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Concurso público: controle das provas discursivas pelo Poder Judiciário

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27/05/2013 às 08:15
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5 A prova pericial como instrumento de controle

Em matéria de concurso público, a pretensão do candidato prejudicado na prova discursiva é ter reconhecido o direito à justa correção das questões. Se lhe for negado à prestação da tutela jurisdicional estar-se-á excluindo da apreciação do Poder Judiciário lesão a direito, o que é expressamente vedado pelo art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Não existe nenhuma dúvida quanto à possibilidade do candidato ingressar em juízo para impugnar a correção da sua prova discursiva. A questão tormentosa é saber se é cabível ou não a produção de prova pericial.

Esse é um assunto que não deveria levantar nenhuma polêmica ou divergência, pois o princípio do contraditório e da ampla defesa assegura aos litigantes o acesso a todos os meios probatórios em direito admitidos, ainda que não especificados no Código de Processo Civil, desde que moralmente legítimos. Por isso, não se deve negar a produção de prova pericial se esse for o único meio do candidato comprovar suas alegações quanto à correção da prova discursiva.

Ademais, considera-se o direito à prova como direito fundamental, derivado dos direitos fundamentais ao contraditório e ao acesso à justiça. O objetivo central da garantia do contraditório não é a defesa entendida em sentido negativo, isto é, como oposição ou resistência ao agir alheio, mas sim influência, ou seja, como direito ou possibilidade de influir ativamente sobre o desenvolvimento e o resultado da demanda. De nada adiantaria garantir o acesso ao Judiciário sem possibilitar o uso efetivo dos meios necessários à demonstração das alegações[15]

A finalidade essencial da prova é garantir a prestação da tutela jurisdicional justa, permitindo que o jurisdicionado participe ativamente no processo. Portanto, é imprescindível assegurar o emprego de todos meios de provas para comprovação dos fatos alegados pelas partes.

As provas discursivas de concursos públicos podem abordar temas de diversas áreas do conhecimento dependendo das atribuições do cargo ou emprego público. Por isso, tanto matérias de medicina, psicologia, engenharia, administração, contabilidade, direito, dentre outras, podem ser cobradas dos candidatos, mas isso não afasta o controle jurisdicional doato administrativo embasado na “discricionariedade técnica”.

No controle das provas discursivas, em que a demonstração dos fatos depende de conhecimento técnico especializado, não basta fundamentar-se exclusivamente em documentos, é necessário buscar esclarecimentos com profissionais habilitados, os chamados peritos, sendo indispensável à prova pericial. Não se trata de pedir a modificação dos critérios de correção, mas sim que, dentro dos critérios previamente estipulados e previstos no edital, o Poder Judiciário, por meio de prova pericial, verifique qual a nota realmente merecida pelo candidato ou constate que o tema proposto na prova discursiva não está previsto no conteúdo programático, por exemplo.

Registre-se a esse respeito a prudente lição de FRANCISCO LOBELLO DE OLIVEIRA ROCHA[16], segundo o qual “se a controvérsia versar sobre matéria estranha ao Direito (Engenharia, Economia, Psicologia, Medicina etc.), o juiz poderá valer-se de prova pericial, mas jamais se negar a conceder a tutela jurisdicional pretendida sob o argumento de que não poderia interferir no mérito do ato administrativo. Isto derruba o mito da chamada discricionariedade técnica, segundo o qual quando a Administração utiliza-se de elementos técnicos na tomada de sua decisão afasta-se o controle jurisdicional”.

O fato de existir discricionariedade não significa imunidade ao controle judicial. Ao Judiciário só é vedado interferir no juízo de mérito do administrador, quando houver, e nos limites deste. Portanto, o Poder Judiciário deverá pronunciar-se também sobre os elementos técnicos do ato administrativo, ainda que para isso seja necessário recorrer a perícias.

Se é certo, de um lado, que a liberdade outorgada às Bancas Examinadoras em sede de provas discursivas é imprescindível para resguardar a sua autonomia administrativa, por outro lado, também é verdade, que tal poder discricionário da Banca não pode se converter em manto de impunidade dos examinadores, em ordem a acobertar toda sorte de vícios de legalidade no ato de aplicação e correção das provas dissertativas.

