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O caso Escher e outros vs. Brasil e o sigilo das comunicações telefônicas.

A fundamentação como garantia de efetividade dos direitos humanos

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24/06/2013 às 10:49
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4. A violação da obrigação de respeitar a liberdade de associação (art. 1.1 c/c 16 da CADH)

A Comissão alegou que a interceptação, monitoramento e gravação das comunicações telefônicas das vítimas foram realizados com o objetivo de exercer o controle de suas atividades associativas, e que a publicação dessas comunicações, resguardadas por segredo de justiça, foi efetuada expressamente para deslegitimar o trabalho das associações de que faziam parte as vítimas. Tais violações teriam configurado um modo de restrição velada à liberdade de associação.

Os representantes aduziram que a criminalização e perseguição por parte dos agentes do Estado feriu o direito à livre associação dos membros da COANA e da ADECON e impediu que as entidades lutassem pela promoção dos direitos humanos, especialmente pelo direito à terra. Tais associações perderam prestígio junto a empresas e bancos, o que impossibilitou a obtenção de novos recursos financeiros.

O Brasil alegou que a Comissão não apresentou fatos concretos que denotassem a efetiva violação do direito de associação, que não se confunde com direito à reunião[21]. Para o Estado, não haveria provasda ligação entre a COANA e a ADECON e o MST, de modo que o argumento de que as interceptações tiveram como objetivo restringir a atuação dos sem-terra ou perseguir seus líderes não tinha coerência. A interceptação telefônica não violaria, por si só, o direito à liberdade de associação, que só existiria quando houvesse irregularidades nos procedimentos e quando fossem causados danos. O Brasil salientou, por fim, que implementou diversas medidas em âmbito nacional para incentivar as associações de trabalhadores rurais e proteger os defensores dos direitos humanos[22].

O Tribunal indicou que o artigo 16.1 da Convenção Americana estabelece queaqueles que estão sob a jurisdição dos Estados-partes têm o direito de associar-selivremente com outras pessoas, sem intervenção das autoridades públicas que limitemou maculem o exercício do referido direito. Trata-se, pois, do direito a agrupar-se com afinalidade de buscar a realização comum de um fim lícito, sem pressões ou intromissõesque possam alterar ou desvirtuar tal finalidade.Além das obrigações negativas mencionadas, a Corte Interamericana observouque da liberdade de associação também derivam obrigações positivas de prevenir osatentados contra a mesma, proteger a quem a exerce e investigar as violações a essaliberdade. Essas obrigações positivas devem ser adotadas inclusive na esfera de relaçõesentre particulares, se o caso assim exigir.

A Corte destaca que a Convenção Americana reconhece o direito de associar-selivremente e, ao mesmo tempo, estabelece que o exercício de tal direito pode estarsujeito a restrições previstas por lei, desde que persigam um fim legítimo e resultem necessárias em uma sociedade democrática. Dessa forma, osistema estabelecido pela Convenção resulta equilibrado e idôneo para harmonizar oexercício do direito de associação com a necessidade de prevenir e investigar eventuaiscondutas que o direitointerno tipifique como delitivas.

O Tribunal considerou provado que, no caso Escher, o Estado interceptou egravou, sem cumprir os requisitos legais, as conversas telefônicas pertencentes a duasorganizações sociais. Não cumpriu sua obrigação de custodiar as informações privadasinterceptadas e divulgou-as sem autorização judicial, tudo isso violando o artigo 11 daConvenção, em relação com o artigo 1.1 da mesma.

Apesar deo Estado ter afirmado que a interceptação das comunicações não era contrária àliberdade de associação, pois perseguia um fim legítimo – a investigação do delito –, nãose evidenciounos autos que as finalidades declaradas pela autoridade policial noseu pedido de interceptação telefônica (suposta investigação da morte de um dosintegrantes de COANA e supostos desvios de recursos públicos)fossem as queefetivamente se perseguiam.

A Corte verificou que nenhum dos fragmentos ressaltados pela Polícia Militar no relatório das fitas gravadas tinha qualquer relação com o propósito investigativo indicado no pedido de interceptação. Até o Ministério Público teria reconhecido que a interceptação não possuía objetivo determinado, mas visava a monitorar as atividades do MST.

A Corte notou, portanto, que a ingerência do Estado nas comunicações da COANA e da ADECON além de não cumprir com os requisitos legais, não atendeu ao fim pretensamente legítimo ao qual se propunha, ou seja, a investigação criminal dos delitos alegados, e trouxe consigo o monitoramento de ações dos integrantes de tais associações.

