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O caso Escher e outros vs. Brasil e o sigilo das comunicações telefônicas.

A fundamentação como garantia de efetividade dos direitos humanos

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24/06/2013 às 10:49
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8. A supervisão do cumprimento da sentença[26]

A supervisão do cumprimento de suas decisões é uma faculdade inerente às funções jurisdicionais da CADH. Em virtude do caráter definitivo e inapelável de suas sentenças[27], estas devem ser imediatamente cumpridas pelo Estado de forma integral. Os Estados devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa fé e não podem alegar motivos de ordem interna para deixar de assumir sua responsabilidade já estabelecida. As obrigações convencionais dos Estados partes vinculam todos os poderes e órgãos do Estado.

O Brasil alegou que teria dificuldades de publicar todos os trechos apontados pela Corte em jornais de ampla circulação nacional e regional, em razão da extensão final, que acarretaria custos muito superiores às indenizações. Ademais, a linguagem seria pouco acessível, perdendo-se o caráter reparatório.

Os representantes sugeriram reduzir o texto para incluir apenas alguns parágrafos, o que foi acompanhado pela Comissão Interamericana, tendo em vista o desejo expressado pelas vítimas.

A Corte ressaltou que a linguagem técnica, a extensão e o tamanho da fonte utilizada na publicação não impedem que os interessados possam ler e compreender o conteúdo, já que isso é levado em conta na hora da elaboração da decisão.

Quanto aos custos elevados, consignou que a publicação da sentença constitui uma medida de satisfação, que tem uma repercussão pública e uma natureza distinta das medidas de compensação. Desse modo, os gastos para executá-la não podem ser comparados com as indenizações por danos morais, que tem alcances e objetos distintos. O valor supostamente elevado das publicações não pode justificar o descumprimento dessa medida, que faz parte da reparação integral das vítimas. Para tanto, as formas alternativas de cumprimento propostas[28] não teriam o mesmo alcance da publicação nos jornais dos termos estabelecidos na sentença.

Nada obstante, a Corte valorou positivamente a vontade dos representantes, que trouxeram uma proposta de texto menor, com a inclusão de menos parágrafos, sem notas de rodapé.

Em 19/06/2012, a Corte realizou nova supervisão de cumprimento de sentença[29] e verificou que, em 20/05/2010, o Brasil expediu o decreto nº 7.158/10, no qual autorizou a Secretaria de Direitos Humanos a realizar o pagamento às vítimas dos montantes fixados na sentença, assim como a restituição de custas e gastos. Os representantes informaram que o Brasil efetuou os pagamentos. Assim, a Corte concluiu que o Estado deu cumprimento integral aos pontos resolutivos da sentença que previam indenizações.

O Brasil também publicou as partes pertinentes no Diário Oficial e nos jornais “O Globo” e “Correio Paranaense”, além de disponibilizar a íntegra nos sites oficiais da Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República, da Procuradoria-Geral da República, do Tribunal de Justiça do Paraná e do Governo do Estado do Paraná, dando cumprimento a esta medida de reparação.

No tocante ao dever de investigar, o Brasil alegou que não seria possível cumprir tal determinação, pois, tanto no âmbito civil, quanto no âmbito penal, os fatos já estariam prescritos pelo direito interno, o que inviabilizaria novas investigações. A Comissão observou que a prescrição já estaria operada antes mesmo da sentença, mas que, mesmo assim, a Corte determinara a obrigação de investigar.

Para a CIDH, durante o procedimento de mérito, nenhuma das partes informaram acerca de eventual prescrição dos fatos. Em matéria penal, a prescrição determina a extinção da pretensão punitiva pelo decurso do tempo, e geralmente limita o poder punitivo do Estado para perseguir a conduta ilícita e sancionar os seus autores. Entretanto, a jurisprudência do Tribunal admite a inaplicabilidade da prescrição penal em casos de graves violações massivas e sistemáticas aos direitos humanos, tais como desparecimento forçado de pessoas, execução extrajudicial e tortura, o que não se aplicava ao caso Escher. Quando a sentença foi prolatada não fora declarada a improcedência da prescrição, porém foi determinada a investigação penal de determinadas condutas, o que não descartava que os fatos estivessem prescritos. Diante disso, a Corte deu por concluída a supervisão nesse ponto.

