pelos quais permeiam suas atividades. A figura 1 dá uma ideia próxima sobre o conceito e ocorrência da anencefalia e como fica o feto anencefálico.

Figura 1: O bebê normal tem cérebro, crânio, cerebelo e tronco cerebral. O bebê anencéfalo tem tronco cerebral.  Números: 1 em cada 1.600 crianças tem anencefalia, destas 40% a 60% nascem vivos e 8% sobrevivem mais de uma semana. 1% sobrevive de 1 a 3 meses. Fonte: (REZENDE, 1998).

Ao observar a figura 1, mesmo um leigo no assunto poderia concluir da improvável sobrevivência de um ser humano sem o seu cérebro. Apesar da taxa de nascimento com vida poder ultrapassar a metade, os números traduzem o limite de tempo máximo da vida dos fetos anencefálicos.

De grande importância o período ideal para o diagnóstico da anencefalia. Na seara jurídica, Maria Helena Diniz, em seu trecho supracitado, ensina que o evento deve ser investigado entre o 3º de 4º mês de gravidez. Ensinamento, este, trazido das lições dos textos das Ciências da Saúde, como a obra do Professor titular da disciplina Obstetrícia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Jorge de Rezende, que ensina quando a anencefalia pode ser diagnosticada. Como preleciona o Professor:

A anencefalia, de resto, pode ser suspeitada, pela ultrassonografia, desde 15 semanas de gravidez, mas a época preferente está entre 16-18 semanas quando será rastreada em todos os casos. (REZENDE, 1998, p. 1004).

Decerto, foi com a evolução da tecnologia que as Ciências da Saúde chegaram ao ponto de detectar a anomalia antes mesmo do nascimento do ser humano.  A ultrassonografia realizada nos pré-natais é capaz de detectar a anencefalia, no entanto, aconselha-se a sua feitura em um centro especializado, conforme leciona Lippincott Williams:

A anencefalia pode ser detectada com ultra-sonografia em praticamente 100% dos casos. Além disso, a probabilidade de um defeito do tubo neural aberto associado a um valor anormal do rastreamento sérico é reduzida em 95% ou mais se a ultra-sonografia for realizada em um centro especializado. (WILLIAMS, 2000, p.799).

Williams levanta a importância da realização da ultrassonografia num centro especializado para não confundir uma provável anencefalia com valores errôneos que poderão ocorrer no uso do equipamento. O autor suscita o sucesso da ultrassonografia com fins de detectar a anencefalia quando realizada nestas instituições.

Apesar da certeza da morte antes mesmo de nascer ou imediatamente após o nascimento do ser humano com anencefalia, existe registro de caso de sobrevivência por meses. É o que explana em seus textos Lippincott Williams, em sua obra Obstetrícia e Ginecologia:

A anencefalia é caracterizada por ausência do crânio juntamente com os hemisférios cerebrais, que são rudimentares ou estão ausentes. [...] As apresentações pélvica e de face são comuns. O distúrbio é letal, embora tenha sido descrita sobrevivência por um período de meses. (WILLIAMS, 2000, p.798).

Neste trecho o autor dá a certeza que a anencefalia é letal, muito embora mencione a ocorrência de sobrevivência por meses depois de nascido o feto, não pretende estimular falsas esperanças para aqueles genitores que venham a gerar um feto anencefálico. O autor não foi preciso ao explanar sobre o período de meses que sobreviveu o feto anencefálico após o seu nascimento, no entanto pode ocorrer em alguns casos de feto anencefálico a duração estendida da gravidez em que o feto permanece vivo durante toda a gestação. Ainda conforme os ensinamentos de Williams:

A duração de gestações anencefálicas [...] pode ser significativamente longa. No caso bem legitimado de Higgins (1954), a duração da gravidez foi de 1 ano e 24 dias após o último período menstrual, e foram percebidos movimentos fetais até o momento do parto. (WILLIAMS, 2000, p.798).

O caso em tela deixou a comunidade médica da época perplexa e parece colidir com as definições trazidas sobre a anencefalia que enfatizam a indubitável sobrevivência do feto mesmo antes do seu nascimento, principalmente pela época em que aconteceu (1954), momento em que a tecnologia médica não era tão desenvolvida quanto atualmente, particularmente porque o primeiro uso da ultrassonografia aplicadaàobstetrícia se deu em 1958[9].Entretanto, apesar da ausência do exame ultrassonográfico da época, outros métodos primitivos à ultrassonografia poderiam detectar os movimentos do feto antes de seu nascimento, como é o caso do estetoscópio de Pinard (usado para ouvir os batimentos cardíacos do feto) ou mesmo a simples palpação (exame de qualquer parte do corpo por meio da aplicação externa da mão).

A fotografia 1mostra um caso real de anencefalia:

Fotografia 1: Bebê anencéfalo. Ausência da calota craniana e exposição do cérebro primitivo. Fonte: (WILLIAMS, 2000).

Diante da fotografia 1 fica fácil a observação da ausência da calota craniana e formação primitiva do cérebro, trazendo à realidade dos olhos todos os conceitos descritos anteriormente, chegando-se a conclusão que desta forma, sem nenhuma intervenção médica capaz de reverter ou até reiterar a formação completa, fica impossível a sobrevivência do feto anencefálico.