É dentro de tais perspectivas que deve ser acatada a tese veiculada no arresto a seguir transcrito, dos TRIBUNAIS REGIONAIS FEDERAIS DA 1ª E DA 4ª REGIÃO, verbis:

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PROVA DISCURSIVA. ERROS NA CORREÇÃO CONSTATADOS POR PROVA PERICIAL. INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. RETROAÇÃO DOS EFEITOS DE EVENTUAL APROVAÇÃO.

1. Constatada, por intermédio de prova pericial, a existência de erros na correção da prova discursiva de candidata participante de concurso para provimento de cargo público, bem assim a constatação de tratamento anti-isonômico entre os concorrentes, ainda que faltem indícios da alegada perseguição, não é dado ao juiz desconsiderar o laudo pericial, sem que haja elementos probatórios que, objetivamente, demonstrem o contrário.

2. A existência de manifestos erros na correção da prova discursiva da candidata demonstra não se cuidar, no caso, de o Judiciário imiscuir-se, indevidamente, no âmbito da discricionariedade da banca examinadora, mas, sim, de proteger a esfera jurídica da candidata, uma vez que cabe ao Poder Judiciário exercer o controle da legalidade dos atos administrativos, com apoio no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.

3. Como conseqüência do pronunciamento judicial, incumbe à comissão do concurso aferir se o somatório das demais notas finais alcançadas pela candidata nas provas objetivas e prática, acrescidas da nota indicada como a correta, pelo perito, na prova discursiva, é suficiente para que a candidata seja considerada aprovada e classificada no certame.

4.  Verificada essa aprovação, os seus efeitos retroagem, de modo a assegurar à candidata todas as conseqüências patrimoniais da nomeação, como se esta tivesse ocorrido na estrita ordem da classificação por ela alcançada, deduzidos, entretanto, os valores que desde então houver recebido dos cofres público, pelo exercício de outro cargo público.

5. Apelação parcialmente provida.[17]

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. ELIMINAÇÃO DE CANDIDATO. EQUÍVOCO NA APLICAÇÃO DOS CRITÉRIOS DE CORREÇÃO. APROVAÇÃO E posse. BASE EM PERÍCIA TÉCNICA. Reconhecido o prejuízo do autor ante o equívoco havido na aplicação dos critérios de correção de prova que lhe foi aplicada em concurso público, deve o candidato ser considerado aprovado, eis que tal conclusão tem base em perícia técnica, dando-lhe posse no cargo almejado. [18]

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Após a realização da prova pericial e da constatação de vícios na correção da prova discursiva o Judiciário deve declarar a nulidade do ato administrativo, determinando que a Banca Examinadora faça uma nova correção sem os vícios que macularam a anterior; ou declarar a nulidade do ato administrativo e indicar qual a solução mais adequada para o caso, obrigando a Banca Examinadora a aceitá-la. Em situações em que existe apenas uma resposta correta para a questão, o Judiciário deve adotar a segunda alternativa, pois a Banca não teria outra opção além da apontada pela perícia. O mesmo vale quando a prova pericial demonstrar que a resposta do candidato é tecnicamente sustentável.

Por fim, vale a pena reproduzir as palavras do Ministro Nilson Naves, do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, quando atuou como relator do RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 19062[19]:

Mas, se há erro, erro invencível, justificar-se-ia, então, a intervenção do Judiciário? Ou não se justificaria? O que a mim pessoalmente se me afigura – a não-intervenção – estranho comportamento. Quero, por isso, entender comigo mesmo que, em certas situações e determinados assuntos, é lícita a intervenção judicial (é lícito ao juiz conhecer da provocação). Aliás, o próprio Relator originário isso percebeu quando, em seu voto, referiu-se a “dissídio eloqüente” e a “causar perplexidade”; seriam e são situações aptas a provocar prejuízo, daí se justificar o mandado de segurança.