Ao final, a Corte Interamericana deu por encerrado o Caso Escher e outros, em razão de o Estadodo Brasil ter dado cumprimento integral aos pontos resolutivos da sentença emitida em 09/07/2009 e determinou o arquivamento da demanda.


9. Reflexões acerca da condenação do Brasil no caso Escher: o desrespeito cultural ao sigilo das comunicações telefônicas

Quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu o caso Escher à CIDH, considerou a valiosa oportunidade de aperfeiçoamento da jurisprudência sobre a tutela do direito à privacidade e à liberdade de associação, assim como dos limites do exercício do poder público.

É importante recordar que o sistema regional interamericano de proteção dos direitos humanos, desenvolvido após a Segunda Guerra Mundial, é composto de uma pluralidade de tratados e convenções e de vários órgãos jurisdicionais. Na América, há tanto o subsistema de proteção da Organização dos Estados Americanos (OEA), fundado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), como o subsistema fundado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969). Um país fazer parte do primeiro subsistema (p. ex. EUA), e não do segundo. Mas quem faz parte do segundo, necessariamente também integra o primeiro, caso do Brasil, que reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana em 1998.

Do ponto de vista jurisdicional, o subsistema da CADH, baseia-se, fundamentalmente, no trabalho dos dois órgãos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (sediada em Washington/EUA), espécie de 1ª instância do subsistema, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (localizada em San José da Costa Rica), espécie de 2ª instância.

Cada um desses órgãos é composto por sete membros, queatuam individual e autonomamente, isto é, sem nenhuma vinculação com os seus governos, e também não representam o país de sua nacionalidade,nomeados e eleitos pelos Estados na Assembleia-Geral da OEA. 

A Comissão e a Corte desempenham suas funções de acordo com as atribuições que lhes foram outorgadas por distintos instrumentos legais no decorrer da evolução do sistema interamericano. Apesar das especificidades de cada órgão, em linhas gerais, os dois supervisionam o cumprimento, por parte dos Estados, dos tratados interamericanos de direitos humanos e têm competência para receber denúncias individuais de violação desses pactos. Assim, os órgãos do sistema têm competência para atuar quando um Estado-parte for acusado da violação de alguma cláusula contida em um tratado ou convenção.

A Comissão é o primeiro órgão a tomar conhecimento de uma denúncia individual, e só em uma segunda etapa poderá apresentar a denúncia perante a Corte. O procedimento inicial tem sua fase de conciliação, em que o Estado-parte é notificado a adotar determinadas medidas. Quando infrutífera a tentativa, vem a fase de produção de provas e de decisão. Qualquer pessoa pode se dirigir à Comissão, independentemente de advogado.

Já a Corte Interamericana cumpre duas espécies de funções: contenciosa (quando há conflito) e consultiva (preventiva). É uma instância judicial autônoma. A fase prévia de todo processo desenrola-se perante a Comissão. O procedimento dentro da Corte está regido pela Convenção, pelo seu regulamento, assim como pela sua jurisprudência.

Um país que seja palco de muitas violações aos direitos humanos pode ser excluído das ações do Banco Mundial ou do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e, se não cumprir as decisões da Comissão ou da Corte, o assunto torna-se político e é levado ao conhecimento da OEA, podendo ocorrer até mesmo o banimento da organização[30].

O Caso Escher acabou tornando-se a segunda condenação do Brasil no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos[31]. A Comissão, por seu turno, já impôs incontáveis recomendações (medidas cautelares) contra o Brasil (casos Urso Branco, Presidio de Araraquara, Febem-Tatuapé, Maria da Penha, etc.) e admitiu diversos outros casos, ainda em tramitação (Margarida Alves, Cadeia de Guarujá, Marte de bebês em Cabo Frio, José Dutra da Costa, Márcio Lapoente, Gabriel Pimenta, etc.).

