1 INTRODUÇÃO
A liberdade, característica intrínseca à vida do homem, deve se manifestar em toda sua plenitude, possibilitando à humanidade o alcance de todas as suas potencialidades, tornando concretas as perspectivas que se abrem a todos. A preservação de tal direito, que se projeta em diversas esferas, deve ser assegurada pelo Estado e pela Sociedade, não podendo sofrer limitações, salvo no caso de ofensas à dignidade da pessoa humana e a outros direitos de igual relevância.
Uma das projeções da liberdade mais caras à humanidade vem a ser a livre manifestação de pensamento. Tal direito, reconhecido como fundamental pelo artigo 5º, incisos IV e IX, da Constituição Federal de 1988, possibilita ao homem pensar e livremente veicular suas ideias através da ação. Ao fazê-lo, criando o novo, transforma o mundo que o cerca, impulsionando-o a novas descobertas.
A Carta Magna, em seu artigo 220, caput, também estabelece, ao tratar da Comunicação Social, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Reconheceu o constituinte, assim, a impossibilidade de, ao firmar as bases de um Estado Democrático, deixar de assegurar o valor da liberdade, ao mesmo fortemente relacionado.
A busca pela essência do que se entende por justo, atributo de que o Direito deve se revestir, tomando por parâmetro o Direito Natural, assim considerado aquele pressuposto, modelo para o Direito posto, passa pelo reconhecimento da democracia como um dos seus pilares. A democracia não se limita à mera representatividade, cada vez mais restrita ante os vícios inerentes ao processo eleitoral. Antes, busca assegurar participação popular efetiva na gestão da coisa pública, pressupondo discussão ampla e aberta acerca da atuação estatal, em ambiente de máxima pluralidade. Sobre a mesma, leciona a doutrina:
“Evidencia-se, ainda, o quanto ela, a democracia, depende do respeito à liberdade e à igualdade. Liberdade, para que as pessoas possam manifestar seus pontos de vista, das mais diversas formas, a fim de que os demais deles tenham conhecimento e por eles sejam influenciados [...]. A importância da multiplicidade de pontos de vista ressalta, ainda, a necessidade de se prestigiar – também como pressuposto da liberdade, da igualdade e da democracia – a tolerância...”.[1]
A cultura, enquanto padrão de conhecimentos, costumes, crenças e valores de um povo, somente avança, trazendo novos benefícios à humanidade, caso a todos se assegure o direito de, em ambiente de máximo pluralismo, ter suas ideias expostas e sujeitas ao debate público. A difusão dessas ideias, de forma a atingir o maior universo possível de pessoas, se beneficia dos meios de comunicação.
No Brasil, em decorrência de nossa curta experiência democrática, ainda não existe uma forma de identificação precisa acerca da natureza das limitações impostas à livre manifestação de pensamento e às atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação. De fato, ora se busca cercear inconstitucionalmente tais atividades, ora se considera indevidamente como censura, inclusive reputando como ditatoriais, ações que buscam punir iniciativas que se apresentam flagrantemente violadoras a outros direitos igualmente ou mais relevantes.
As paixões políticas, embora muitas vezes motivadas, infelizmente, mais por interesses patrimonialistas e financeiros que por disputas de cunho ideológico, muitas vezes inflamam discursos, notadamente de entidades empresariais e grupos de mídia dominantes do mercado, apontando como censura toda e qualquer medida que resulte em oposição ou represente mera tentativa de reparação ante fatos noticiados.
Tornou-se um lugar comum no Direito afirmar, muitas vezes de forma acrítica, que os direitos fundamentais não seriam absolutos, devendo ser observada a relatividade que os assinala. Tal afirmação, contudo, não responde às indagações que a pesquisa que se pretende desenvolver busca formular: o que é censura? Quando se pode considerar inconstitucional uma restrição à mídia? Quando o cercear o pensamento representa afronta sem causa a um direito fundamental?
Embora não se possa responder, a priori, quando uma determinada hipótese fática se caracteriza ou não como censura, já que as controvérsias relacionadas representam conflitos entre normas-princípios, e não normas-regra, faz-se indispensável estabelecer um mínimo de parâmetros de julgamento ante os problemas que são enfrentados, tarefa árdua já que esse julgamento se realiza segundo critérios de valores e sem afastar a pré-compreensão do intérprete, como medida de coerência e igualdade na aplicação das normas. A coerência, segundo Bobbio, “é sempre condição para a justiça do ordenamento”.[2]
Não obstante as previsões constitucionais acima referidas, às quais se associam, em regulamentação, os §§ 1º a 6º do mencionado artigo 220, não se sabe exatamente quando uma restrição a tal direito fundamental pode ou não ser considerada uma censura inconstitucional. É certo testemunharmos hipóteses nas quais razões de ordem política são utilizadas para cercear a livre manifestação de ideias, embora, felizmente, com cada vez menos intensidade.
Os debates sobre o tema se mantém intensos, contudo, e novas questões acerca do mesmo emergem das rápidas e significativas transformações experimentadas pela sociedade. Assim, a par da censura motivada por razões políticas, ainda praticada em diversos países, com intensidades distintas, tem-se ainda restrições à livre manifestação de pensamento motivada por questões ideológicas, morais, religiosas, etc., muitas vezes sob o aspecto de proteção e tutela a outros direitos.
A consolidação da internet como a mídia mais poderosa para veiculação e troca de informações, em especial o fenômeno da popularização de blogs e sites de relacionamento, também tem levantado uma série de discussões acerca do estabelecimento de limitações à manifestação de pensamento, que passam pela identificação de cerceamentos atuais aos quais tal ferramenta vem sendo submetida, inclusive em países ditos desenvolvidos.
Faz-se indispensável, para fins de entender o que pode ser considerado censura, entendida, nessa oportunidade, antes de qualquer análise aprofundada, como qualquer restrição à livre manifestação de pensamento, separar as restrições que encontram amparo no ordenamento jurídico daquelas que se apresentam frontalmente contrárias ao referido direito fundamental.
Com base nas colocações acima formuladas, busca-se, ao longo do trabalho a ser realizado, estabelecer em quais situações se pode afirmar vilipendiado o direito à livre manifestação de pensamento, e em quais hipóteses fáticas as restrições que se busca sejam impostas ao mesmo encontram embasamento jurídico. Tais restrições, à luz do ordenamento jurídico pátrio, se apresentam lícitas?
