A questão que me cabe, da internação do portador de transtorno mental e seu caráter indeterminado ou perpétuo, matéria relativa, no aspecto jurídico, ao direito sanitário ou mais especificamente ao direito da saúde mental, está inserida num contexto mais amplo que não pode ser deixado de lado. Podemos aqui fazer um paralelo entre Direito e Medicina: embora as especialidades sejam importantes ou até mesmo indispensáveis, não podemos perder de vista que estão inseridas, integram um todo, em relação ao qual devem guardar certa coerência a fim de que não haja a quebra do sistema. Os aspectos jurídicos dos transtornos mentais e de seu tratamento são parte do ordenamento jurídico, de forma que com ele devem guardar um sentido harmônico, respeitando os seus fundamentos e princípios.
Pois bem. Devemos ter em vista, em primeiro lugar, que em nosso sistema constitucional o princípio da dignidade da pessoa humana constitui fundamento do Estado, verdadeiro pilar ou alicerce sobre o qual deve ser erigido o sistema jurídico. Um conceito mais ou menos incontroverso de dignidade humana, que podemos empregar sem maiores conflitos doutrinários, envolve a respeitabilidade mínima, a observância dos direitos essenciais a todas as pessoas, independentemente de seus méritos, de seu caráter, personalidade ou de suas ações.
Mas em quê consiste tal respeitabilidade mínima? Penso que se trata, como já deixei transparecer, da possibilidade de exercício dos direitos fundamentais – vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade e os que deles decorrem, como, por exemplo, a saúde, a intimidade, a privacidade. Embora os direitos fundamentais, como já deixou assentado o STF, em regra não sejam absolutos, a sua restrição ou o sofrimento de intervenção por parte do Estado somente pode se dar mediante a observância dos seguintes requisitos mínimos: legalidade e proporcionalidade. Um direito fundamental, portanto, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana, não deve ser restringido pelo Estado, salvo se existir uma lei prevendo a restrição, e se tal restrição – legal – for necessária e adequada à preservação de outro ou outros direitos de igual ou superior hierarquia.
No campo da saúde mental, em vista da história de exclusão social dos portadores de transtornos mentais e de sua maior vulnerabilidade, optou o legislador federal pela elaboração de uma legislação específica que estabelece princípios, objetivos, direitos e as linhas mestras do modelo de assistência à saúde mental. Trata-se, como todos sabemos, da Lei 10.216/2001.
Evidentemente que, em se tratando de legislação especial, que regula especificamente a questão, deve prevalecer em eventual aparente conflito com outras normas de igual hierarquia – leis federais de abrangência nacional.
A opção política do legislador, que está fundada na democracia e que por isso deve ser respeitada e observada por todos os envolvidos na questão (sejam operadores do Direito ou profissionais da saúde), e tomada a partir dos princípios constitucionais da liberdade, da inclusão social e da não discriminação e, repita-se, no fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, foi a de tornar a internação dos portadores de transtornos mentais medida excepcional, apenas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Esta orientação está bem clara no art. 4º, da Lei 10.216 e em outros dispositivos da citada lei.
Há situações, contudo, em que, nos termos da lei, os recursos extra-hospitalares não se mostram suficientes, hipóteses nas quais se admite, mesmo contra a vontade do paciente, então, a sua internação: (a) internação involuntária, cujo procedimento está previsto pelos artigos 6º, inciso II e §§ do art. 8º, da Lei 10.216/2011 e é regulamentado por atos administrativos (portarias) do Ministério da Saúde, destinando-se às situações de risco imediato ou perigo concreto. Superada esta situação de risco, os tratamentos extra-hospitalares devem ser retomados, o que demonstra o seu caráter temporário e excepcional; (b) internação compulsória, determinada pela Justiça, prevista pelo inciso III do art. 6º e art. 9º da citada lei.
O objeto principal do nosso debate é a internação compulsória, determinada pelo Poder Judiciário.
O art. 9º da Lei 10.216 dispõe que a “internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente”. A lei 10.216, portanto, não esclarece o procedimento e as hipóteses para a internação compulsória e nem o juízo competente para tanto, remetendo a questão a outros diplomas legais. Em síntese: a internação compulsória é definida pela Lei 10.216 como aquela determinada pela Justiça; as hipóteses de seu cabimento, contudo, até mesmo por envolver, como vimos, limitação de direitos individuais fundamentais, devem ser especificamente tratadas por leis distintas, embora sempre com a observância dos princípios estabelecidos pela Lei 10.216.
Dito isso, cabe questionar: afinal, em quais situações é legalmente admitida ou “tipificada” a internação compulsória?
Em primeiro lugar no processo penal, como medida cautelar prevista pelo art. 319, na redação que lhe conferiu a Lei 12.403/2011: a internação provisória, cabível como medida de garantia do processo nos casos de crimes cometidos com violência ou grave ameaça contra a pessoa, desde que, no incidente de insanidade mental restem revelados a inimputabilidade ou semi-imputabilidade e o prognóstico desfavorável.
A internação provisória, conforme se depreende de sua própria denominação, tem caráter temporário, pois serve apenas ao processo, e está sujeita à garantia constitucional da duração razoável do processo[1].
Em segundo lugar a internação compulsória clássica, qual seja, a medida de segurança.
A medida de segurança de internação é de prazo indeterminado. Realmente, embora aplicada por prazo mínimo de 1 a 3 anos, a Lei de Execução Penal (LEP), em seu art. 176, prevê a possibilidade de verificação da cessação da periculosidade, desde que presente requerimento fundamentado, antes do decurso de tal prazo. Além disso, apesar de estabelecida por prazo mínimo, a sentença que a aplica não prevê o seu termo final.