A causa da anencefalia já é conhecida. A tecnologiautilizada pela Ciência Médica foi extremamente importante para buscar a sua origem e tende a se debruçar aos novos desenvolvimentos para uma futura possibilidade de evitar totalmente a anomalia ou até mesmo a sua reversão. Quanto às causas da anencefalia, preleciona Maria Helena Diniz:

Causas da anencefalia: A anencefalia pode ser causada por uma mutação genética, em que o gene não se comporta de forma correta. Mas há ainda outros fatores, como a falta de ácido fólico (uma vitamina do complexo B) no organismo. Estão no grupo de risco mães com diabetes mellitus e que trabalham com agrotóxicos. (DINIZ, M.H., 2008, p.53).

Pelo trecho da doutrinadora, chega-se ao entendimento que a deformidade da anencefalia é puramente biológica. Não há fatores externos que possam dar causa a anomalia. Descobriu-se que além do desenvolvimento incorreto em determinado momento da formação do feto, a carência do ácido fólico seria outro fator que poderia gerar a má formação do feto resultando na anencefalia. Lógico o entendimento que suprimindo a carência do ácido fólico reduzir-se-á a ocorrência da anencefalia. Neste ponto, ainda sob os ensinamentos de Diniz sobre como evitar a anomalia:

Como evitar:Os médicos indicam o consumo de ácido fólico um mês antes da gravidez e durante o primeiro trimestre de gestação. O ideal é que a mulher consuma 400 microgramas por dia de ácido fólico. A vitamina pode ser encontrada em comprimidos ou em vegetais de folhas verdes, como espinafre e brócolis. (DINIZ, M.H., 2008, p.53).

Percebe-se que a importância do suprimento do ácido fólicose dá pela sua ação. Conforme Williams, o seu uso pode reduzir a recorrência de defeitos no tubo neural e no caso de mulheres com um lactante anterior que foi afetado pela anomalia, a dose recomendada do suplemento é de 4 miligramas por dia. (WILLIAMS, 2000).Até o ponto em que se chegou o desenvolvimento das Ciências da Saúde esta é a única forma de evitar ou pelo menos diminuir as chances de gerar um feto anencefálico. O tema tem gerado grande repercussão na seara jurídica devido ao avanço tecnológico da área médica que vem antecipando a detecção da anomalia, o que tem levado a sociedade a confrontar com a ordem jurídica a possibilidade de interromper a gestação nestes casos.


5ADPF Nº 54

Não há que falar em interrupção da gestação do feto anencéfalo sem traçar algumas linhas sobre o aborto, tema correlato, controverso e refletido na seara jurídica brasileira de forma impactante. A necessidade se faz pelo termo aborto frequentemente ser utilizado como sinônimo da interrupção da gravidez por sua estreita aproximação conceitual, porém diversa a sua aplicação.

A etimologia da palavra aborto vem do latim (abortius)[10], passando a ideia de privação do nascimento. Pode ser definido como interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção, conforme leciona Suzanne C. Smeltzer, Enfermeira Professorae Pesquisadora na Universidade Thomas Jefferson na Pensilvânia – Filadélfia nos Estados Unidos da América, em sua obra Enfermagem Médico-Cirúrgica traduzida no Brasil:

A interrupção da gravidez ou expulsão do produto da concepção antes que o feto seja viável é chamada de aborto. O feto é, em geral, considerado como viável a partir do quinto ou do sexto mês de gestação. (SMELTZER, 1999, p.195)

Como já delineado brevemente em trechos anteriores, a interrupção da gestação tem sua história na sociedade, não sendo necessário para o presente estudo detalhamentos, interessando, tão somente, a definição técnica definida pelas Ciências da Saúde para consequente definição no meio jurídico.

A conceituação do aborto atrai o termo abortamento, termos usados como sinônimos no meio jurídico que merece breve distinção.Assim, à luz dos ensinamentos de Álvaro da Cunha Bastos, Médico Pós-Doutorado e Professor de Ginecologia da Universidadede São Paulo, em sua obra Noções de Ginecologia, explana os conceitos de aborto e abortamento. Conforme o Professor Bastos:  

Abortamento é interrupção da gravidez antes de completadas 20 semanas de sua evolução, ou quando o produto conceptual eliminado pesar 500g ou menos. [...] Aborto é o produto eliminado. (BASTOS, 1991, p.326).

Diante destes ensinamentosde Smeltzer edo Professor Bastos, distinguiu-se o aborto do abortamento que norteia à conclusão que oabortamentose dá pela prática de ato ou ocorrência de fato que deu causa a interrupção da gravidez, podendo ser o uso de medicamentos, a prática cirúrgica por médico, o choque mecânico devido algum impacto recebido pela gestante, distúrbios emocionais da gestante causados por fatores externos ou internos à sua pessoa ou defeito biológico do próprio organismo da mulher eo aborto secaracteriza pelo produto eliminado proveniente do abortamento, que este poderá ser a formação inicial embrionária ou mesmo o feto em formação, dependendo do tempo da gestação quando ocorrido o abortamento. Dos conceitos, também se extrai que a viabilidade do feto para vida extrauterina se dá a partir do quinto mês de gestação e a sua inviabilidade até o final do quarto mês, ou quando o feto pesar até 500g.

Diante deste discernimento,fica fácil identificar que os doutrinadores jurídicos comumente se utilizam do termo aborto a fim de sinalizar que houve o abortamento. Para tanto,necessário observar os estudos do penalista Damásio Evangelista de Jesus:

Aborto é a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto (produção da concepção). [...] No sentido etimológico, aborto quer dizer privação de nascimento. Advém de ab, que significa privação, e ortus, nascimento. (JESUS, 2008, p.119).