Para tanto, far-se-á necessário tecer considerações acerca da chamada ponderação de interesses, tema objeto de profundo exame pela doutrina nacional, com especial enfoque na identificação de critérios que permitam a identificação dos pesos que devem ser atribuídos aos princípios em confronto, o que será necessário à continuidade da pesquisa, afastando a possibilidade de se considerar como censura restrições motivadas e legítimas à divulgação de pensamento, ou que se apresentem punitivas a ideias ilícitas expostas.
Embora se trate de conceito jurídico indeterminado, conferindo margem às mais diversas interpretações, a dignidade da pessoa humana representa autêntico norte hermenêutico para julgar as restrições impostas à livre manifestação de pensamento, contribuindo o exame do tema para separar a restrição inconstitucional das que se apresentam legítimas, já que visam a tutela de outros direitos igualmente relevantes, como será a seguir exposto.
Passa-se a analisar, a seguir, após considerações sobre a origem do instituto da livre manifestação de pensamento, em que medida se legitimam as restrições ao mesmo, tomando-se por base as normas também objeto de tutela na Constituição Federal de 1988, orientadas a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, reputado como a fonte histórica dos direitos fundamentais.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1. A livre manifestação de pensamento
Os direitos fundamentais podem ser considerados como decorrentes da positivação, no texto constitucional, dos direitos naturais, conceito ao qual se pode equiparar, para os fins do presente estudo, o de direitos humanos. De fato, o reconhecimento, por texto com força normativa, de um conjunto de direitos e garantias aptos a proteger o cidadão em face do Estado, e em face dos demais cidadãos, representa importante conquista dos tempos atuais, representando fruto de lutas revolucionárias. Na lição de Paulo Bonavides, “não há Constituição sem garantia efetiva dos direitos fundamentais”.[3]
Todos os direitos fundamentais, notadamente os ditos de primeira geração (tomada a expressão em termos cronológicos, e não de suposta hierarquia, segundo a clássica lição de Karel Vasak), podem, direta ou indiretamente, ser remetidos à proteção do status libertatis do indivíduo, o qual se manifesta de diversas formas, notadamente através da ação e da palavra. Trata-se de concepção que influenciou fortemente o constitucionalismo moderno. Extrai-se da doutrina:
“Não há direitos fundamentais sem reconhecimento duma esfera própria das pessoas, mais ou menos ampla, frente ao poder político; não há direitos fundamentais em Estado totalitário ou, pelo menos, em totalitarismo integral. Em contrapartida, não há verdadeiros direitos fundamentais sem que as pessoas estejam em relação imediata com o poder, beneficiando de um estatuto comum e não separadas em razão de grupos ou das condições a que pertençam; não há direitos fundamentais sem Estado ou, pelo menos, sem comunidade política integrada”.[4]
Na lição de Ingo Sarlet, “o processo de elaboração doutrinária dos direitos humanos, foi acompanhado, na esfera do direito positivo, de uma progressiva recepção de direitos, liberdades e deveres individuais que podem ser considerados os antecedentes dos direitos fundamentais”.[5]
A concepção liberal dos direitos políticos foi antecedida, na Idade Antiga, pela experiência democrática ateniense, sem que se pudesse falar ali em oposição do Estado ao cidadão, sendo possibilitado aos cidadãos que atendessem a determinados requisitos participar, em assembleia, acerca da condução dos interesses da polis. A liberdade não consistia em fazer o que se queria, mas sim poder participar como cidadão. Segundo Arnaldo Vasconcelos,
“Heródoto, falando pela boca de Otanes, manifesta-se também com inteira convicção pelo regime democrático, por ser o único a admitir que 'todos os cidadãos deliberem sobre os negócios públicos'. Finalmente, Eurípides, através de Teseu, define a liberdade pela isegoria, o igual direito de falar, por ele considerado 'a mais bela igualdade' de que pode usufruir o cidadão”.[6]
O jusnaturalismo representa a fonte dos direitos fundamentais na antiguidade. Nesse sentido, foi reconhecida ao homem, por sua condição de produto da criação divina, em razão de uma perspectiva eminentemente cristã sobre o tema, uma dignidade inata que lhe assegurava um mínimo de direitos, dos quais não poderia ser privado, sob pena de se equiparar a um objeto inanimado. Embora aí se admitisse a prática de verdadeiras atrocidades, repousa nessa concepção a origem do instituto.
Com a progressiva superação da visão religiosa, possibilitada pelo deslocamento da supremacia divina para a supremacia do homem, a partir do paradigma iluminista, fenômeno coincidente no tempo com o advento das revoluções liberal-burguesas, passa-se a reconhecer os direitos fundamentais sob uma nova perspectiva, não mais associada à divindade.
Ocorre que é a partir da formação do Estado Moderno que se pode falar na figura dos direitos fundamentais como atualmente são concebidos, autênticos direitos humanos positivados na ordem constitucional, pelo que a proteção dos mesmos, em dimensão jurídica, demanda as figuras do Estado, que os reconhece, em favor do indivíduo, o fazendo numa norma de hierarquia superior às demais, cuja força normativa se ampliou com o tema, atingindo máxima força no período posterior à 2ª Guerra Mundial.
A própria criação da figura jurídica do Estado Moderno se deu de forma a viabilizar a tutela das liberdades burguesas, representando, segundo Paulo Bonavides, autêntica “armadura de defesa e proteção da liberdade […] Sua essência há de esgotar-se numa missão de inteiro alheamento e ausência de iniciativa social”.[7] Embora se possa criticar tal concepção, por haver promovido a tutela de um direito visando a proteção de uma classe social privilegiada, olvidando da necessidade de isonomia, não se pode ignorar o inegável avanço que ensejou ao desenvolvimento do homem, notadamente ao longo dos últimos três séculos.
É no exercício de sua liberdade que o homem pode alcançar todas as suas imensas potencialidades de criar, desenvolver e transformar a sociedade e a realidade em que vive e convive com seus semelhantes. A conquista de tal direito, em suas bases atuais, decorre de intensas lutas travadas, notadamente por meio da Revolução Francesa e da independência das colônias norte-americanas.