Através dos depoimentos pessoais das vítimas, o Tribunal reputou provado que o monitoramento ilegal e imotivado das comunicações telefônicas das associações e sua posterior divulgação causaram temor, conflitos e afetações à imagem e à credibilidade das entidades.Dessa maneira, alteraram o livre e normal exercício do direito de associação dos membros da COANA e da ADECON, implicando uma interferência contrária à Convenção Americana.Assim, o Estado violou o direito à liberdade de associação reconhecido no artigo 16 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 do referido tratado.


5. A violação da obrigação de proteger as garantias judiciais e de garantir o pleno exercício da proteção judicial (arts. 8.1 e 25.1 c/c 1.1 da CADH)

A inexistência de um “recurso” efetivo contra as violações dos direitos reconhecidos pela Convenção Americana constitui uma transgressão desse mesmo instrumento pelo Estado-parte, deixando as pessoas indefesas. Não basta que os recursos existam formalmente, mas também é preciso que seja efetiva sua aplicação pela autoridade competente.

No caso Escher, a Comissão Interamericana aduziu que as vítimas buscaram os tribunais pátrios para conseguir a proteção aos seus direitos, porém não obtiveram uma resposta satisfatória. Segundo o órgão, dos litígios internos emergiu “coisa julgada fraudulenta”, que resulta de um litígio no qual não são respeitadas as regras do devido processo ou no qual os juízes não atuam com independência e imparcialidade.

Instados, os representantes sustentaram que o Estado não assegurou uma investigação administrativa eficiente para apurar a responsabilidade dos agentes públicos envolvidos e não garantiu um “recurso judicial”, com prazo razoável, para reparar civilmente os danos causados. Os representantes alegaram que a juíza Khater violou a imparcialidade, ao outorgar 45 mandados de reintegração de posse em favor de latifundiários da região noroeste do Paraná, com os quais teria vínculos de amizade, tudo em um período de tempo mínimo, o que teria influenciado no deferimento dos pedidos de quebra de sigilo telefônico. O mesmo se aplicaria ao TJPR, que não iniciou um procedimento para estabelecer a responsabilidade da magistrada no âmbito administrativo, apesar das fortes evidências de que ela havia cometido uma ilegalidade.

Concluíram que a juíza Khater não apenas não foi considerada responsável pela sua conduta, como também foi premiada tanto no âmbito funcional, ao ser promovida para a Comarca de Londrina, como na esfera política, ao ser condecorada pelo Poder Legislativo com o título de cidadã honorária do Estado do Paraná.

O Brasil defendeu-se, sustentando que não houve violação, porque as vítimas dispunham de dois “recursos” no direito interno (recurso ordinário constitucional e habeas corpus) e deles não fizeram uso.

O Estado reconheceu que a decisão judicial que autorizou a interceptação das linhas telefônicas se deu por um erro da Juíza no que se refere ao procedimento legal que deve ser seguido. Porém, o erro foi investigado nas esferas penal, administrativa e civil, tendo ficado estabelecido que a juíza não agira de má-fé ou com dolo, não havendo ilicitude. Desse modo, não seria o caso de ser analisado novamente na esfera internacional. Além disso, oex-secretário de segurança foi absolvido em 2ª instância e o Mandado de Segurança impetrado tramitou de acordo com o devido processo legal.

Segundo o Brasil, a discussão acerca da imparcialidade e independência do Tribunal de Justiça do Paraná para julgar o caso só foi alegada pelos representantes, e não fez parte do Relatório de Mérito da Comissão Interamericana. Além disso, como houve apuração do caso junto à Corregedoria do TJPR não havia elementos que apontassem para as violações apontadas, razão pela qual a Corterejeitou tais alegações.

A CIDH consignou que, para cumprir a obrigação de garantir direitos, os Estados não só devem prevenir, mas também investigar as violações aos direitos humanos reconhecidos na Convenção e procurar, se possível, o restabelecimento do direito violado e a reparação dos danos produzidos pelas violações de direitos humanos.

É certo que odever de investigar é uma obrigação de meio, e não de resultado, que deve ser assumido pelo Estado como um dever jurídico próprio, e não como uma simples formalidade condenada de antemão a ser infrutuosa, ou como uma mera gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual das vítimas ou dos seus familiares ou do aporte privado de elementos probatórios. A existência dessa garantia constitui um dos pilares básicos da Convenção Americana e do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática.