No mesmo sentido, segue o penalista Luis Regis Prado, sobre a conceituação do aborto: “aborto é a solução de continuidade, artificial ou dolosamente provocada, do curso fisiológico da vida intra-uterina.” (PRADO, 1997, p.501).Deste ponto, observa-se a semelhança no emprego de palavras entre as definições de Damásio Evangelista de Jesus e Álvaro da Cunha Bastos – em seu trecho logo acima, transparecendo a similitude dos conceitos entre a área médica e jurídica, levando a concluir que o termo aborto na seara jurídica de fato é utilizado para se referir ao abortamento, afinal o rigor da lei recai sobre a prática do ato que levou a interrupção da gravidez.

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Partindo para os trâmites da matéria constitucional, José Afonso da Silva não traz uma definição sobre o tema. O aborto é tratado por ele como um tema controvertido que a Constituição não disciplinou ficando a cargo dos doutrinadores sua elucubração, conforme explana no capítulo Do Direito à Vida e do Direito à Privacidade. Neste sentido, ressalta que o aborto:

É outro tema controvertido, que a Constituição não enfrentou diretamente. Houve três tendências no seio da Constituinte. Uma queria assegurar o direito à vida, desde a concepção, o que importava em proibir o aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com vida, sendo que a vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o que possibilitava o aborto. A terceira entendia que a Constituição não deveria tomar partido na disputa, nem vedando nem admitindo o aborto. (SILVA, J.A., 2011, p.206).

Esta indisposição constitucional terminou por trazer para o mundo jurídico a questão primaz sobre o início da vida,que impulsiona as diversas discussões sobre o polêmico tema da interrupção da gravidez, seja ela em qualquer situação ou estágio temporal.

Diante das conceituações traçadas acima nos âmbitos da saúde e jurídico, necessário um breve escrito sobre os tipos de aborto caracterizados pela doutrinária jurídica, que funcionaram comopalco de muitas disputas judiciais a fim de pleitear autorização judicial para a interrupção de fetos acometidos da anencefalia. Nestes traços, o doutrinador Ricardo Cunha Chimenti faz emergir de seus textos os tipos de aborto terapêutico, sentimental e eugênico.Conforme leciona:

Aborto necessário ou terapêutico, consiste na interrupção da gravidez realizada pelo médico quando não há outro modo de salvar a vida da gestante; aborto sentimental, humanitário ou ético, o aborto realizado pelo médico nos casos de gravidez resultante de estupro, após expresso consentimento da gestante ou de seu representante legal; o aborto eugênico, eugenésico ou piedoso consiste na interrupção da gravidez quando o feto apresenta enfermidade ou deformidade incurável. (CHIMENTI, 2006, p.61).

Chimenti traz em seu texto um elenco dos três motivos mais comuns que justificavam o aborto nos moldes sociais que se viveu à época do Código Penal Brasileiro, datado de 1940. Mas foi com os rápidos e avantajados avanços tecnológicos das Ciências da Saúde sobre o Direito, que o citado Código se tornouobsoleto para as novidades proporcionadas na área da saúde, principalmente nos campos da Genética, que trabalha intensamente desenvolvendo novos métodos e soluções para manutenção da saúde, trazendo ao campo prático métodos medicinais e procedimentais inéditos para cura, mantença e prolongação da vida do ser humano. As doenças cruéis e terminais como a AIDS, hoje tem o seu efetivo controle e prolongação da vida do contaminado, já caminhando, a Ciência, para uma possibilidade de prevenção da contaminação daqueles que nunca tiveram contato com o seu vírus, evitando, desta forma, sua proliferação. É o caso também dos avanços dos exames pré-natais, hoje capaz de detectar doenças e anomalias do ser humano antes do seu nascimento, como a anencefalia, pela detecção da formação defeituosa do tubo neural do feto.

Foi devido a estes avanços tecnológicos no âmbito da Saúde, que se tem discutido nas vias processuais,o tipo de aborto que melhor se encaixa nos padrões da anomalia para o deferimento da interrupção da gestação do feto anencefálico. O tipo eugênico foi uma das opções dos magistrados, pois é utilizado quando da deformidade incurável do feto. No entanto, esta deformidade entendida pelo aborto eugênico é diversa daquela do feto anencefálico, que é um natimorto[11]. Este entendimento foi trazido pelo Ministro Marco Aurélio, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 54, em seu voto sobre o tema. Conforme o relator:

Cumpre rechaçar a assertiva de que a interrupção da gestação dofeto anencéfalo consubstancia aborto eugênico, aqui entendido no sentidonegativo em referência a práticas nazistas. O anencéfalo é um natimorto. Não hávida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qualpressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmenteeleitos. Nesta arguição de descumprimento de preceito fundamental, não setrata de feto ou criança com lábio leporino, ausência de membros, pés tortos,sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, cardiopatias congênitas,comunicação interauricular ou inversões viscerais, enfim, não se trata de fetoportador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Cuida-se tãosomente de anencefalia. Na expressão da Dra. Lia Zanotta Machado,“deficiência é uma situação onde é possível estar no mundo; anencefalia, não”.De fato, a anencefalia mostra-se incompatível com a vida extrauterina, ao passoque a deficiência não. (BRASIL,2012).

A posição do relator em afastar o aborto eugênico se faz pertinente, basta voltar aos conceitos traçados anteriormente sobre anencefalia que se verificará a total incompatibilidade da vida após o nascimento, discernindo-se das características que levam ao aborto eugênico, quais sejam as deficiências compatíveis de se ter uma vida longínqua mediante apropriada mantença.