No dizer de Bobbio, mencionando a doutrina de Kant, centrada na supremacia da liberdade, “...o homem natural tem um único direito, o direito de liberdade, entendida a liberdade como 'independência em face de todo constrangimento imposto pela vontade do outro', já que todos os demais direitos, incluído o direito à igualdade, estão compreendidos nele”.[8]
Em sua conformação inicial, e ante a exigência de que o Estado fosse basicamente um espectador passivo, na perspectiva do status negativus, na clássica concepção de Jellinek, caberia ao mesmo basicamente garantir aos cidadãos o exercício de suas liberdades, sendo inadmissível as tolhesse, sob pena de se apresentar arbitrário, dentro de uma visão tipicamente liberal. A respeito, leciona Paulo Bonavides:
“A vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos conduzirá sem óbices ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana. […]
Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente”.[9]
No dizer de Paulo Bonavides e Paes de Andrade, “no momento em que os homens deixaram de encarar os monarcas como únicos e exclusivos depositários do poder, que eles pretendiam lhes ser garantido por Deus, essas relações de poder tinham necessariamente de ser alteradas. Não havia mais lugar para o predomínio sem freios das relações pessoais de dominação”.[10]
A preservação da liberdade, em suas diversas formas, não pode se verificar em outro ambiente que não no Estado Democrático de Direito. O instituto da democracia, por sua vez, não se coaduna com restrições indevidas a que a voz de todos se faça ouvir. A participação popular se dá não apenas no momento em que se deposita o voto na urna, mas também quando a mesma participa, se fazendo ouvir, de um debate plural, caracterizado pela exposição e troca de ideias, resultando na formação de um consenso que a todos beneficia.
Tal participação não se restringe ao aspecto político, mas também abrange questões religiosas (as quais estão, inclusive, relacionadas à origem da própria liberdade de manifestação de pensamento), culturais, artísticas e científicas, sendo em todas essas esferas possibilitado ao homem expor suas convicções em ambiente de liberdade e pluralismo. A multiplicidade de pontos de vista sobre os mais diversos temas será necessariamente benéfica à humanidade.
Conforme André Ramos Tavares, “o certo é que o termo liberdade de expressão não se reduz ao externar sensações e sentimentos. Ela abarca tanto a liberdade de pensamento, que se restringe aos juízos intelectivos, como também o externar sensações”.[11] Trata-se de direito fundamental que se projeta à tutela da liberdade de comunicação através de diversos meios de imprensa, inclusive aqueles que dependem de concessão estatal.
Tem-se por intrínseco à democracia, nesse sentido, a garantia a todos os homens de que suas vozes serão necessariamente ouvidas, ainda que não se apresentem em consonância com a voz da maioria. Dissertando acerca da experiência democrática ateniense, Fustel de Coulanges salienta, em obra clássica, que “a discussão era indispensável porque todas as questões sendo mais ou menos obscuras, só a palavra podia iluminar a verdade. O povo ateniense queria que cada assunto lhe fosse apresentado sob todos os seus diferentes aspectos e que lhe mostrassem claramente os prós e os contras”.[12]
Do mesmo modo, poderão se expressar de forma artística, intelectual ou científica sem que possa o Estado tolhê-los previamente, inclusive através dos meios de comunicação social, se associando a expansão do direito em tela ao surgimento da imprensa, com a extraordinária consequência de difusão do conhecimento, democratizando-se o acesso à cultura. Extrai-se da doutrina:
“A luta pela liberdade de imprensa ocorreu pela primeira vez no mundo nas regiões setentrional e ocidental da Europa, incluindo a Irlanda e as Ilhas Britânicas, de onde ela se disseminou para as colônias norte-americanas e o Alto Canadá. (…) Esse ao menos foi o argumento apontado em um grande discurso em favor da liberdade de expressão, edição e leitura: um texto perspicaz, com evidente influência da Atenas clássica, chamado Aeropagítica, escrito pelo homem de letras e protestante inglês ...John Milton. (…) O povo, asseverou ele, deveria discutir, raciocinar, ler, inventar, discorrer, sobre coisas antes não discorridas ou escritas. (…) Essa é a verdadeira liberdade, quando homens nascidos livres, precisando aconselhar o público, podem falar livremente. Aquele que pode fazer isso e o faz merece elevada admiração. Aquele que não o pode e nem o fará fique em paz. O que pode ser mais justo em um Estado do que isso?”[13]
Em regimes totalitários, a perda do direito de expressão pelos indivíduos e a perseguição aos veículos de comunicação será uma das primeiras medidas implementadas pelos novos titulares do poder, que se pretendem perpétuos, rechaçando com violência seus críticos, de forma a não permitir o surgimento de focos de contestação ao poder ilegítimo, combatendo os mesmos, com idênticas intensidades, tanto o poderia da oposição bélica quanto o poderio da oposição pela palavra.
A ignorância e o arbítrio ditatoriais não subsistem em aniquilar por completo a livre circulação de ideias, o fazendo não apenas no campo político, mas também mediante a destruição de obras científicas, artísticas e produtos culturais em geral que, em sua exclusiva concepção, possam se revelar como questionadores aos padrões que a mesma pretende implantar. A respeito, Alberto Manguel, citando o auge do Estado Nazista Alemão, narra que
“em 10 de maio de 1933, em Berlim, diante das câmeras, o ministro da propaganda Paul Joseph Goebbels discursou durante a queima de mais de 20 mil livros para uma multidão entusiasmada de mais de 100 mil pessoas: 'Esta noite vocês fazem bem em jogar no fogo essas obscenidades do passado. Este é um ato poderoso, imenso e simbólico, que dirá ao mundo inteiro que o espírito velho está morto”.[14]
Se lutas históricas resultaram na superação no arbítrio, e no consequente reconhecimento do direito à livre manifestação de pensamento, como inerente ao jogo democrático, em perspectiva mundial, a realidade brasileira também não se apresenta distinta. Embora nominalmente assegurado em todos os textos constitucionais, chegou o referido direito a ser completamente suprimido, pouco ultrapassando os vinte anos o período de vivência democrática no Brasil, com reflexos inegáveis no direito sob exame.