Os fatos nele apurados estão inseridos em um período de incremento da perseguição de grupos ligados aos movimentos defensores da reforma agrária no Estado do Paraná. Na época, autoridades e ruralistas se uniram em uma campanha que resultou no aumento dos índices de violência no campo, valendo-se da espionagem e da incriminação das organizações de trabalhadores rurais. Foi a chamada “Era Lerner”, em alusão ao então governador do Paraná, Jaime Lerner, durante a qual se registraram 16 homicídios de trabalhadores rurais.

O caso das interceptações ilegais é emblemático do processo de criminalização dos movimentos sociais. Foi uma tentativa de neutralizar as estratégias de reivindicação e resistências dessas organizações através do uso da máquina estatal.

A decisão foi relevante para que o Brasil voltasse maiores atenções para conflitos dessa natureza. A propósito, essa discussão foi levada em consideração na elaboração do anteprojeto de novo Código Penal[32], quando se tipificou o crime de terrorismo, em seu art. 239, inserindo uma cláusula de exclusão da tipicidade quando se tratar de “conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade” (§7º).

Com efeito, ao condenar o Estado Brasileiro, a Corte de San José da Costa Rica reafirmou a importância e a normatividade do sigilo das comunicações telefônicas, inserto no âmbito de proteção do direito fundamental a não sofrer ingerências arbitrárias ou abusivas na vida privada por parte do Estado ou de particulares (artigo 11 da CADH)[33]

A sentença reafirmou que a intangibilidade das conversas telefônicas não é, contudo, absoluta, podendo sofrer restrições quando estas não tenham cariz abusivo ou arbitrário, e observem a legalidade (pressupostos, circunstâncias autorizadoras e procedimento probatório definidos, de forma clara e detalhada, na lei), a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

A decisão judicial autorizadora da flexibilização do direito fundamental deve estar fundamentada de maneira substancial, através de argumentação racional que considere as alegações das partes processuais e os elementos informativos carreados aos autos, além de demonstrar a ponderação de todos os requisitos legais da medida.

Ademais, a Corte entendeu ser dever do Estado assegurar o sigilo sobre o teor de comunicações interceptadas durante investigação criminal, para fins de: (a) proteção da vida privada dos alvos da interceptação; (b) resguardo da eficácia da própria apuração dos fatos; e (c) viabilização de adequada administração da Justiça. Isso significa que o seu teor deve ser acessível a um número reduzido de servidores públicos, os quais têm o dever de sigilo.

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A condenação brasileira representou um importante avanço no âmbito da proteção dos direitos humanos, porque o país assumiu suas responsabilidades internacionais, cumpriu a decisão da Corte, e não rompeu com a cláusula federal. Nada obstante, também revela profundas disparidades no âmbito interno, sejam relativas ao direito constitucional, ao direito penal ou ao processual penal.

No âmbito do direito à privacidade, o precedente jurisprudencial assegura a importância, arcabouço de proteção e densa estrutura normativa do direito fundamental à inviolabilidade de comunicações telefônicas, que contrasta com a cultura de banalização do emprego da medida cautelar de interceptação verificada na prática forense contemporânea[34], à míngua dos valores democráticos hauridos da CADH.

Com efeito, malgrado se trate de meio de busca de prova de cariz excepcional, cuja finalidade é permitir a descoberta e localização de provas materiais, o que se observa, na prática, é sua vulgarização como instrumento investigativo prima ratio, mesmo havendo outras formas possíveis de apuração dos fatos, tal qual revelou ser o caso Escher.

No Brasil, não raras vezes as interceptações telefônicas ainda são autorizadas exclusivamente com base em notícias-crime anônimas ou sem a imprescindível instauração formal de procedimento investigativo previsto em lei, ou até mesmo nos autos de procedimentos administrativos ou processos judiciais de natureza extrapenal. Tampouco são incomuns decisões judiciais autorizadoras da medida ou de sua prorrogação que possuem fundamentação aparente, sequer ponderando casuisticamente os requisitos constitucionais (artigo 5º, XII, LIII e LIV da Lei Magna) e legais (artigos 1º e 2º da lei nº 9.296/96).