Sempre que se fizer necessária uma ressalva e esta não aparecer, de tal sorte que o candidato fique em situação de perplexidade diante do questionamento, este não pode ser considerado válido, (...) e se assim se evidencia, manifesta é a ilegalidade do questionamento e, di-lo respeitosamente, não examinar o mandamus, a esta ótica, é negar a jurisdição. (...) Para justificar a questão, houve necessidade de sustentá-la sobre uma noção equivocada.

Assim, conclui-se que em havendo erro na correção da questão de prova de concurso público, bem como ausência de observância às regras previstas no edital, tem-se admitida a intervenção do Poder Judiciário, sendo necessária a produção de prova pericial, quando se tratar de matéria técnica, para comprovar as alegações dos candidatos prejudicados, pois isso é uma decorrência do direito fundamental ao contraditório e do acesso à justiça.


Notas

[1] Esse é o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no AI 640.272-AgR, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgamento em 02/10/2009, Primeira Turma, DJ de 31-10-2007.

[2] TOURINHO, Rita. Concurso Público no ordenamento Jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 85.

[3] STF, RE 268244, Relator Ministro Moreira Alves, Primeira Turma, julgado em 09/05/2000, DJ 30-06-2000

[4] 2011, p. 586.

[5] SILVA, Almiro de Couto. Correçãoda prova de concurso público e seu controle jurisdicional. Ed. Del Rey, p. 26.

[6] HARTMUT, Harmut. 2001 apud MACHADO JÚNIOR, Agapito.Concursos Públicos. São Paulo: Atlas, 2008, p. 164.

[7] Correção da prova de concurso público e seu controle jurisdicional. Ed. Del Rey. p 15

[8] TRF da 1ª Região, Agr. Instr. 2005.01.00.042622-8, Decisão Monocrática, DJU 21.06.2005.

[9] HARTMUT, Harmut. 2001 apud MACHADO JÚNIOR, 2008, p. 164.

[10] É pacífico que em tema de concurso público o Edital é lei entre as partes, estabelecendo regras às quais estão vinculados tanto a Administração quanto os candidatos.

[11] RE 434.708, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 21/06/2005.

[12]REsp 200600255898, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJ 19/10/2009. Grifo nosso

[13]REsp 429570/GO, Relatora Ministra Eliana Calmon, segunda turma, DJ 22/03/2004. Grifo nosso.

[14] CONCURSO - CORREÇÃO DE PROVA - PRINCÍPIO POLÍTICO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA E HARMONIA DOS PODERES. Longe fica de contrariar o disposto no artigo 2º da Carta Politica da Republica provimento judicial que, a partir da premissa sobre a ma vontade da banca examinadora na correção de prova manuscrita, considerada a caligrafia do candidato, assenta a improcedencia dos erros apontados. (STF, AI 171342 AgR, Relator Ministro Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 12/03/1996, DJ 26/04/1996).

[15] MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas de Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 258.

[16] Regime Jurídico dos Concursos Públicos. São Paulo: Dialética, 2006, p. 21-22.

[17] TRF da 1ª Região, AC 1998.34.00.001170-0/DF, Relator Desembargador Federal Fagundes De Deus, Relator do Acórdão Desembargador Federal Antônio Ezequiel Da Silva, Quinta Turma, DJ de 25/11/2003. Grifo nosso.

[18] TRF da 4ª Região, AC 2005.04.01.040895-0, Quarta Turma, Relator Edgard Antônio Lippmann Júnior, DJ de 19/12/2007.

[19] RMS 19062/RS, Relator Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, julgado em 21/08/2007, DJ 03/12/2007.

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Sobre o autor
Alessandro Dantas

advogado especializado em concursos públicos, autor de obras jurídicas sobre o tema, conferencista do Congresso Brasileiro de Concurso Público, instrutor de concursos públicos da ERX, consultor da ANDACON – Associação Nacional de Defesa e Apoio ao Concurseiro, fonte de entrevista dos principais jornais do Brasil quando a matéria é concursos públicos, colaborador da revista Negócios Públicos, onde escreve mensalmente sobre o tema e da GOVERNET. Palestrante e professor da LFG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Alessandro. Concurso público: controle das provas discursivas pelo Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3617, 27 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24533. Acesso em: 23 abr. 2024.

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