Os períodos ditatoriais na história brasileira, notadamente entre os anos de 1937 a 1945 (ditadura Vargas) e 1968 a 1984 (ditadura militar), para nos mantermos apenas no período republicano, foram caracterizados pela intensa perseguição a opositores políticos, que buscavam a implantação de um regime democrático e/ou um modelo político alternativo, bem como a diversas manifestações culturais, artísticas, científicas e religiosas.
Não se pode ignorar, de fato, inclusive para não repeti-las, perseguições infligidas a artistas em razão de músicas, filmes e peças de teatro, entre outras, tão somente porque, na visão dos censores, as mesmas, direta ou indiretamente, visavam a derrubada do regime implantado, promoviam a crítica a líderes ditatoriais ou poderiam ensejar na população a formação de uma consciência crítica. As palavras, assim, se revelavam tão perigosas como as armas.
Para justificar as restrições estatais, fornecendo substrato jurídico à atuação que ensejou a censura, foram editadas as Leis nº 5.520/67, posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, e nº 5.536/68, ambas estabelecendo a censura sobre a manifestação do pensamento e informação, a segunda o fazendo especificamente em relação a espetáculos teatrais e cinematográficos, legitimando restrições sob o fundamento de “subversão política e social”, entre outros.
Com a abertura política, notadamente a partir do governo Geisel, esfumando-se os controles incidentes sobre a imprensa, assume a mesma relevante papel na redemocratização nacional. A respeito, leciona Ronaldo Costa Couto que
“relativamente livre e depois livre, a imprensa foi instrumento fundamental da ampliação e vitalização da abertura política. Crescentemente, ela foi se libertando da cultura do medo e do silêncio impostos pela força. Os principais jornais passam a avaliar e discutir a política econômica do governo, denunciar casos de corrupção, de tortura, de mortes, exigindo averiguação e combatendo a violência”.[15]
Com a superveniência da Constituição Federal de 1988, foi inserido no extenso rol previsto no artigo 5°, em capítulo dedicado aos direitos e deveres individuais e coletivos, o direito de todos à todos a livre manifestação de pensamento, vedando contudo o anonimato. Prevê ainda em seu inciso IX, ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. As normas em tela, assim como as demais introduzidas pela CF/88, decorrem de um contexto de redemocratização nacional.
Em seu artigo 220, § 2º, a Lex Magna também estabelece ser vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, passando o Constituinte a dispor acerca do exercício da liberdade de informação jornalística e da manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, o que representa uma proteção mais intensa à liberdade de discurso público, o qual deve necessariamente se processar em ambiente livre, limitando-se o poder estatal com o escopo de permitir o alcance de todas as potencialidades individuais. Colhe-se da doutrina:
“A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar de uma sociedade monista que mutila os seres e engendra as ortodoxias opressivas. O pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos. Optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos”.[16]
2.2. A dignidade da pessoa humana
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1°, ao consagrar entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, entre outros, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político, traz um importante elemento que direciona a interpretação dos direitos e garantias fundamentais, contemplados a partir do seu artigo 5º, dos quais não pode o intérprete se desvincular.
Lecionando acerca da dignidade da pessoa humana, erigida a fundamento constitucional dos direitos ali asssegurado, traço que assinala o constitucionalismo na pós-modernidade, Carlos Roberto Siqueira Castro destaca que “pode-se afirmar que o Estado Constitucional Demorático da Atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio da dignidade do ser humano”.[17]
Na lição de Jorge Miranda, após ressaltar a unidade axiológica do texto da Constituição Portuguesa, “a Constituição, confere uma unidade de sentido (...) ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, (...), ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado”.[18]
Independentemente de qualquer concepção que se adote no que tange à origem dos direitos fundamentais, não se pode deixar de reconhecer que os mesmos não podem deixar de ser considerados como autênticos produtos inerentes à dignidade da pessoa humana, decorrentes do status superior do homem em relação a todos os demais seres vivos, salientando a doutrina cristã, a respeito, que o homem teria sido criado à imagem e semelhança do seu próprio criador.
Superada a concepção de origem metafísica dos direitos fundamentais, as diversas lutas travadas pelo homem ao longo dos séculos resultaram no reconhecimento de um mínimo necessário de direitos para que possa se desenvolver enquanto tal, pelo que se pode afirmar que os mesmos têm sede axiológica precisamente na dignidade do homem, tornando-o diferenciado em relação a todos os bens jurídicos tuteláveis pelo ordenamento. Sobre o tema, leciona Fábio Konder Comparato:
“Na perspectiva da antropologia filosófica, a dignidade humana está ligada, como foi visto, à sua condição de animal racional, nas diferentes manifestações da razão – especulativa, técnica, artística e ética –, e à consciência, individual e coletiva, dessa sua singularidade no mundo.
Se a dignidade da pessoa humana, como acabamos de ver, é o fundamento de toda a vida ética, desse fundamento ou raiz mais profunda decorrem, logicamente, normas universais de comportamento, as quais representam a expressão dessa dignidade em todos os tempos e lugares, e têm por objetivo preservá-la”.[19]
Inegável, portanto, o forte conteúdo axiológico da opção tomada pelo Constituinte. Segundo Glauco Barreira Magalhães Filho, “o direito foi criado para o homem, que é fim e não meio. O princípio da dignidade da pessoa humana, embora esteja consagrado na Constituição, é um valor suprapositivo, pois é pressuposto do conceito de Direito e a fonte de todos os direitos, particularmente dos direitos fundamentais”.[20] Segundo Ingo Sarlet,
“O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças”.[21]
Destaca-se que, por se tratar de conceito jurídico indeterminado, os quais permeiam os textos constitucionais, como a própria dignidade, justiça social, entre outros, por vezes resultantes da necessidade de serem firmados compromissos políticos, com inegáveis reflexos jurídicos, demandando do intérprete uma autêntica complementação de significado, indispensável à sua aplicabilidade, em um processo do qual não se pode afastar a valoração na hermenêutica.