Afastada a opção de aborto eugênico para o caso da interrupção da gestação de feto anencefálico,em seguida ao esboço do aborto, este se diferenciada interrupção da gestação de feto anencefálico pelo seu objeto. Para clarear o entendimento, ainda sob o entendimento do Ministro Marco Aurélio:

Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. Nocaso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. Na expressão do MinistroJoaquim Barbosa, constante do voto que chegou a elaborar no Habeas Corpus nº84.025/RJ, o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito decélulas e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídicae, acrescento, principalmente de proteção jurídico-penal. (BRASIL, 2012).

Diante do texto do Ministro, conclui-se pela diferença entre aborto e interrupção da gestação no caso do feto anencefálico. No aborto o seu objeto é a vidaconsiderada inicialmente apenas pelo desenvolvimento das funções celulares, com provável potencial à vida humana após o seu nascimento, levando a efeito o âmbito biológico que se agregará ao jurídico por um nascimento com vida – mesmo que o ser humano venha a falecer logo em seguida. Por sua vez, na interrupção da gestação do anencéfalo, o objeto se dá por um ser, que apesar de vivo biologicamente, não tem expectativa de vida humana, por isso não reconhecido juridicamente.

O entendimento do Ministro sustenta as linhas da maioria dos doutrinadores jurídicos, porém contradizendo os ensinamentos explanados anteriormente por José Afonso da Silva, Dirley da Cunha Júnior e Vicente Paulo que defendem os elementos imateriais desde a concepção do ser, que irão acompanha-lopor seu desenvolvimento intrauterino até o seu nascimento. Este manto trazido primeiramente por José Afonso da Silva dá ao ser, desde a sua concepção, a qualidade de pessoa humana - a qual a sociedade tem um dever negativo para sua preservação, ao contrário da maioria doutrinária na qual se calçou o referido Ministro, que atribui a qualidade de ser humano somente ao ser já nascido e com vida – elementos cumulativos de forma continuada, nos quais, nascendo sem vida não se fala em ser humano, mas em natimorto.

O tema, por sua densa consistência na camada social, vem dando trabalho ao Estado que precisa devolver respostas e dar soluções para a sociedade de forma concomitante com os avanços tecnológicos que ocorrem apressadamente no meio das Ciências da Saúde, quando buscam soluções, melhorias e grandes avanços biológicos em prol da saúde e felicidade do ser humano.Desta forma, para que venham as soluções se faz necessário responder perguntas, e a primeira delas é definir para o mundo jurídico quando é o início da vida humana, não para efeitos do negócio jurídico, que este se dá com o nascimento com vida - como já é sólido o entendimento na seara civilista, conforme os ensinamentos do doutrinador César Fiuza: “A personalidade das pessoas naturais ou físicas começa no momento em que nascem com vida.” (FIUZA, 2009, p.122), mas para efeitos de interação com a sociedade através dos seus elementos materiais (e imateriais, conforme seja o entendimento da doutrina para o caso concreto), sobre os quais lheserão assegurados direitos e deveres da sociedade para consigo.

Para esta resposta, o melhor texto para delinear sobre a questão numa sociedade de um Estado Democrático de Direito é a sua Constituição Federal, no entanto, no Brasil, esta questão permanece em aberto, conforme explana em seus textos José Afonso da Silva no contínuo de suas lições sobre o aborto: “Tudo vai depender da decisão sobre quando começa a vida. A nós, nos parece que, no feto, já existe vida humana.” (SILVA, J.A., 2011, p.206). Para o doutrinador, pela evidência dos elementos materiais e imateriais o fetojá deve possuir direitos assegurados perante a sociedade que virá a compor. Desta forma, a interrupção da gravidez viria a ser inadmitidapelo ordenamento jurídico, ficando a maior carga legislativa para a matéria penal: “a questão será decidida pela legislação ordinária, especialmente a penal” (SILVA, J.A., 2011, p.206). Neste ponto, se discuteos casos em que a gestação traz para a gestante o risco à sua vida, como continua em seus textos, José Afonso da Silva:

Há casos em que a interrupção da gravidez tem inteira justificativa, como a necessidade de salvamento da vida da mãe, o de gravidez decorrente de cópula forçada e outros que a ciência médica aconselhar. (SILVA, J.A., 2011, p.206).

Neste trecho, o doutrinador além de elencar as duas causas legais para uma interrupção da gravidez, abre um vasto leque de opções que não fora normatizado: “e outros que a ciência médica aconselhar”. Torna-se inimaginável o diâmetro deste leque, uma vez que a evolução médica é de celeridade tamanha que a normatização jurídica não consegue acompanhar.Pode-se afirmar que nesta provável amplificação interpretativa trazida pela Ciência Médica, encontrar-se-ão os elementos imateriais do feto (trazidos por José Afonso da Silva) e, em novo ponto de vista da interpretação, os elementos imateriais da gestante, pois, não se pode esquecer os efeitos psicológicos causados à mãe – e também à sua família – que virá a dar a luz a um filho morto.

Neste condão, diante da falta de sintonia com a realidade da sociedade, clamaa Ciência Jurídica pela matéria do Biodireito, que neste ponto faz a ligação, a ponte entre as Ciências da Saúde e a Jurídica a fim de satisfazer os anseios da sociedade trazendo soluções e respostas para causas sociais antes muito avançadas para o presente ordenamento jurídico.

