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Os limites na revisão constitucional em Moçambique

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23/06/2013 às 08:58
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4. A Evolução dos Limites de Revisão no Constitucionalismo Moçambicano

A Revisão Constitucional, como mecanismo através do qual é alterado o texto da Lei Constitucional em benefício da sua adaptação histórica, é na essência o processo de conformação entre a Lei Constitucional e a Constituição vindo daí a identificação da vontade da maioria popular ao seu texto pela alteração do seu conteúdo.

Os limites surgem para estabelecer fronteiras entre os valores maleáveis e os não maleáveis. Estes últimos são o garante da estabilidade política sem a qual é impossível a manutenção do vínculo da colectividade política. É por isso que a descontinuidade provocada na Lei Constitucional vem abalar a estabilidade deste compromisso ancestral traindo profundamente o povo, seu destinatário.

A Constituição de 1975, na sua versão originária, apresentava limites formais de revisão. A sua rigidez assentava na previsão de que qualquer alteração a própria constituição teria de ser aprovada por um mínimo de dois terços dos deputados da Assembleia Popular. Entretanto, não apresentava limites expressos de revisão em matéria de conteúdo. De observar que nas Constituições dos países com sistemas marxistas-leninistas não se topam normas sobre limites materiais de revisão constitucional, o que está ligado à concepção de constituição-balanço e constituição-programa que lhes subjaz.

A revisão de 1978 sobre a Lei Constitucional, como última presença da Constituição Revolucionária de 1975, não previu quaisquer normas relativas a revisão da própria Lei Constitucional tal era a falta de percepção jurídica do Estado própria dos sistemas centralistas de poder agenciada a sollo pela Frelimo.

Os limites nascem pela primeira vez com a revisão que se opera em 1990 como antecâmara para os acordos de paz de 1992. Relativamente aos limites circunstanciais e de procedimento, passa a estar prescrito que a revisão da Constituição podia ser operada a todo o tempo  – não havendo aqui qualquer limite temporal, contanto que as propostas de alteração devessem ser depositadas na Assembleia da República noventa dias antes do início dos debates (artigo 204.º da Constituição de 90). O interesse que presidia tamanha leveza na positivação dos limites temporais era sem dúvidas a percepção provisória da Constituição que cada um dos partidos políticos (Renamo e Frelimo) tinha durante o processo de revisão. Cada partido julgava vir a alterar a Lei Constitucional tão logo alcançasse o poder político que julgava absolutamente certo de aceder, dada a popularidade junto do eleitorado reclamada dos dois lados, pelo que era de aliviar a pressão dos limites temporais sobre tais pretensões.

Apesar da Constituição de 90 não apresentar nenhuma enunciação expressa de limites materiais de revisão, estes podem, contudo, ser apurados de forma implícita por recurso a um exercício de hermenêutica jurídica, ao dizerem respeito a matérias dos direitos fundamentais dos cidadãos e da organização dos poderes públicos. Neste caso as propostas de revisão adoptadas pela Assembleia da República seriam submetidas a debate público e levadas a referendo. Nos restantes casos, a alteração da Constituição é aprovada por maioria qualificada de dois terços dos deputados da Assembleia da República (artigo 199.º, números 1 e 2).

A Constituição de 2004 consolida o Estado de direito democrático e comporta de forma expressa limites formais e materiais de revisão. Pela primeira vez na história constitucional é ínsito um verdadeiro limite temporal, expresso pela condição de a revisão da lei magna só poder ocorrer decorridos 5 anos após a última revisão([5]) (artigo 293.º), já que a anterior Lei Constitucional previa a sua revisão a todo o tempo, condicionado pelo pedido do Presidente da República ou de um mínimo de um terço dos deputados da Assembleia da República (artigo 204.º da Constituição de 90).

De resto, os limites formais mantêm a base substancial da anterior Constituição. A iniciativa de revisão compete ao Presidente da República ou a pelo menos um terço dos deputados da Assembleia da República (artigo 291.º, número 1 da Constituição de 2004). A aprovação das alterações à Lei Constitucional continua condicionada por dois terços dos deputados em efectividade de funções. Só a Assembleia da República pode fazer leis de revisão, e não qualquer outro órgão, mantendo-se a ideia de que o Presidente da República não pode recusar a promulgação de Leis de Revisão Constitucional – artigos 295º, n.º 1 e 2). Os limites circunstanciais apontam que na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência não pode ser aprovada qualquer alteração da Constituição (artigo 294.º)

Pela primeira vez ainda, a Constituição de 2004 elegeu de forma expressa limites materiais de revisão, ou seja, as matérias que não podem ser objecto de reforma. Com efeito, o artigo 292.º dispõe o dever que recai sobre o poder reformador de respeitar as matérias que se prendem com:

a) a independência, a soberania e a unidade do Estado.

b) a forma republicana do Estado.

c) a separação entre as confissões religiosas e o Estado.

d) os direitos, liberdades e garantias fundamentais.

e) o sufrágio universal, directo, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania das províncias e do poder local.

f) o pluralismo de expressão e de organização política, incluindo partidos políticos e o direito de oposição democrática.

g) a separação e interdependência dos órgãos de soberania.

h) a fiscalização da constitucionalidade.

i) a independência dos juízes.

j) a autonomia das autarquias locais.

k) os direitos dos trabalhadores e das associações sindicais.

l) as normas que regem a nacionalidade, não podendo ser alteradas para restringir ou retirar direitos de cidadania.