Assim, para que se aplique a norma, dando concreção à linguagem adotada pelo legislador, sempre exigir-se-á do intérprete seu preenchimento, a partir da pré-compreensão do texto normativo. Na lição de Germana de Oliveira Moraes, “as características de imprecisão e contextualidade do significado das palavras, presentes na linguagem comum, projetam-se na linguagem jurídica e geram dificuldades no processo de interpretação e aplicação dessas normas”.[22]
Embora se trate de conceito de valor, será fácil, embora se apresente revestido de subjetividade, constatar uma série de situações nas quais o direito à dignidade será claramente violado, afirmando que determinadas condutas praticadas pelos particulares e pelo Estado se apresentam frontalmente ofensivas. A abertura do conceito não poderá ser utilizada, dessa forma, para ocultar ou dissimular sua violação.
Após assinalar traduzir o mesmo o valor fundamental da pessooa humana, Edilsom Pereira de Farias registra que “o princípio em epígrafe é um princípio semântico e estruturalmente aberto, de 'abertura valorativa', o que faz com que o mesmo seja em grande parte colmatado pelos agentes jurídicos no momento da interpretação e aplicação das normas jurídicas”.[23]
Não obstante se revista de forte carga axiológica, não se pode deixar de associar à dignidade da pessoa humana o reconhecimento do homem como destinatário do Direito, elemento basilar da sociedade. Desse modo, a violação a tal direito elementar do homem atingirá de forma violenta toda a humanidade, razão pela qual deve o jurista buscar sua incessante tutela, o fazendo através de medidas concretas, inclusive quando da promoção, aplicação e interpretação de todos os direitos fundamentais. Extrai-se da doutrina:
“A dignidade da pessoa humana, hoje, não é mais um conceito transcendental, expressão de uma necessidade metafísica. Expressa isso sim, uma imprescindibilidade da condição humana. A sua concretização é uma imposição dos tempos atuais do grau de desenvolvimento das sociedades, do nível de aprofundamento da investigação cientifica a que se propõe a nascente dogmática dos direitos fundamentais.
Isto posto, resta claro que a dignidade da pessoa humana, sobre ser limitadora da ação do Estado, juntamente com os direitos fundamentais se apresenta como um dos pilares do moderno, pós-positivista e por conseguinte, concretizador, direito constitucional”.[24]
A relevância do tema sob compreensão pode ser evidenciada quando se constata que, imediatamente após e em reação às atrocidades cometidas na 2ª Guerra Mundial, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assentou que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
O princípio em tela garante que o homem sempre seja tratado enquanto tal, e não como mero objeto, seguindo o paradigma proposto por Kant. Ao fazê-lo, não se poderá olvidar da força normativa do conceito, que deverá ser encarado como autêntica norma jurídica, e não mera declaração de princípio de cunho político, enquanto carta de intenções e propósitos do Constituinte. A força normativa do conceito de dignidade da pessoa humana lhe assegura eficácia plena e imediata, não se podendo equipará-lo às chamadas normas programáticas.
Importante ainda destacar que, dada sua positivação no texto constitucional, com o status de fundamento da República Federativa do Brasil, juntamente com valores como a soberania e a cidadania, todos os demais direitos deverão ser interpretados segundo suas disposições, sob pena, em caso de exegese que a olvide ou mesmo contrarie, ter-se a prática de ato inconstitucional. Sobre o papel da dignidade da pessoa humana, colhe-se da jurisprudência:
“PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. REQUISITOS. LAUDO PERICIAL NÃO VINCULATIVO. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. LIMITE MÍNIMO. ARTIGO 20, § 3º, DA LEI Nº 8.742/93. COMPROVAÇÃO. OUTROS FATORES. CONDIÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO PROBATÓRIA. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. I - As conclusões da perícia não vinculam o julgador, o qual pronuncia sua decisão de acordo com o princípio do livre convencimento motivado. II - A jurisprudência desta Corte admite a concessão do benefício assistencial, mesmo diante de laudo pericial que ateste a capacidade para a vida independente. III - Assentado no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, bem como no princípio do livre convencimento motivado do Juiz, o limite mínimo estabelecido no artigo 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93 não impede que o julgador faça uso de outros fatores que tenham o condão de comprovar a condição de hipossuficiência”.[25]
Para Ricardo Maurício Freire Soares, lecionando acerca da relevância hermeêutica do tema, a dignidade seria o primeiro fundamento do sistema constitucional posto, representando ainda autêntico arcabouço de garantia dos direitos fundametais, apontando que “a isonomia serve, é verdade, para gerar equilíbrio real, porém visando concretizar o direito à dignidade. É a dignidade que dá a direção, o comando a ser concretizado primeiramente pelo intérprete do do Direito”.[26]
Reconhecida como base axiológica e hermenêutica dos direitos fundamentais outorgados ao homem, o que acarretará forte impacto no tema sob exame, ressalta Gilmar Ferreira Mendes que “há de se convir que os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações de exigências do princípio da dignidade da pessoa humana”.[27]
A dignidade será construída não apenas através de atuação estatal positiva, no sentido de fornecer a todos condições minimas de saúde, educação, segurança e moradia, mas através de ações que visem evitar abusos no exercício de direitos pelos cidadãos. Se é certo representar autêntico limite aos limites dos direitos fundamentais, também é certo que obstaculizará o uso dos mesmos para a violação de direitos fundamentais de terceiros.
Seu campo de atuação, seja através da efetivação do direito, seja por ocasião da hermenêutica dos direitos fundamentais, estender-se-á à proteção dos interesses das minorias, de grupos sociais marginalizados e, inclusive, para evitar que, a pretexto do exercício de um direito de forma abusiva, se atinja a esfera mínima de proteção na qual se podem abrigar todos os indivíduos. A respeito, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamentoconstitucional vigente em nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. - O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais”.[28]
A liberdade de imprensa, reflexo da livre manifestação de pensamento, assim, deverá se orientar segundo o príncípio da dignidade da pessoa humana, pelo que, em seu exercício, não poderá o homem ser tratado enquanto mero objeto, devendo haver, relativamente a seu tratamento, adequada preservação da imagem e respeito à sua própria condição de homem.
Não se poderá usar o homem, pois, como instrumento para a mera obtenção de audiência e sensacionalismo, a pretexto de se promover a mera difusão de informação, tanto mais quando se promove tal prática com o mero intuito de obtenção de lucro. O exercício da liberdade fundamental viria a se chocar, pois, com a sua própria fonte normativo-axiológica, in casu, a dignidade da pessoa humana.