Esta aproximação de dois mundos se utiliza da ética, acompanhante fiel do Biodireito, que vai exigir dos profissionais técnicos de toda e qualquer área de conhecimento uma postura ética e consoante às leis. Neste norte, foi visualizando o exercício ético quea Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde(CNTS), formada por diversos setores da área da saúde que lidam e manipulam a vida humana em seus diversos aspectos, mediante o consolidado entendimento que o feto anencéfalo morre em cem por cento dos casos, observouo aumento dos pedidos de ações judiciais com o fim de obter autorização para a interrupção deste tipo gravidez ese antecipou ao legislador,provocando o judiciário para obter uma resposta à causa da sociedade e cumprir o seu dever ético em conformidade com o regramento jurídico. A CNTS deu este passo com a ADPF nº 54,instrumento que gerou grandes discussões no meio jurídico e social, criando um marco na história da legislação brasileira por sua significante mudança nos conceitos de uma sociedade tradicionalista e resistente àsmodificações em grandes proporções.

Antes de delinear comentáriossobre a ADPF nº 54, faz-se necessário apresentar informações conceituais acerca da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental,trazidos no corpo da Constituição Federal como competência do Supremo Tribunal Federal.

A ADPF faz parte do sistema de controle de constitucionalidade tendo sido regulamentada pela Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Este controle se dá pela rigidez da Constituição, levando ao ordenamento jurídico o princípio da supremacia formal, caracterizando-se como inconstitucional toda lei contrária a Constituição. Para ratificar este entendimento, leciona Vicente Paulo:

Inconstitucional é, pois, a ação ou omissão que ofende, no todo ou em parte, a Constituição. Se a lei ordinária, a lei complementar, o estatuto privado, o contrato, o ato administrativo etc. não se conformarem com a Constituição, não devem produzir efeitos. Ao contrário, devem ser fulminados, por inconstitucionais, com base no princípio da supremacia constitucional. (PAULO, 2010, p.741).

Conforme o doutrinador, não somente a lei, mas qualquer texto norteador da conduta dos indivíduos que confrontar a Constituição, mesmo que não integralmente, deverá perder os efeitos diante dos seus destinatários para fazer valer o texto constitucional como lei maior que deve ser obedecida.

Dentro deste sistema de controle que fortifica a Constituição diante da sociedade, a ADPF é uma ferramenta que faz valer a eficácia das decisões tomadas pela Corte Suprema. Para validar este entendimento, leciona Vicente Paulo:

As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ADPF são dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante, o que significa dizer que as orientações firmadas pela Corte Suprema nessa ação nortearão o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico pelas diversas entidades federadas. (PAULO, 2010, p.873).

À luz do texto de Paulo, a ADPF irá definir o melhor entendimento do texto que vir a ferir o texto constitucional, levando a sua decisão ao plano da obediência a todos os indivíduos para o caso discutido.

Quanto aos preceitos, os quais se refere a ADPF, estão relacionados aos princípios constitucionais. Conforme leciona Vicente Paulo:

Pensamos que a utilização da palavra “preceito” em vez de “princípio” teve como objetivo evitar que o conceito a ser delineado pela doutrina e jurisprudência acabasse restrito aos princípios fundamentais arrolados no Título I da Constituição Federal. Além disso, a utilização de uma expressão mais genérica, “preceito”, permite que sejam abrangidos pelo conceito não só os princípios, mas também as regras, em suma, qualquer norma, desde que possa ser qualificada como fundamental. (PAULO, 2010, p.879).

O texto de Paulo revela uma maior amplitude dada ao preceito em relação aos princípios, no qual abrange não somente estes, mas qualquer outra norma convalidada do mesmo entendimento da Constituição Federal.

Partindo para análise da ADPF Nº 54, sua propositura pela CNTS se deu pela petição inicial datada de 16 de junho de 2004. Seu conteúdo abordou odiscernimento da antecipação terapêutica do parto de aborto, a inviabilidade do feto anencéfalo,uma explanação sobre os casos de aborto elencados no Código Penal Brasileiro e a exposição dos preceitos fundamentais violados.

À exceção dos preceitos fundamentais, ao longo do presente trabalho monográfico todos os outros itens foram tratados.Por isso, importante valer-se de considerações acercados preceitos elencados na peça inicial que deu origem à ADPF Nº 54, uma vez que o foco do documento foi a manutenção da integridade física da mulher quando portadora do feto anencéfalo.

Adentrando a análise dos preceitos, a peça trouxe a violação da dignidade da pessoa humana como analogia à tortura, que somente com sua subida aos palcos jurídicos nos tempos contemporâneos é que vem impedindo as barbáries antes provocadas pelo fascismo e nazismo. A positivação deste preceitolevou ao Direito novas interpretações, aproximando a Ciência Jurídica da ética, resgatando valores civilizatórios. No preceito em análise estão contidos os elementos materiais e imateriais (aqueles trazidos por José Afonso da Silva), no entanto, para o caso em tela, estão voltados somente para a dignidade da pessoa da mulher (ao contrário do entendimento de José Afonso da Silva que agrega os elementos desde a concepção), gestante do feto anencéfalo. A importância da concentração destes elementos na pessoa da mulher se dá pela obrigação que tem de carregar por noves meses um feto que não sobreviverá. Este sofrimento está comparado à tortura psicológica, ferindo o texto constitucional que veda toda e qualquer forma de tortura.