A “fetichização midiática”[35] em muito contribui para uma certa aceitação social e impunidade do crime de divulgação do conteúdo sigiloso de conversas telefônicas interceptadas que estão sob a guarda do Estado[36]. Parece prevalecer a concepção de que o direito ao sigilo de comunicações telefônicas supostamente seria subterfúgio para acobertar atos criminosos, o que demanda seu pronto sacrifício em prol do combate à criminalidade.

Entretanto, a decisão da CIDH corrobora o entendimento de que essa grave deformação cultural impede a percepção da importância desse direito como instrumento de proteção da cidadania contra o arbítrio, a onipotência e o exercício abusivo do poder estatal[37].

Vários casos polêmicos envolvendo o tema foram objeto de discussão nas Cortes Superiores do país nos últimos anos[38], sinalizando que, ainda que timidamente e com posições divergentes, a jurisprudência pátria tem, aos poucos, se conformado com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro na tutela dos direitos humanos.

Espera-se, pois, que o caso Escher e outros vs. Brasil contribua para que o Poder Judiciário brasileiro leve a sério, na expressão de Dworkin[39], o direito fundamental ao sigilo de comunicações telefônicas no país.


10. Breves considerações sobre o dever-garantia da motivação na decisão judicial que autoriza interceptações telefônicas a partir do caso Escher

“A ideia de limitação de poder decorre da noção de garantia, constituindo barreiras de defesa contra as arbitrariedades.” [40]

A decisão judicial criminal que impõe restrições aos direitos fundamentais do cidadão[41] representa uma nítida manifestação de poder que, por sua natureza constritiva, deve ser objeto de controle por parte da sociedade e das partes envolvidas no processo. Esse controle é levado a efeito por meio da análise da motivação judicial, a qual revelará a validade, ou não, do discurso, à luz da Constituição Federal.

A fundamentação consiste no conjunto de motivos, razões ou argumentos de fato e, especialmente, de direito, em que se apoia uma decisão judicial. Fundamentar uma decisão significa exteriorizar de maneira racional os critérios que servem de apoio ao que ficou decidido. Estará satisfeita essa exigência quando implícita ou explicitamente for possível conhecer o conjunto de reflexões que levaram o Juiz a tomar a decisão que tomou. A motivação deve guardar coerência lógica com a decisão final[42].

No Estado Democrático de Direito, a motivação justifica-se a partir de um plano de análise endoprocessual, no qual as partes devem conhecer as razões da decisão judicial para dela poder recorrer e, em sede recursal, para que o órgão julgador possa controlar a atividade jurisdicional da instância inferior; e extraprocessual, permitindo o controle social da atividade jurisdicional, tornando possível a sua legitimação como atividade democrática.

Por meio da motivação, é possível avaliar as decisões judiciais, legitimando-as por meio de asserções, que serão verificáveis ou refutáveis[43]. Assim, a motivação constitui-se no veículo pelo qual os direitos fundamentais coletivos adquirem capacidade transformadora da realidade social. E, como ensina Canotilho, a proteção desses direitos se faz necessária para a consagração do próprio Estado:

[...] os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).[44]

O primeiro e talvez mais importante aspecto de uma motivação judicial que obedeça à disposição constitucional hoje vigente é a independência do Judiciário(em relação aos demais órgãos estatais), garantia crucial para assegurar também a imparcialidade do juiz e a correta administração da justiça (contra decisões arbitrárias)[45]. Nas palavras de Ferrajoli, independência da magistratura como ordem e do magistrado como indivíduo[46]

Somente o sistema acusatório, em que todos os poderes instrutórios são retirados da figura do juiz e entregues às partes, é capaz de dar máxima efetividade à imparcialidade ou, mais apropriadamente, à neutralidade, que decorre não de uma virtude moral, mas de uma estrutura de atuação[47]. É que o sistema acusatório exige um “juiz-espectador”, e não admite um “juiz-ator”[48].