Cabe salientar ainda que o atual quadro fático que atravessamos no Brasil, vivendo em um país plenamente democrático, no qual se observam valores como o pluralismo político e existência de grandes grupos midiáticos, com pouca ou nenhuma restrição estatal, não autoriza sejam considerados como atos de censura as restrições que venham a ser impostas à imprensa em decorrência da tutela a outros direitos fundamentais.
Trata-se de quadro fático bastante semelhante ao apontado por Canotilho no que tange à República Portuguesa, notadamente no que tange à qualidade da programação, especialmente a televisiva, destacando o mesmo figurar, “de um lado, o coro contra o “'telelixo'” e a degradação da dignidade das pessoas. Do outro lado, o decisivo aplauso à experimentação televisiva dos “'reality shows'”.[29]
Embora não se possa atribuir a qualquer pessoa a possibilidade de restringir a programação televisiva, sob o fundamento de que apresenta má-qualidade, ou mesmo que deseduca, ainda em se tratando de concessão pública, a própria Constituição Federal de 1988 já oferece uma série de balizas normativas que justificam restrições que venham a ser impostas, as quais também decorrem do princípio em exame, como o artigo 220, § 3º, e o artigo 221, da Constituição Federal de 1988.
Os conflitos que venham a surgir entre o direito à liberdade de imprensa e os demais direitos tutelados, tais como a proteção ao menor e à família, intimidade, honra, etc., deverão ser julgados, assim, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Daí não se poderá extrair, contudo, venha a ser absolutamente cerceada, inclusive porque o referido direito decorre e se associa à própria dignidade, que também se manifesta através da livre exposição de ideias, à luz de um contexto de máximo pluralismo. Restringir a impresa poderá resultar tanto na preservação quanto na violação do direito à dignidade.
A dificuldade acerca da compreensão do tema emerge da absoluta impossibilidade de estabelecer, a priori, um método ou mesmo a edição de uma norma, ainda que de status constitucional, que venha a resolver os problemas emergentes, exatamente porque estarão em choque normas com estrutura principiológica, imbuídas de forte conteúdo axiológico. A respeito, colhe-se da doutrina que “somente o exame meticuloso e casuístico da hipótese poderá fornecer o caminho a seguir”.[30]
Tal fato decorre ainda da própria estrutura normativo-principiológica, as quais, ao contrário das normas regras, são aplicadas não na base do tudo ou nada, mas sim visando a realização do enunciado contindo na norma da melhor forma possível. Os conflitos surgidos entre normas que tutelem bens jurídicos diversos não serão resolvidos no plano da validade, do que resultaria a eliminação de uma das normas, mas sim no plano do valor. Sobre o tema, leciona Robert Alexy:
“O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes”.[31]
A resolução para os conflitos entre princípios se dará, pois, segundo a técnica da ponderação de interesses, através da qual se atribuem, em razão da observação dos fatos à luz de diversos critérios, pesos distintos a cada uma das normas envolvidas, de forma a otimizar os mandamentos colidentes, buscando sempre que possível não eliminar por completo, no caso concreto, a aplicação de um dos princípios, como se expõe a seguir.
2.3. A ponderação de interesses
Prescreve a lei fundamental a necessidade de observância a outros dispositivos também igualmente relevantes, como a honra, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, sem que se possa falar, no caso brasileiro, da existência de qualquer direito fundamental superior aos demais. No dizer de Dimoulis e Martins, “o constituinte brasileiro, seguindo uma prática geral, não desejou criar direitos 'superiores' ou 'absolutos'. Todos são proclamados no mesmo texto, havendo equivalência normativa”.[32]
A existência de restrições ao direito à livre manifestação de pensamento, ainda que se trate de medida excepcional, decorre da própria natureza das relações jurídicas, caracterizadas pela bilateralidade, com a assunção de deveres e os direitos que daí emergem. Assim, ao titular do direito não serão conferidas apenas direitos, ao mesmo tempo que o exercício de deveres não impõe ao obrigado uma perspectiva necessariamente negativa. Sobre o tema, colhe-se da doutrina:
“Nós aceitamos estas conclusões, mas chegamos a elas por meio de outras considerações que se referem essencialmente ao caráter bilateral do direito (o direito é uma relação que contrapõe, pelo menos, dois sujeitos, limitando-lhes respectivamente a actividade; por isso as determinações jurídicas envolvem sempre a possibilidade de se fazerem valor contra alguém).
O direito, pois, segundo Kant, reduz-se a disciplinar as acções externas dos homens e a tornar possível a sua coexistência. Define-o assim: o Direito é o conjunto das condições segundo as quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos restantes, de harmonia com uma lei universal de liberdade”.[33]
O Direito representa elemento indispensável ao convívio em sociedade, já que, através das normas jurídicas, se compartilham direitos e deveres, bem como liberdades e responsabilidades. Sendo o homem um ser social, no exercício de seus direitos não poderá agir de forma abusiva, sob pena de grave ofensa às normas jurídicas. Assim é que, na lição de Arnaldo Vasconcelos, existir implica coexistir, ou seja, limitação recíproca de liberdade, apontando ainda que “a norma jurídica objetiva o propósito histórico de conciliar o individual com o social”.[34]
Nos termos do artigo 34 do Pacto de São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, reconhecendo a necessária conciliação entre os direitos fundamentais no mesmo previstos, “os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática”.
Ora, não consagrando as normas, sejam regras ou princípios, direitos absolutos, o mesmo se poderá afirmar em relação às normas inseridas no texto constitucional. De fato, as disposições normativas contidas na Lex Magna por vezes ver-se-ão envolvidas em conflitos com outras também inseridas no seu texto, sem que se apresente possível a resolução dos problemas decorrentes segundo o recurso aos tradicionais critérios cronológico, hierárquico ou da especialidade.
Pode-se afirmar que, relativamente aos conflitos envolvendo a liberdade da imprensa ou a livre manifestação de pensamento em geral, nem a imprensa poderá cometer abusos no exercício do seu direito, nem as limitações impostas ao mesmo poderão ser tão intensas que resultem em olvidar completamente essa importante faceta da dignidade da pessoa humana, que vem a ser a livre exposição do seu pensar.