A peça inicial também traz o seu entendimento sobre a legalidade, liberdade e autonomia da vontade. Quanto à legalidade, invoca o entendimento genérico que permeia na sociedade quando se diz que “se a lei não proíbe, então é permitido”, observando que em nenhum momento o ordenamento jurídico proíbe a interrupção da gestação de anencéfalo. Com mesma base, entende que a liberdade de escolha da gestante, bem como sua autonomia de vontade para fazer o que achar correto, não deve ser tolhida, pois não existe legislação para coibir a interrupção da gestação, devendo partir da gestante a sua escolha de interromper ou não a gestação do anencéfalo.

Por fim, o último dos preceitos fundamentais explanados na inicial, é o direito à saúde. A fim de convencer a necessidade de proteção ao direito à saúde da mulher no caso da gestação do anencéfalo, a CNTS invoca o conceito de saúde definido pela Organização Mundial da Saúde, que envolve além da ausência de doença, o bem estar físico, mental e social, violados, por conseguinte, à proibição da interrupção de sua gestação. Estes danos são causados com tamanha intensidade sobre a gestante que seu sofrimento alcança os familiares mais próximos.

Passadas as considerações dos preceitos para fundamentar o ingresso da ação, a CNTS se vale da técnica da interpretaçãoconforme a Constituição para explanar o seu pedido. Nesta direção, a Constituição leva para os artigos 124 a 128 do Código Penal a interpretação que o bem tutelado é a vida do feto e da gestante. Por esta razão, pautando-se, a CNTS, nos escritos e laudos médicos da ausência de vida no feto sem o cérebro, a proteção dos referidos artigos do Código Penal não alcançaria a interrupção da gestação do feto anencéfalo(pois neste não existe a potencialidade de vida humana), não podendo ser sujeito de um dos abortos tipificados nos referidos artigos. Em caráter de urgência, o pedido cautelar teve fundamento na violação dos preceitos fundamentais, representados pela dignidade da pessoa humana, legalidade, liberdade, autonomia da vontade e direito à saúde, todos voltados paraa gestante, caracterizando a existência do direito (fumus boni iuris)ao qual a gestante faz jus, bem como a existência do grave perigo (periculum in mora), devido ações corrente pelo país, com pedido de interrupção da gravidez, que estão sujeitas a análise do magistrado pela interpretação do Código Penal, indeferindo o pedido, sujeitando a mulher a manter uma gestação sofrida e torturante. Por fim, o seu pedido principal pretende fazer valer a interpretação dos textos dos artigos 124 a 128 do Código Penal sob a égide da técnica da interpretação conforme a Constituição, parareconhecer o direito subjetivo da gestante se submeter ao procedimento de interrupção da gravidez do feto anencéfalo sem a necessidade de prévia autorização judicial.

O julgamento da ADPF Nº 54 ocorreu entre os dias 11 e 12 de abril de 2012. O Supremo Tribunal Federal decidiu, por 8 (oito) votos a 2 (dois), pela legitimação da interrupção da gestação de feto anencéfalo se for a vontade da mulher. O advogado da CNTS, Dr. Luís Roberto Barroso, postou em seu site, logo após o julgamento, no dia 14 de abril de 2012, os seus argumentos utilizados para o sucesso do pedido:

Não se trata de aborto ou, ainda que fosse, estaria fora da incidência do Código Penal, dentre outras razões, por força do princípio da dignidade da pessoa humana. Em memorial distribuído na véspera, e na sustentação oral, acrescentei o argumento da autonomia reprodutiva da mulher. Presentes determinadas circunstâncias, o Estado não tem o direito de obrigar a mulher a levar a gestação a termo. O processo foi conduzido com o apoio e consultoria do ANIS – Instituto de Bioética, Gênero e Direitos Humanos e, particularmente, da Professora Debora Diniz. (BARROSO, 2012).

O raciocínio do Dr. Barroso demonstra o atraso do ordenamento jurídico em relação aos acontecimentos que ocorrem na sociedade. Acontecimentos, estes, provenientes da evolução tecnológica do campo da medicina e que a seara jurídica – por sua função reguladora do comportamento dos indivíduos, deveria tomar ciência, absorver e deliberar sobre,para proporcionar ao meio social o devido regramento conforme o caso concreto. Para ratificar tal entendimento, basta observar que a autonomia reprodutiva da mulher,tratada pelo Dr. Barroso, foi tema discutido em 1968 – tendo reconhecimento como Direitos Humanos, conforme foi explanado ao iniciar o capítulo 2 (Início da vida) deste trabalho, ficando o positivo jurídicobrasileironum atraso de 44 anos.

Importante percorrer os escritos dos votos dos ministros que julgaram a ADPF Nº 54 a fim de extrair a essência que levou ao resultado final, e observar se o ordenamento jurídico brasileiro está tendencioso a uma aproximação mais nutrida com a realidade social proporcionada com a evolução das Ciências da Saúde.

Neste passo, segue-se o relator da ADPF nº 54, o ministro Marco Aurélio, que foi a favor da interrupção de gravidez de feto anencéfalo. O ministro considerou procedente o pedido da CNTS para caracterizar a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124,126 e 128 do Código Penal Brasileiro, que mesmo datado de época com outros conceitos no meio social e de tecnologia médica que não possibilitou a detecção da anomalia antes do seu nascimento, mesmo assim, não haveria aplicabilidade da interrupção da gestação, no referido Código, para o caso do anencéfalo.Suas considerações sustentaram que a vida do feto, sem possibilidades de sobrevivência, não deve prevalecer sobre as garantias constitucionais da dignidade da pessoa humana, da saúde e da integridade física, psicológica e moral da gestante. Em sua análise, Marco Aurélio relata que é defeso ao Estado a imposição de uma gravidez em que o resultado sempre será a morte do feto. Desta forma, conclui Marco Aurélio a votar pela liberdade de escolha da mulher em manter ou não a gravidez. 

