Historicamente, os domésticos sempre foram uma categoria discriminada de uma maneira geral, tanto pela sociedade, como pelo próprio Estado. Todavia, não se pode esquecer que os tomadores de mão de obra domésticos não exercem uma atividade voltada para o lucro, razão pela qual, no que tange ao FGTS, não é razoável, na opinião aqui destacada, que seja obrigatório para essa categoria de trabalhadores, sem que haja um fomento por parte do Estado. Como seria esse fomento? Deveria o Estado permitir que, caso se discipline que tal direito seja compulsório na seara laboral doméstica, os empregadores possam ter uma contrapartida Estatal, no sentido de que este forneça a tais empregadores a possibilidade de dedução de determinados tributos, tal qual recentemente ocorreu.[2]
Assim, seria corrigida uma injustiça histórica em relação aos domésticos, e ao mesmo tempo evitar-se-ia que o Estado viesse a impor mais esse pesado encargo para a classe média, por exemplo, sem que haja uma forma de restituição, a título tributário.
Nesse momento se poderia indagar se ao ser exigida uma contraprestação do Estado, se isso não representaria um sacrifício de toda sociedade e, portanto seria algo fora de cogitação. Pensamos que não, eis que o Estado deve se imiscuir de atuar de forma negativa também nas relações entre os particulares. Sacrificar um determinado grupo de indivíduos quase tão desprovidos de recursos quanto os obreiros que lhes prestam serviço é algo que não condiz com aquilo que se deve entender por justiça social. Portanto, é o empregador doméstico hipossuficiente tão carecedor de atuação positiva do Estado quanto os próprios obreiros domésticos.
A despeito disso, recentemente fora aprovada de maneira unânime, já em fins de março de 2013, a PEC n. 66/2012, que igualou o manancial de direitos entre os que prestam labor no seio familiar e as outras como, a título exemplificativo, jornada laboral limitada a quarenta e quatro horas semanais e oito horas diárias, auxílio-creche, adicional noturno, dentre outros direitos, sendo que alguns desses direitos são autoaplicáveis e outros necessitam de legislação posterior que os regulamente. Nesse momento, surgem outros questionamentos: como será controlado o horário de entrada e saída de obreiros, já que os domésticos laboram na esfera familiar? Será que essa gama de direitos também não terá o efeito negativo de estimular a indesejável informalidade, já que os custos para os empregadores domésticos aumentarão consideravelmente?
Esses e outros questionamentos, por serem bastante específicos, demandariam uma pesquisa específica para serem respondidos com maior acuidade. Por esse motivo, não teceremos maiores aprofundamentos no tocante a tão palpitante tema, nos limitando a fazer apenas breves apontamentos, a fim de expressar nossa opinião, para que possamos oferecer à comunidade acadêmica e a sociedade civil como toda uma contribuição, ainda que extremamente singela sobre o tema.
Certamente essa Proposta de Emenda Constitucional teve como fulcro um tratamento mais isonômico entre os prestadores de labor doméstico e os demais obreiros. Entretanto, há outro aspecto que deve ser considerado, estando no fato de que a seara da família, em que se insere tal classe de obreiros, não há o elemento primordial que historicamente sempre caracterizou o capitalismo, qual seja, o animus lucrandi.
Nesse comento, tendo em vista o entendimento firmado no presente artigo, também vislumbramos considerar a hipossuficiência de alguns empregadores domésticos, sob pena de cometermos uma injustiça tão grave quanto o tratamento discriminatório desses trabalhadores. Afinal, a análise isonômica perpassa por um campo que vai além de certos aspectos de cunho meramente objetivo.
Não há dúvida de que era incompatível com o sentimento constitucional o tratamento discriminatório em relação aos obreiros domésticos. Contudo, será que o tratamento deve ser realmente igualitário em relação à extensão da obrigação do pagamento de todas as verbas trabalhistas que foram incorporadas ao manancial de direitos dos domésticos ou isso na verdade representa uma forma distorcida de isonomia?
Como sabemos, ser isonômico não é necessariamente aplicar, de forma igualitária, determinados direitos em todas as situações concretas. Não se pode dissociar a isonomia da equidade, que é a aplicação da isonomia de maneira justa, ou seja, tratando os iguais conforme a sua igualdade e os desiguais em consonância com a desigualdade que lhes é peculiar.
Mas ainda assim, certamente aparecerão questionamentos do tipo: mas ao se preconizar que os prestadores de labor no âmbito familiar recebam tratamento diferenciado em relação às demais categorias laborais, isso não representa uma forma acentuada de discriminação?
Registre-se que não preconizamos a discriminação dessa categoria tão importante de trabalhadores, mas apenas reputamos que certos regramentos são incompatíveis com as relações de labor prestadas no seio familiar, eis que não se encontra presente o intuito lucrativo, característica marcante em quase todas as relações laborativas. Entretanto, a própria legislação estabelece que mesmo não tendo intuito lucrativo, uma determinada empresa ou mesmo uma Organização Não Governamental, ou mesmo uma igreja são obrigadas a efetuar o pagamento de todas as verbas decorrentes da relação, ainda que não tenham a intenção de auferir lucro, bastando que estejam presentes os requisitos da relação empregatícia.