A técnica a ser empregada tem sido denominada de ponderação de interesses, através da qual, com base nos elementos fáticos e jurídicos relacionados ao caso concreto, se realiza verdadeira pesagem das normas em conflito, para decidir qual das duas, e que medida, devem prevalecer no caso concreto. A mesma é conceituada pela doutrina como
“uma linha de raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas, associá-lo a um determinado valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como referência máxima as decisões fundamentais do constituinte”.[35]
Ana Paula de Barcellos sustenta que “de forma muito geral, a ponderação pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis (do inglês 'hard cases'), em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado”.[36] Jane Reis Gonçalves Pereira destaca que o vocábulo “tem sido usado para designar, de forma genérica, as diversas operações hermenêuticas consistentes em sopesar bens, valores, interesses, normas ou argumentos”.[37]
A necessidade de resolução dos conflitos, passando pela conciliação dos interesses em jogo, demanda do intérprete, embora por vezes abrindo margem a decisionismos, inafastáveis ante a utilização, pelas normas-princípio, de conceitos abertos e indeterminados, verificar, à luz do caso concreto, qual princípio deverá prevalecer, e em que extensão o outro poderá ser limitado.
Em outra situação fática, contudo, envolvendo os mesmos princípios em conflito, a solução à controvérsia poderá ser inteiramente diversa, sendo que, mesmo em situações fáticas idênticas, convicções pessoais e valores poderão influenciar o julgador em sentido oposto ao inicialmente afirmado, o que decorre da próprie generalidade da lei em face de qualquer situação fática em concreto.
Destacando acerca do peso que cada julgador pode conferir aos valores em litígio, com base em suas próprias tradições e estilo de vida, sustenta George Marmelstein que “o grande problema é que toda ponderação é, em última análise, uma escolha que resulta no sacrifício de um valor importante em nome da proteção de um valor alegadamente ainda mais importante”.[38]
Embora por vezes tal hipótese não se apresente possível, não se deverá atribuir maior peso a um princípio, em detrimento do outro, caso a intensidade da restrição ao princípio reputado como inferior pelo intérprete se apresente de tal modo grave que resulte em sua completa aniquilição ou perda total de aplicabilidade, devendo ser procuradas medidas que busquem compatibilizar as normas em jogo.
O entendimento em tela decorre ainda do princípio da concordância prática, evitando o sacrifício de bens jurídicos também reputados relevantes pelo Constituinte, o qual, como acima se viu, não outorgou a qualquer direito fundamental status hierarquicamente superior aos demais. Pode-se afirmar representar a ponderação instrumento para a efetivação do princípio da concordância prática ou da harmonização. Na lição de Francisco Davi Fernandes Peixoto, o princípio “atua no problema da tensão ou conflito em concreto de bens e valores, confronta-os a fim de saber qual deles prevalece, coordenando-os no caso concreto”.[39]
A necessidade de evitar decisionismos, ou seja, interpretações motivadas apenas pela convicção pessoal do julgador, em detrimento de uma análise aprofundada dos princípios valores e situações fáticas em curso, decorre do fato de que fatores extrínsecos ao Direito incidem de forma decisiva. Sobre o tema, leciona Francisco Gerson Marques de Lima:
“A exemplo do que acontece com o Direito em geral, existem fatores não jurídicos a informarem a maneira e a razão de se aplicar o Direito Constitucional. Há elementos psicológicos, morais, filosóficos, que compõem a formação mental do hermeneuta e que terão grande repercussão nas suas concepções. Estas concepções são, talvez, até mais vinculativas do que qualquer critério ou princípio de Hermenêutica. Afinal, o ser humano não consegue se desvencilhar tão facilmente das suas origens, da sua formação, dos traços de sua personalidade”.[40]
A constatação da incidência de fatores extrajurídicos com demasiada pode ser evidenciada quando se vislumbram conflitos envolvendo a livre manifestação de pensamento, ainda que, do outro lado, estejam em jogo valores e direitos extremamente relevantes, tais como a proteção à infância e à juventude, à família e à própria dignidade da pessoa humana, por vezes vilipendiada ante programação de qualidade no mínimo duvidosa.
Nesses casos, tem sido prática a veiculação de longos e inflamados editoriais, nos quais se conclama a sociedade a se opor às restrições impostas à atividade midiática, muitas vezes confundindo o interesse autêntico na livre divulgação de informações, de forma a contribuir a um debate político ou cultural plurais, com o interesse meramente empresarial de grupos em geral estruturados segundo um mercado claramente marcado pela existência de um oligopólio, confundindo a liberdade de imprensa com a liberdade de empresa.
Registre-se não haver se verificado no Brasil, desde o advento da redemocratização, qualquer ato tendente a ensejar a cassação de concessões públicas em favor de emissoras de rádio e televisão, seja motivado por suposta e inconstitucional perseguição política, seja em razão de se apontar fatos que realmente ensejariam a perda do direito à concessão, nos termos da legislação regente da matéria, tendo se verificado profundas transformações no quadro fático atinente ao instituto. Registrando fatos passados nos Estados Unidos da América, leciona Dworkin:
“No passado, as pessoas defendiam a liberdade de expressão para proteger os direitos de agitadores que protestavam contra o governo, de dissidentes que resistiam a uma igreja estabelecida ou de radicais que faziam campanha por causas políticas pouco populares. Evidentemente, valia a pena lutar pela liberdade de expressão, e isso ainda acontece em muitas partes do mundo, onde esses direitos praticamente não existem. Mas, nos Estados Unidos de hoje em dia, os partidários da liberdade de expressão vêem-se defendendo racistas que gritam 'Crioulo!', nazistas que desfilam com a suástica ou – na maioria das vezes – marmanjos que se dedicam a olhar as fotografias de mulheres nuas com as pernas abertas”.[41]
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, ao declarar inconstitucional a Lei nº 5.250/67, sob o fundamento de sua incompatibilidade com a Constituição Federal de 1988, trazendo mecanismos de censura, assentou a necessidade de se reconhecer a imprensa livre como consequência do princípio da dignidade da pessoa humana.