Ainda conforme o entendimento do ministro Marco Aurélio, fez saber que não é o caso de uma descriminalização do aborto, vez que a proteção auferida pelo texto do Código Penal tutela o ser com potencial de vida, o que não ocorre com o anencéfalo. Em conclusão, conforme o ministro, não há que proteger um direito à vida, pois, trata-se de um natimorto.

A ministra Rosa Weber andou sobre os passos do ministro Marco Aurélio. Julgou procedente a ação e também entendeu que a interrupção de gestação do feto anencéfalo não cabe no Código Penal pelo mesmo discernimento que o referido código trata da vida humana em potencial, o que não ocorre com o anencéfalo. No mesmo norte do ministro Marco Aurélio, defendeu a liberdade de escolha da gestante. Neste ponto, também existiu o entendimento para a proteção da integridade física e psicológica da gestante tutelada pela garantia dos direitos fundamentais da Constituição Federal.

O ministro Joaquim Barbosaos acompanhou votando pela procedência da ação. Em seu voto, Barbosa entendeu que a interrupção da gestação do feto anencéfalo não fere o princípio da dignidade da pessoa humana. O ato serve para proteger a saúde física e psíquica da mulher, uma vez que não há possibilidade de sobrevivência do feto após o seu nascimento. O ministro também defendeu a liberdade de escolha da mulher em realizar o procedimento, confiando em suas convicções morais e religiosas.

O ministro Luiz Fux também entendeu pela autorização da interrupção da gravidez do feto anencéfalo e se pauta na proteção constitucional contra a tortura. Fux, também tem seu entendimento sobre a preservação da integridade física e psicológica da gestante. O ministro amplia sua análise e observa que existe no caso do anencefálico uma tragédia humana. No seu entender, a mulher não deve ser levada ao banco dos réus por algo o qual não tem culpa alguma. O Estado, segundo o ministro, deveria prestar todo apoio necessário motivado por meio de ações sociais junto à comunidade.

A ministra Cármen Lúcia também entendeu que no ato da interrupção deste tipo de gravidez não há caracterização de um crime e vota a favor da interrupção da gravidez do feto anencéfalo para proteger a saúde psicológica da mulher. Seu voto se concentrou no entendimento que o Supremo Tribunal Federal estava ali cumprindo o seu papel para dar uma resposta à sociedade e não para discutir a interpretação do texto da lei penal. A deliberação, segundo a ministra, se deu para determinar a possibilidade jurídica do profissional médico levar ao conhecimento da gestante as consequências de se avançar com a gravidez do feto anencéfalo, ajudando-a a decidir sobre a continuidade ou não da gestação. A sua decisão também deveria alcançar o entendimento do pai e da família, que juntos sofrem a dor pelo simples fato da existência da anomalia. A ministra também salientou que na maioria dos casos a mulher não procura informações sobre a possibilidade de interromper a gestação, por medo de ser punida, levando a termo, uma gestação dolorosa e traumática para a sua saúde psicológica.

O ministro Ricardo Lewandowski votou pela improcedência do pedido da CNTS. Seu entendimento adentrou pela não legitimidade do STF em agir de forma positiva ao apreciar o pedido, cabendo ao STF exercer a função legislativa negativa, analisando apenas os casos de contrariedade com a Constituição Federal. Ainda segundo o ministro, houve usurpação do poder constitucionalmente atribuído ao Congresso Nacional. Que a decisão favorável a interrupção da gestação de feto anencefálico poderia ocasionar insegurança jurídica, abrindo um leque para incontáveis outros casos de anomalia que poderiam ser abraçadas pela decisão. Por outro ponto de vista, ainda segundo o ministro, a decisão também não pode ser favorável devido a existência de diversos outros dispositivos legais que protegem a vida intrauterina, destacando-se o Código Civil em seu artigo segundo.

O ministro Ayres Britto decidiu por autorizar a interrupção da gravidez, acompanhando o ministro Luiz Fux, entendendo que o avanço desta gravidez é um sofrimento e uma tortura para a mulher, devendo-se primar a sua integridade física e psicológica. Britto também entende que a gravidez é para a vida e não para a morte, como no caso do anencéfalo em que a mãe já sabe que o filho irá morrer. O ministro vota pela autorização da interrupção como opção de escolha da mulher.

O ministro Gilmar Mendes votou a favor da procedência do pedido da CNTS. Mendes diverge dos demais que votaram a favor, ao entender que a interrupção da gestação de feto anencéfalo é uma hipótese de aborto, no entanto, deve ser interpretada como excludente de ilicitude. Sua análise também recaiu sobre o fato que este tipo de gestação causa dano à saúde da mulher. O ministro também observou a impossibilidade do legislador, à época do Código Penal, prever tal anomalia para tipificá-la em seu texto, trazendo à tona o presente caso devido aos avanços tecnológicos no campo da saúde que hoje revelam com bastante rapidez e simplicidade o diagnóstico da anencefalia. O ministro salientou o dever do Estado de promover a prevenção da anomalia e não apenas “aparecer” diante da sociedade como um ente punidor.