Na estrutura de um Estado de Direito[49], conquista do racionalismo liberal ante os regimes absolutistas arbitrários, há submissão de todo o poder à legalidade, o que vale às decisões judiciais, as quais devem demonstrar o seu apoio nas regras do ordenamento jurídico. E a observância da lei (princípio da legalidade) é única forma de controlar o excesso[50].

Para uma motivação válida, é indispensável que as partes possam efetivamente influenciar na decisão (contraditório)[51] e que o juiz demonstre que levou em conta todos os seus argumentos e as provas que produziram. Então, a motivação sobre os fatos é necessária como uma garantia de racionalidade e de controle da valoração das provas.

Assim, ao possibilitar o controle do itinerário lógico seguido pelo juiz para chegar à decisão, a motivação realiza a importante função de assegurar a efetividade do contraditório, evidenciando se as diversas escolhas adotadas durante aquele percurso resultaram da positiva apreciação das provas e argumentos trazidos pelas partes ou, ao contrário, constituem produto de ponderações solitárias do autor do provimento, sem consideração ao que foi trazido pelo diálogo processual.[52]

Quanto à valoração probatória, o Brasil adota o sistema do “livre convencimento motivado” (persuasão racional), no qual há certa liberdade de seleção e valoração das provas angariadas. Contudo, essa liberdade do julgador deve ser fundada em bases racionais, não existindo mais espaço para um sistema de “prova legal”. O juiz é “livre” para obter o seu convencimento, porquanto não está vinculado a regras legais sobre o peso de cada prova, o que não significa que seu poder de valoração seja totalmente ilimitado. Encontra limites na lógica, na experiência e nos conhecimentos científicos.

O valor fundamental da motivação é ser uma garantia processual cognoscitiva, entrelaçando o juízo à prova sobre a matéria fática concretizadora da hipótese acusatória, assim como à estrita legalidade quanto à matéria de direito. Nesse sentido, será racional uma motivação que demonstre a análise frontal da integralidade dos argumentos das partes[53], bem como de todas as provas produzidas a partir do contraditório[54].

Sendo assim, poder-se-á perceber que a decisão judicial se colocou como o resultado de uma ponderada reflexão sobre todos os pontos debatidos e produzidos no processo, não se constituindo em um ato de puro subjetivismo do julgador (decisionismo), o que viabiliza, mais uma vez, um controle objetivo da atividade jurisdicional.

Dessa forma, válida será aquela motivação que se apresentar vinculada ao caso sub judice, ou seja, aquele discurso justificativo que se coloca de todo casuístico, entrelaçando-se, apenas e tãosomente, aos pontos debatidos na causa criminal.

Não se admitem fórmulas prontas, hipóteses em que haverá verdadeira ausência de motivação. Da mesma forma, colocam-se como inválidas as motivações contraditórias, implícitas e per ralationem (que se reportam a motivações anteriores), pois, ao não serem coerentes e explícitas, deixam de representar uma verdadeira motivação.

Assim, a falta de motivação não é caracterizada somente na absoluta omissão do magistrado. É possível encontrá-la nos textos "vazios", ou seja, em que há aparência da motivação. O juiz apenas reproduz frases programadas, com sentidos vagos e genéricos. Na motivação incompleta, a contradição pode ser interna, quando as premissas e a conclusão são logicamente incompatíveis; ou externa, quando não é possível atingir determinada conclusão valendo-se das considerações acerca de fatos e provas empregadas.

No sistema constitucional-democrático o poder não é autolegitimado, sua validação depende da estrita observância das regras do devido processo penal, dentre elas o dever-garantia da fundamentação dos atos decisórios. Logo, a motivação é fundamental para avaliação do raciocínio desenvolvido na valoração da prova, através de argumentos seguros e válidos, submetidos ao contraditório e refutáveis pelas partes.