Embora se possa aplaudir tal decisão quanto a outros fundamentos (ainda que a intepretação conforme da norma acima referida talvez se apresentasse suficiente aos fins almejados), não se pode falar na existência de censura judicial, já que a qualquer pessoa que se julgue violada ou na ameaça de sofrer violação à sua própria dignidade, por ato da imprensa, se deve assegurar, como garantia igualmente constitucional, o recurso ao Poder Judiciário, se abrindo as diversas vias processuais para defesa e reforma de decisões apontadas como prejudiciais, notadamente por se tratar o Brasil de um país democrático e plural, que protege a todos os direitos igualitariamente.
Não há que se falar, pois, na existência de suposta censura judicial, notadamente considerando que a tutela meramente reparatória não se apresenta capaz de coibir abusos verificados, além de pouco ou em nada contribuir para a restauração da dignidade dos eventuais ofendidos. Sobre o tema, colhe-se da doutrina:
“Dessa forma, entendo admissível, diante da legislação brasileira, se adote medidas de restrição à liberdade de informação, e mesmo à de expressão, liberdade de imprensa, mas somente para resguardar os valores constitucionais da intimidade, da honra, da imagem, da proteção à infância e à juventude e desde que tais restrições enquadrem-se na órbita do necessário e do proporcional. Também quanto à informação por rádio e televisão, admissível a restrição para proteção dos 'valores éticos e sociais da pessoa e da família' (Constituição, artigo 221, inciso IV).
E como justificar-se tais restrições diante dos dispositivos que vedam a censura? (Artigo 5º, inc. IX, e artigo 220 e seu parágrafo 2º). Em primeiro lugar, a proibição de censura dirige-se aos poderes administrativos e não ao Poder Judiciário, que não tem como exercer censura a priori, mas, como é de seu ofício, compor interesses em conflito concretamente invocados, Em segundo, a decisão do Judiciário não se insere como censura, desde que não se afaste das hipóteses em que a Constituição admite a limitação da liberdade de informação, porque essas hipóteses não constituem censura, mas limitações constitucionais da liberdade enfocada”.[42]
A análise da programação televisiva veiculada evidencia a inobservância, notadamente pelo Poder Executivo, de normas postas no texto constitucional, notadamente em seu artigo 221, incisos I e IV, sem que sejam adotadas medidas efetivas para o fim de combate aos abusos praticados, já que a norma não concede direitos para viabilizar meios visando a prática de violações a direitos de terceiros. Extrai-se da doutrina:
“Também no caso brasileiro, o exagerado cuidado em se assegurar a intangibilidade da comunicação social, visível nos longos prazos das concessões, no quorum qualificadíssimo para a sua não-renovação e mesmo na necessidade de decisão judicial para o cancelamento da concessão antes de esgotar-se o respectivo prazo, tornou-se o principal motivo das múltiplas mazelas que afetam atualmente a atividade de rádio e televisão no Brasil”.[43]
Os demais direitos constitucionalmente tutelados conformam, pois, o âmbito normativo e de eficácia direito fundamental à livre manifestação de pensamento, já que, além de não haver superioridade hierárquica entre os direitos fundamentais (ao menos no que tange àqueles diretamente decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana), notadamente considerando que todos nascem em e de uma única norma, in casu, a Constituição Federal.
Patente situação de abuso se verifica quando se analisam fatos apontados pelo Ministério Público Federal, através de ação civil pública ajuizada pela Procuradoria da República na Paraíba, ante a veiculação, por emissora de TV local, de cena de estupro de uma criança, conforme fatos apontados nos autos do Processo nº 0007809-20.2011.4.05.8200, em curso perante a 3ª Vara Federal da Seção Judiciária da Paraíba.
Na referida ação, aponta o parquet haver sido veiculada, entre as 12:00h e 13:00h do dia 30 de setembro de 2011, pelo programa de televisão “Correio Verdade” cena de estupro de uma adolescente, filmada por um comparsa do autor do crime, a partir de investigações realizadas pelo MPF nos autos de inquérito civil público que buscava apurar a possível ocorrência de burla à classificação indicativa determinada pelo Ministério da Justiça. A respeito, extrai-se da mesma:
“...não se encontraria, no país inteiro, exemplo mais cabal de exploração da miséria humana, da sexualidade pervertida, de desrespeito com os valores da sociedade e da família e de atropelo da dignidade de uma criança por meio de veículo de comunicação, do que este”. Tais cenas, disfarçadas com recurso de tênue desfoque, mostradas no horário do almoço, “transformam a casa de milhares de cidadãos paraibanos em palco para a sexualidade pervertida e criminosa, além de tripudiar com a dignidade e os direitos da personalidade da infeliz vítima.
uma concessão pública foi utilizada como instrumento da violação de direitos fundamentais da pessoa humana, e exatamente do segmento mais fragilizado da sociedade – as crianças e adolescentes. Nenhuma justificativa de informação pública pode socorrer os autores de tamanha afronta, absolutamente desnecessária, que ofendeu a dignidade da pobre vítima, ampliando seus ultrajes e vergonha, e a dignidade dos telespectadores, transformados, em pleno horário do meio dia, em espectadores de um 'snuff movie' que seria proibido até mesmo no horário da madrugada ou no mais recôndito dos cinemas pornôs”.[44]
Foi negada a concessão do pedido de antecipação de tutela, posto que não vislumbrada a presença do perigo na demora, tendo a julgadora considerado não haver se verificado, entre a data do fato e a data da decisão judicial, a reiteração da conduta ilícita, além de haver o Ministério das Comunicações imposto à emissora multa na importância de R$ 4.657,25 (quatro mil, seiscentos e cinquenta e sete reais e vinte e cinco centavos).
Não se trata, ademais, de sustentar tentativa de tutelar a programação televisiva com base na substituição da vontade da entidade de imprensa pelo que consideram mais adequados o Poder Judiciário, o Poder Executivo ou o Ministério Público, mas sim de reconhecimento da ocorrência de um abuso de direito fundamental, decorrente de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual se poderia falar não apenas na punição ao ilícito praticado, mas sim na própria proibição da veiculação do programa, o qual deixa de apresentar qualquer conteúdo jornalístico, informativo ou de promoção cultural.