Para que o Estado cumpra o disposto no artigo 25 da Convenção não basta que os “recursos” existam formalmente, sendo necessário que tenham efetividade. Tal obrigação implica que o recurso seja idôneo para combater a violação, e que seja efetiva sua aplicação pela autoridade competente.

Para determinar se houve ou não violação das obrigações internacionais do Estado membro, a Corte precisou examinar seus processos internos. A Corte então examinou as alegações concernentes ao mandado de segurança, à ação penal, ao procedimento administrativo e à ação civil, à luz dos padrões estabelecidos na Convenção Americana.

A Corte observou que o mandado de segurança foi manejado quando já haviam cessado as interceptações. Quanto à destruição das fitas, havia recurso interno próprio, e não foi utilizado pelas vítimas. Então, não houve violação dos arts. 8 e 25 da Convenção.

No tocante à jurisdição penal, o TJPR considerou que o mero requerimento de escuta telefônica não configurava ilícito penal e que não havia evidências de que a Magistrada tivesse agido com dolo. Quanto ao ex-secretário, que divulgou trechos das interceptações, o feito foi remetido ao 1º grau e originou ação penal, na qual o secretário foi originalmente condenado, e absolvido em sede recursal, sob o fundamento de que não teria havido quebra de sigilo, já que os dados já teriam sido divulgados um dia antes pela televisão.

A Corte indicou, contudo, que ficara provado que o ex-secretário havia divulgado, sem autorização judicial, novos trechos das interceptações em sua coletiva de imprensa. Quanto aos primeiros trechos divulgados um dia antes, havia suspeita sobre um policial militar, e não houve qualquer investigação por parte do Estado. Assim, a Corte concluiu que o Brasil não atuou com a devida diligência.

No procedimento administrativo que apurou a falta funcional da juíza, a Corregedoria do TJPR concluiu que a questão já fora analisada quando do acórdão que decidiu pelo arquivamento da investigação contra a mesma. No entanto, a Corte entendeu que a Corregedoria deveria ter motivado sua decisão em relação à ausência de falta funcional e não ter-se limitado a indicar que os fatos já haviam sido analisados pelo TJPR, que afirmara que sua atuação não configurava ilícito penal, mas poderia constituir falta funcional. O órgão administrativo deveria ter estabelecido as razões que o fizeram chegar a tal conclusão. Assim, a Corte entendeu que o Estado descumpriu seu dever de motivar a decisão quanto à responsabilidade administrativa.

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No tocante às ações civis, a Corte observou que seus ajuizamentosdependia da iniciativa dos interessados. Apenas duas das vítimas ajuizaram ações cíveis, nenhuma delas com sentença definitiva até a data do julgamento pela Corte.

Assim, a Corte não encontrou elementos que demonstrassem a existência de violação aos direitos consagrados nos artigos 8 e 25.1 da Convenção Americana no que concerne ao mandado de segurança e às ações civis, mas, em relação ao processo penal e ao procedimento administrativo, concluiu que o Estado violou os direitos previstos nos arts. 8.1 e 25.1, em conexão com o art. 1.1, todos da Convenção Americana.


6. A violação da obrigação de respeitar a “Cláusula Federal” e do dever de adotar medidas necessárias ao seu cumprimento (art. 28 c/c 1.1 e 2 da CADH)

A salvaguarda dos direitos previstos na Convenção prescinde de qualquer referência à divisão interna de competências ou organização das entidades componentes de uma federação. As unidades federativas, como parte do Estado Federal, encontram-se igualmente vinculadas pelo disposto nos tratados internacionais ratificados por esse último. Assim, a Comissão alegou que o Brasil deveria ter colaborado para que o Estado do Paraná cumprisse com as disposições da Convenção.

O Brasil sustentou que o art. 28 da CADH é uma regra de interpretação e aplicação da mesma, de modo que não há falar-se em violação do dispositivo.

A Corte consignou que tem competência para interpretar e aplicar todas as disposições da Convenção, não só as que reconhecem direitos específicos, mas também as que estabelecem obrigações de caráter geral. Dessa forma, o Estado não pode alegar sua estrutura federal para deixar de cumprir uma obrigação internacional.