O ministro Celso de Mello entendeu pela procedência da ADPF Nº 54, salientando que a interrupção da gestação de anencéfalo é motivo terapêutico para proteger a saúde física e psicológica da mulher. Alertou também para a importância do julgamento ao tratar do início e fim da vida humana, lembrando que a constituição não determina o seu marco inicial. Desta forma, optou como base que o fim da vida se dá pela morte cerebral e no caso do feto anencéfalo, não há que falar em vida pela ausência do seu cérebro. O ministro também enfatizou que o julgado não trata de legalização do aborto, mas apenas da interrupção terapêutica da gestação e da livre escolha da mulher de continuar o avanço deste tipo de gestação.

Por fim, o voto do ministro Cezar Peluso juntou-se com o do ministro Ricardo Lewandowski ao votar pela improcedência do pedido da ADPF Nº 54. No entanto, em sua análise, Peluso partiu para outro norte defendendo que existe a vida no feto anencéfalo e esta deve ser protegida. Seu entendimento envolve que o aborto é a eliminação da vida, independentemente da expectativa de sua viabilidade. Desta forma, a prática do aborto estaria ceifando uma vida em formação e que tal ato está vedado pelos textos legais.

Peluso também analisou a competência do STF julgando como legislador positivo. Neste entendimento, acompanha o ministro Ricardo Lewandowski na assertiva de que compete ao STF somente a interpretação de lei contrária a Constituição Federal. O seu entendimento é de que a inércia do legislador deu causa a provocação da sociedade para obter respostas à demanda dos casos da interrupção de gestação de feto anencéfalo.

O ministro Dias Toffoli, por seu valimento na ADPF enquanto Advogado-Geral da União, não participou do julgamento da ADPF Nº 54.

Após este resumodos votos dos ministros, demonstra-se forçoso o resultado finalda ADPF Nº 54aoautorizar a interrupção da gestação do feto anencéfalo sem a necessidade de autorização judicial. É que a urgência da sociedade para uma resposta e a pressão exercida pela população jurídica para uma atualização do sistema judiciário positivo aos casos concretos, parece ter deixado o STF sem saída, senão a exercer função atípica de legislar. Nas observações dos ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso – os únicos que votaram contra a procedência da ADPF Nº 54, houve uma usurpação do poder atribuído ao Congresso Nacional.Ao STF compete apenas a interpretação da lei quando contrária à Constituição Federal, devendo exercer função legislativa negativa. Em suma, no entendimento dos ministros, o STF não tem competência para legislar, cabendo esta função ao Congresso Nacional.

Trocando o resultado da ADPF Nº 54em números, todos os votos que foram a favor da sua procedência, teve o entendimento da não aplicação positivada dos textos dos artigos 124 a 128 do Código Penal para o caso da interrupção da gestação de feto anencéfalo, autenticando a necessidade da proteção à saúde física e psicológica da mulher (os ministros Luiz Fux e Ayres Britto, foram mais longe e levaram o sofrimento da mulher à similitude da tortura, defesa pela Constituição Federal), fazendo jus à dignidade da pessoa humana. Também houve maioria para a mulher ter a liberdade de escolha pelo procedimento da interrupção da gravidez do feto anencéfalo, ratificando os direitos reprodutivos reconhecidos desde 1968, na Conferência Internacional de Direitos Humanos, celebrada em Teerã – conforme foi explanado ao iniciar o capítulo 2 (Início da vida). Numa terceira observação, também foi maioria o entendimento que não há crime na interrupção da gestação do feto anencéfalo, pois não se trata de uma vida humana em potencial, não ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana.

Estas três assertivas elencadas pelos ministros ao julgar a ADPF nº 54, demonstra claro estreitamento da Ciência Jurídica com as Ciências da Saúde. Esta atração das duas grandes áreas demonstra a ignorância jurídica do Direito aos casos concretos da contemporaneidade, se permitindo ser invadido pela evolução médica, para validar uma ética da qual a sociedade é credora.Neste norte, ao optar pela autonomia da mulher escolher o procedimento para realizar a interrupção da gravidez, o regramento jurídico brasileiro saiu do atraso de 44 anos neste quesito, se atualizou, mostrando para a sociedade a sua presença em seu meio.

O ministro Gilmar Mendes, apesar de votar pela procedência do pedido da ADPF nº 54, acompanhou os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (que votaram contra a ADPF nº 54) apenas no entendimento que existe uma vida a ser protegida naquele feto anencéfalo e que a interrupção do seu desenvolvimento é caso típico de aborto. O ministro observa que mesmo com a ausência do cérebro do feto existe ali uma vida humana, afinal, se morre é por que esteve vivo. Sua análise muda de direção e diverge de todo o colegiado quando entende que o caso deve ser tratado como uma excludente de ilicitude, não apenandoa gestante que vier a optar pela interrupção da gravidez. Mendes acrescenta e acompanha o ministro Luiz Fux, na ideia que o Estado deve promover ações sociais junto à comunidade para evitar a anomalia.

Diante destas explanações dos votos ministros, se vê que a máquina jurídica neste caso específico da interrupção da gestação do feto anencéfalo,somente se movimentou com a pressão da sociedade ao clamar por uma resposta diante dos novos entendimentos antes trazidos pela ciência médica.

Assim, fica ratificado o entendimento trazido pelos doutrinadores que explanaram sobre a comunicação do Direito com as Ciências da Saúde.O Direito precisa do Biodireito para se atualizar e conheceros novos casos concretos que levará a uma amplitude de direitos já existentes e à criação de novos direitos.

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Sobre o autor
Santos

Graduando em Direito em Salvador (BA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS,. ADPF nº 54 à luz do biodireito: interrupção da gestação do feto anencéfalo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3579, 19 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24228. Acesso em: 29 mar. 2024.

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