Em última análise, a motivação permite aferirse a racionalidade da decisão predominou sobre o poder[55], o que nos leva a deduzir que essa garantia vem justificada não apenas por razões técnico-jurídicas, mas também por razões políticas[56]. Na célebre concepção de Heleno Fragoso, o dever de motivar “é o diafragma que separa o poder discricionário do arbítrio”[57].

O exercício do poder público, em qualquer de seus aspectos, notadamente quando ligado à restrição de uma garantia fundamental, deve ser realizado segundo padrões de "legitimação racional e objetiva". Deve ser orientado por procedimentos que satisfaçam as exigências de uma “correção argumentativa”como forma de buscar o "consenso [...] por meio de uma atuação estatal que possa refletir os anseios e valores compartilhados pela maioria dos membros da comunidade política"[58].

Portanto, ao passo que a fundamentação das decisões é instrumento de controle da racionalidade, é, principalmente, limite ao arbítrio. E nisso reside seu núcleo de garantia[59].

Na seara penal, não se pode desconsiderar que a motivação deverá ser necessariamente influenciada pelo princípio da presunção de inocência, que dita a maneira pela qual o acusado é tratado durante toda a persecução. Nesse ponto, a fundamentação permitirá ponderar se na construção da argumentação empreendida e revelada na motivação houve a interferência de qualquer fator criminológico ou de política criminal inconstitucionais, e se a interpretação dos dispositivos se deu conforme a “presunção de culpa”, implícita ao sistema processual penal infraconstitucional, ou, ao contrário, em consonância com o preceito fundamental da presunção de inocência[60].

No que tange às interceptações telefônicas, fala-se de uma medida cautelar inaudita altera pars, cujo controle judicial é anterior ao contraditório (contraditório diferido). Aqui, a fundamentação deve ser encarada como a salvaguarda do direito à intimidade e deve atender à legalidade estrita. O juiz será o único controlador da devassa na vida do particular. Por isso, torna-se ainda mais relevante que tenha total independência frente ao órgão acusador.

O deferimento de uma medida tão gravosa só pode ocorrer quando presentes todas as exigências legais. Consequentemente, a motivação da decisão deve ser exaustiva, razoável, convincente e proporcional[61]. É por meio dela que se vai apreciar se o juiz decidiu com conhecimento da causa, ou não, e se sua convicção é legítima ou arbitrária[62]. Por esta razão, a motivação há de ser completa, possuindo as razões de fato e de direito que levaram o magistrado a construir sua convicção. Do contrário, a decisão possuirá vícios insanáveis[63].

É evidente que, no momento de motivar sua decisão, o juiz não pode simplesmente repetir as palavras da lei (não pode exteriorizar uma motivação genérica).

Nos casos de escutas, a interceptação é excepcional e afeta um dos direitos mais importantes do ser humano, que é o sigilo de suas comunicações. Assim, o conteúdo da decisão que exerce o controle judicial prévio da medida cautelar deve conter diversos requisitos, dentre os quais estão (a) a indicação dos concretos indícios de autoria ou participação; (b) as provas da materialidade de uma infração punida com reclusão; (c) a necessidade da medida, em virtude da inexistência de outros meios para a obtenção de provas; (d) a descrição clara da situação objeto da investigação; (e) a indicação do sujeito passivo, quando possível; (f) a individualização da linha telefônica que servirá de fonte para a captação; (g) os meios que serão empregados para a execução; (h) a duração e intensidade da medida; (i) a proporcionalidade no caso concreto; e, sobretudo, (j) o resguardo do sigilo da medida.

A falta de motivação permitiria uma invasão indevida na privacidade alheia, o que representaria a vulneração do direito constitucional ao sigilo das comunicações e, consequentemente, conflitaria com o direito à tutela judicial efetiva, ocasionando a nulidade do seu resultado. Reconhecida a nulidade da autorização judicial, nenhum valor possuiria a prova produzida, porque obtida ilícita ou ilegitimamente.

Cabe referir que os vícios na justificação da decisão judicial determinam a nulidade “absoluta” do ato, sendo que seu reconhecimento independeria de provocação das partes, bem como não seria necessária a demonstração do dano, uma vez que atinge o interesse público e o prejuízo é evidente[64].