A medida de segurança de internação, no entanto, embora de prazo indeterminado não é perpétua, conforme pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, que, apesar de ainda não ter definido a natureza do instituto – se caracteriza espécie sanção penal ou apenas tratamento -, já solidificou o entendimento de que deve observar o prazo máximo de 30 anos, previsto pelo art. 75, do CP.
Admissível, também, em princípio, na jurisdição da infância e adolescência, quando caracterizado o transtorno mental, a internação compulsória como medida protetiva (art. 98, inciso III, c.c. 101, V e 112, § 3º, do ECA – Lei 8.069/90) ou como providência suspensiva da medida sócio-educativa (art. 64 da Lei 12.594/2011, que estabeleceu o SINASE). A internação compulsória, em tal hipótese, tem como limite a cessação da jurisdição da Vara da Infância e da Juventude (18 ou, excepcionalmente, 21 anos).
Por fim, pode-se argumentar pela previsão legal de internação compulsória dos toxicômanos, nos termos dos artigos 28 e 29, do Decreto-lei 891/38, que preveem a impossibilidade de tratamento domiciliar dos toxicômanos e a internação obrigatória, dispositivos que, entretanto, entendo tacitamente revogados, por absoluta incompatibilidade, pela Lei 10.216/2001 e, especialmente, pelos artigos 4º, 5º e 19 a 22 da Lei 11.343/2006, que disciplina o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas.
Apesar de ainda observarmos pedidos e inclusive decisões judiciais determinando internações compulsórias com fundamento no Decreto 24.559/34 (dispunha sobre a profilaxia, assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas e a fiscalização dos serviços psiquiátricos), é preciso dizer que tal dispositivo legal não está mais em vigor, não apenas por conta de sua absoluta incompatibilidade com a Lei 10.216/2001, mas também por força de revogação expressa, decorrente do Decreto 99.678/90 (anexo IV).
Fora dessas hipóteses, como decorrência do princípio da legalidade, não seria cabível a internação compulsória.
A jurisprudência, no entanto, especialmente a paulista, tem admitido sem maiores questionamentos a internação compulsória mesmo fora das hipóteses citadas, e nesta esteira é que surgiu a “Unidade Experimental de Saúde”, regulamentada pelo Decreto 53.427 do Estado de São Paulo.
A situação das pessoas compulsoriamente internadas nestas condições, exatamente pela ausência de lei disciplinadora, não encontra parâmetros de regulação e de garantias: literalmente são jogadas em um “limbo”, em uma verdadeira “armadilha jurídica”, da qual é praticamente impossível sair.
Com efeito, tratando-se de internação decretada a partir de processo de interdição (jurisdição voluntária, em princípio destinada à ausência de litígio), – que evidentemente não tem por fim a restrição da liberdade, mas acautelar os direitos dos civilmente incapazes -, não observa os princípios e garantias do processo penal, muito mais rígidos; não está sujeita, ainda, às garantias estabelecidas, em sede de execução penal, às medidas de segurança; por fim – e creio que aqui se estabelece a mais grave violação dos direitos e garantias individuais -, confere-se à internação compulsória decretada pelo juízo – cível - da família e das sucessões a possibilidade de assumir caráter perpétuo, muito mais gravosa que aquela decorrente da prática de uma infração penal por inimputável. Inverte-se aqui o princípio de “quem pode o mais pode o menos”, pois quem poderia apenas o menos acaba, contraditoriamente, podendo o mais.
O argumento de que a periculosidade e os distúrbios de personalidade justificariam a restrição da liberdade, embora tentador, não convence.
Primeiro porque o nosso sistema jurídico funda-se na responsabilidade pelo ato, e não pela conduta de vida ou periculosidade. Ainda não aderimos ao positivismo de Lombroso, Ferri e Garofalo ou à Defesa Social de Filippo Gramatica, de forma que medidas de segurança pré-delituais, dirigidas a ex-adolescentes infratores, me parecem absolutamente inconstitucionais e ilegais.
Segundo porque, conforme renomados especialistas[2], quase metade da população carcerária é composta por pessoas com transtornos de personalidade, a maior parte antissociais, sendo que de 15 a 25% são psicopatas. A prevalecer o entendimento da legalidade das internações compulsórias na UES, de rigor a tomada de providência semelhante, ao término do cumprimento das penas, em relação a todo esse contingente, o que, todavia, se mostra não apenas materialmente inviável, mas também juridicamente ilegal, pois há muito abandonado o sistema do duplo binário e adotado o vicariante.[3]
Em síntese – e aqui termino minhas breves reflexões -, ao se admitir sem a observância dos pressupostos legais a violação dos direitos e garantias individuais, ainda que com as melhores intenções dirigidas à coletividade, provoca-se uma quebra do sistema jurídico vigente e, em consequência, de todo o aparato protetor que representa. Permitir o abuso – e aqui faço uma autocrítica ao Judiciário -, ainda que contra uma única pessoa, e tentar justificá-lo em conceitos vagos como “interesse social” e “ alta periculosidade”, representa, aí sim, perigoso precedente e abertura ao arbítrio, incompatível com o Estado democrático de Direito. De fato, o rompimento de um grande dique pode iniciar-se com pequenas fissuras, aparentemente irrelevantes perante a grandiosidade da obra.
Notas
[1] Art, 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
[2]http://www.sospsiquiatria.com/grade/Rigonati.pdf
[3] O sistema do “duplo binário”, adotado pelo Código Penal de 1940, permitia, ao término da pena, a aplicação de medida de segurança aos imputáveis, desde que ainda dotado de “periculosidade”. Com a reforma da Parte Geral de 1984 foi adotado o sistema vicariante, segundo o qual as medidas de segurança são reservadas aos inimputáveis ou semi-imputáveis.