No caso Escher, o Brasil manifestou dificuldades de comunicação com uma entidade componente do estado federal em uma reunião de trabalho que nem sequer estava programada com antecedência, e em um de seus escritos. A Corte entendeu que tais manifestações não significariam nem acarretariam, isoladamente, um descumprimento da “Cláusula Federal”. A Corte advertiu que, no trâmite do processo, o Estado jamais opôs sua estrutura federal como escusa para descumprir uma obrigação internacional.O Tribunal não constatou, então, descumprimento das obrigações emergentes do artigo 28 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1 e 2 do mesmo tratado.


7. As reparações às vítimas

A Comissão apontou que as vítimas envidaram grandes esforços econômicos a fim conseguir justiça no âmbito doméstico, o que foi reforçado pelos representantes, que aduziram ter sofrido perseguições e sido impedidos de exercer livremente suas atividades profissionais como pequenos produtores rurais e membros das cooperativas por aproximadamente cinco anos.

A Corte entendeu que não aportaram aos autos provas do dano material alegado. Portanto, não fixou indenização por dano material pelos supostos ingressos não percebidos relativos à atividade laboral das vítimas, devido à falta de elementos que comprovassem que as essas perdas realmente ocorreram e, eventualmente, quais teriam sido.

A Comissão Interamericana afirmou, ainda, que as vítimas passaram por sofrimento psicológico, angústia, incerteza e mudanças pessoais. Os representantes acrescentaram que tais atos lhes produziram ansiedade e medo e um ambiente de perseguição contra os segmentos sociais aos quais pertencem. Agregaram que os ofendidos também sofreram pela falta de uma devida investigação das alegadas perseguições.

A Corte estabeleceu que uma sentença declaratória da existência de violação constitui, per se, uma forma de reparação. Entretanto, considerando as circunstâncias do caso e as consequências que as violações cometidas puderam causar às vítimas, estimou pertinente determinar o pagamento de uma compensação pelos danos imateriais. Fixou-se em US$ 20.000,00 (vinte mil dólares dos Estados Unidos da América)[23] para cada vítima o valor dos danos imateriais, a serem pagos diretamente aos beneficiários dentro de 1 ano, a partir da notificação da sentença.

Além da indenização pelos danos morais, a Corte estabeleceu a obrigação de publicar a sentença no Diário Oficial, em dois jornais de ampla circulação nacional e regional de alguns capítulos da sentença e da parte resolutiva, e da íntegra,nos sites oficiais da União Federal e do Estado do Paraná.

Não se reputou necessária a realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional pela violação dos direitos humanos.

Além disso, constituiu-se a obrigação de investigar os fatos e atuar em consequência no tocante à entrega e divulgação das fitas com as conversas gravadas[24] e de continuar promovendo cursos de capacitação em direitos humanos para funcionários da justiça e da polícia[25].

A Corte rejeitou o pedido dos representantes para ordenar a revogação da lei estadual nº 15.662/07, que concedeu o título de cidadã honorária do Estado do Paraná à juíza Khater, porque não foi demonstrado que seus termos fossem atentatórios aos direitos previstos na Convenção.

Por fim, o Tribunal determinou o pagamento de US$ 10.000,00 (dez mil dólares dos Estados Unidos da América), a ser dividido entre as vítimas,em função dos gastos com o deslocamento para assistir à audiência pública realizada na Cidade do México.

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Sobre o autor
Carlo Velho Masi

Advogado criminalista (OAB-RS 81.412). Vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado do Rio Grande do Sul (ABRACRIM-RS). Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNISINOS. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS. Membro da Comissão Nacional de Judicialização e Amicus Curiae da ABRACRIM. Membro da Comissão Especial de Políticas Criminais e Segurança Pública da OAB-RS. Parecerista da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCRIM) e da Revista de Estudos Criminais (REC) do ITEC. Coordenador do Grupo de Estudos Avançados Justiça Penal Negocial e Direito Penal Empresarial, do IBCCRIM-RS. Foi moderador do Grupo de Estudos em Processo Penal da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-RS). Coordenador Estadual Adjunto do IBCCRIM no Rio Grande do Sul. Membro da Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (ACRIERGS). Escritor, pesquisador e palestrante na área das Ciências Criminais. Professor convidado em diversos cursos de pós-graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASI, Carlo Velho. O caso Escher e outros vs. Brasil e o sigilo das comunicações telefônicas.: A fundamentação como garantia de efetividade dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3645, 24 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24469. Acesso em: 26 abr. 2024.

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