A lei 9.296/96 determina que a captação das comunicações telefônicas não poderá exceder o prazo de 15 dias, que é computado a partir do dia do começo, por tratar-se de medida restritiva[65]. Nas renovações, exige-se a comprovação da indispensabilidade e da inexistência de outros meios disponíveis. O Juiz poderá renovar a interceptação a cada 15 dias[66], desde que se mantenha-se a proporcionalidade da medida, sempre em decisões devidamente fundamentadas[67].

Pois bem. Todas as violações de direitos humanos apontadas pela Corte Interamericana no caso Escher e Outros vs. Brasil decorreram de decisões judiciais desprovidas de fundamentação, precisamente em casos de pedidos de interceptação telefônica, onde os pressupostos e requisitos legais são bastante específicos, não se admitindo margem à discricionariedade. Ficou demonstrado que a ausência de motivação no caso escondia não só uma possível parcialidade da magistrada competente, como também os fins espúrios aos quais se devia o interesse em interceptar as comunicações das vítimas. E as ilegalidades foram ainda maiores, na medida em que sequer se preservou o sigilo dos dados colhidos, expondo as vidas dos particulares no palco midiático, com falsas imputações de crimes. A ausência de fundamentação no caso impossibilitou até mesmo a responsabilização funcional dos envolvidos, contribuindo para a ineficácia de proteção aos direitos fundamentais.

Nesse sentido, a decisão do Tribunal é um alerta que vem paulatinamente sendo prestigiado pelas Cortes Superiores no Brasil[68] de que nenhuma decisão judicial, interlocutória ou final, sobretudo na área penal, pode ficar isenta de motivação legal e racionalmente orientada. É o que disciplina a Convenção Americana de Direitos Humanos quando afirma que os processos sob sua regência devem ser fundamentados[69] e é também o que reconheceu o Constituinte de 1988, quando inseriu a norma do art. 93, IX[70], segundo a qual serão fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.  

Então, conclui-se que a motivação é um dever-garantia da efetividade da cognição judicial, isto é, de que todas as decisões judiciais, tanto finais, como no curso do processo, constituem o resultado de uma efetiva apreciação, pelo juiz, de todas as questões de fato e de direito suscitadas, e não apenas as convicções pessoais do magistrado[71]. Seu principal valor reside justamente na garantia da natureza cognitiva, e não potestativa, do juízo, vinculando o direito à estrita legalidade, e o fato à prova da hipótese acusatória[72].

Seu desrespeito configura, portanto, violação de uma das mais relevantes garantias judiciais reconhecidas internacionalmente e dá abertura ao ferimento de outros tantos direitos e liberdades da pessoa humana, reconhecidos em múltiplos tratados e convenções, como, no âmbito interamericano, o Pacto de San José da Costa Rica.

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Sobre o autor
Carlo Velho Masi

Advogado criminalista (OAB-RS 81.412). Vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado do Rio Grande do Sul (ABRACRIM-RS). Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNISINOS. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS. Membro da Comissão Nacional de Judicialização e Amicus Curiae da ABRACRIM. Membro da Comissão Especial de Políticas Criminais e Segurança Pública da OAB-RS. Parecerista da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCRIM) e da Revista de Estudos Criminais (REC) do ITEC. Coordenador do Grupo de Estudos Avançados Justiça Penal Negocial e Direito Penal Empresarial, do IBCCRIM-RS. Foi moderador do Grupo de Estudos em Processo Penal da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-RS). Coordenador Estadual Adjunto do IBCCRIM no Rio Grande do Sul. Membro da Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (ACRIERGS). Escritor, pesquisador e palestrante na área das Ciências Criminais. Professor convidado em diversos cursos de pós-graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASI, Carlo Velho. O caso Escher e outros vs. Brasil e o sigilo das comunicações telefônicas.: A fundamentação como garantia de efetividade dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3645, 24 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24469. Acesso em: 23 abr. 2024.

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