Mas não é somente essa característica que gera toda essa discussão. Mas principalmente no fato de que, como lecionado alhures, o tomador de serviço pode ser reputado como hipossuficiente, tal qual o prestador de labor. Considerando essa assertiva, então isso implica que também é necessariamente verdade que há determinados empregadores domésticos que podem ser considerados hipossuficientes. O conjunto de empregadores seria o círculo maior, que chamaremos de conjunto A e os empregadores hipossuficientes seriam o conjunto menor, que chamaremos de a1, e um terceiro conjunto, o a1’, que representa os empregadores domésticos hipossuficientes e estaria contido no conjunto a1.
Levando tal assertiva para o campo do raciocínio lógico, podemos concluir que todos os empregadores domésticos hipossuficientes são empregadores e hipossuficientes, mas o contrário não representa necessariamente a verdade. Até porque, no exemplo que utilizamos acima, não consideramos os grandes detentores de capital, que não são hipossuficientes e que poderiam ser representados pelo conjunto b1, mas que estariam enquadrados dentro do conjunto maior, ou seja, o A, mas não haveria pontos de intercessão entre o conjunto b1 e os conjuntos a1 e a1’.
E qual a importância prática de apresentar tais pontos argumentativos? No fato de que, como os empregadores domésticos hipossuficientes é um conjunto que está necessariamente contido na categoria dos empregadores hipossuficientes, então necessariamente aqueles também deverão ser reputados como tais.
Estabelecida essa relação, passemos ás implicações práticas no concernente à flexibilização trabalhista. Em primeiro lugar, o modelo teórico-argumentativo que propusemos adotar é o de Robert Alexy, que como já explicado, consiste na adoção de três elementos quando o intérprete estiver diante de um caso concreto: adequação, necessidade (que alguns preferem chamar de exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito. Passemos a análise desses elementos em separado no tocante à relação de trabalho doméstico.
Adequação. Mostra-se extremamente adequada a extensão de direitos aos trabalhadores domésticos, eis que a categoria há muito tempo preconiza o tratamento igualitário em relação aos demais obreiros. Ocorre que esse critério não responde a indagação acerca de como deve ser o tratamento em relação a certos empregadores domésticos hipossuficientes, razão pelo qual passemos à análise do segundo elemento.
Necessidade (exigibilidade). Não se pode negar a necessidade de reformulação do atual tratamento experimentado pelos domésticos, no sentido de que os mesmos eram desprovidos de diversos direitos que os outros obreiros detinham. Contudo, será que a questão da isonomia fora finalmente resolvida com a igualdade in totum de tratamento? Ou na verdade envolveria a análise de outros fatores imbricados com a noção de justiça social? Ficamos com a segunda opção, razão pelo qual, tem-se que necessariamente ser analisado o terceiro elemento da fórmula, qual seja, a proporcionalidade em sentido estrito.
Será que é realmente proporcional em sentido estrito exigir-se de um empregador doméstico quase que integralmente desprovido de recursos que este arque com todas as verbas trabalhistas decorrentes do trabalho doméstico que agora se impõe? Embora para o reconhecimento do vínculo empregatício entre tomador doméstico e obreiro pouco importa o elemento da subordinação econômica, bastando que estejam presentes os elementos da subordinação jurídica conforme por nós já comentado, não se pode ignorar totalmente tal característica quando se tem em conta o pagamento de determinadas verbas trabalhistas.
Será que é realmente proporcional em sentido estrito exigir-se de um empregador doméstico que tenha a título ilustrativo, uma renda de aproximadamente cinco ou seis salários mínimos, por exemplo, os mesmos encargos que uma média ou grande empresa em relação a seus funcionários? Entendemos que não.
Para tanto, pugnamos que haja uma solução semelhante à dada quando estudado o caso dos microempreendedores individuais, sendo que no caso dos domésticos há a compulsoriedade do reconhecimento do vínculo empregatício: aqueles empregadores domésticos que auferirem uma renda anual (a ser determinada, ou pela jurisprudência ou por meio de legislação específica), pagariam determinadas verbas como horas extras, adicional noturno, dentre outros, em percentual inferior ás demais categorias de empregadores. O restante deveria ser custeado pelo Estado, de forma indireta. E de que forma seria? Através do abatimento do imposto de renda, quer seja o retido na fonte, quer o relacionado à declaração anual. Assim o Estado, através da atividade tributária estaria contribuindo para a concretização do ideal de justiça social e evitando o total sacrifício dos empregadores domésticos hipossuficientes.
Nota
[2] O tributo a que nos referimos é a contribuição previdenciária recolhida dos domésticos, que outrora poderia ser deduzida do Imposto de renda.