Entende-se que, pese embora a extensão do artigo supramencionado, têm sido afirmados outros limites transcendentes. Seria na sua lógica os limites sobre o território do Estado (artigo 6.º, n.º 1 – o território da República é uno, indivisível e inalienável) e salvaguarda do estado social (atende-se aos direitos sociais tendencialmente universais: saúde (artigo 116.º), educação (artigo 113.º) e segurança social (artigos 124.º e 126.º).

Para Jorge Miranda a descrição enunciada não visa criar limites materiais de revisão. Visa antes declarar e garantir os limites a serem observados em revisão. Nesse sentido, pelo relativismo pode se admitir a revisão dos limites materiais. Porque é de princípios que se trata, não de preceitos avulsos (os preceitos poderão ser eventualmente modificados, até para clarificação ou reforço de princípios) a revisão, deve é garantir a intangibilidade destes princípios.

Jorge Miranda situa-se assim numa linha comum de desvalorização dos limites materiais expressos ou, pura e simplesmente, considerando as normas que consagram esses limites iguais às outras normas constitucionais; ou considerando, entende que pode haver uma “dupla revisão”, a primeira para apagar a norma que cristaliza o assunto a alterar e a segunda para fazer a directa alteração na matéria que deixou de estar protegida pelo limite material que entretanto desapareceu na primeira revisão.

Canotilho, por outro lado, entende que os limites materiais são para respeitar. A sua doutrina, com a qual, no caso mais nos identificamos, sugere que o poder constituinte, ao fazer uma nova Constituição tem o direito de diferenciar entre normas constitucionais mais fortes e outras menos fortes, tendo toda a liberdade de considerar algumas delas super-rígidas e excluí-las de um poder constituído – não constituinte – de revisão constitucional. Para este jusconstitucionalista, o critério de diferenciação fundamental na teoria dos limites materiais radica no conceito de identidade constitucional (Verfassungskern): “rever” conserva esse núcleo essencial da Constituição, enquanto “mudar” o aniquila…

Mesmo considerando a relativização na revisão dos limites materiais decorrente do número 2 do artigo 292.º da Constituição que permite a revisão constitucional das matérias expressas, se o processo for previamente sujeito a referendum, há-de se considerar, recuperando os ensinamentos de Jorge Miranda, caso a caso, o que caracteriza um limite absoluto e ao que reporta um limite relativo. Quer dizer, o poder constituinte originário tem de ser democraticamente legitimado, no sentido de que a feitura de uma constituição definitiva deve ser informada pela participação dos cidadãos e pelo método democrático. Não se deve perder a noção de que o poder reformador é materialmente limitado, quer dizer que o poder que faz a revisão da constituição deve respeitar determinados princípios (determinado conteúdo). Que o poder constituinte seja culturalmente situado, quer dizer que se exerce no quadro de uma cultura política. E esta é a cultura da limitação do poder político por via do constitucionalismo democrático.


5. Conclusão   

Não há de negar-se que o tema da revisão constitucional é polémico por si só, pois, qualquer alteração na Constituição de um país leva a sérias consequências políticas e económicas, além de repercutir em todo o ordenamento jurídico. Todavia, em muitos momentos mostra-se a mesma imprescindível para a manutenção da força normativa da Constituição, bem como para a sua adaptação às novas realidades sociais, económicas e políticas.

A verdadeira reforma não necessita da alteração de normas constitucionais, mas sim de uma reforma política. Contudo, é de se aceitar que a evolução seguida pela Constituição, por meio de sucessivas revisões, tem correspondido à evolução da sociedade.

As revisões devem por isso ser delimitadas no seu objecto. Ou melhor dizendo, que fiquem restritas ao essencial. Nesse particular, deve-se sempre, ao levar a efeito uma revisão da Constituição, atentar-se para os limites e objecto dessa reforma, bem como ao princípio da segurança jurídica e da própria estabilidade política.

É sempre possível melhorar a Constituição e qualquer um tem muitas ideias de alteração à Constituição. Qualquer texto jurídico pode ser aperfeiçoado. Mas é importante que fique assinalado que não há nenhuma obrigação jurídica de rever; e um país não pode estar a mudar constantemente as normas constitucionais, porque isso cria uma grande instabilidade política.

Compulsada a actual Constituição de Moçambique, destacam-se nela inúmeras virtudes, dentre as quais, o facto de se tratar de uma Constituição-garantia e ao mesmo tempo uma Constituição-prospectiva. É uma Constituição muito preocupada com os direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores e com a divisão do poder. Procura dar vida e enriquecer o conteúdo da democracia, multiplicando as manifestações de igualdade efectiva, participação, intervenção, socialização, numa visão ampla e não sem alguns ingredientes de utopia, talvez reminiscências de um momento histórico de perseguição do marxismo porque o nosso país passou, decorrente da reforma constitucional de 1978.

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Foi um fenómeno de desenvolvimento constitucional, e não de ruptura, aquele que atravessou as Constituições de 1975, 1990 e 2004, em mais de trinta e cinco anos da história constitucional de Moçambique, por efeito das revisões constitucionais, de uma jurisprudência ainda embrionária, mas enriquecedora e na interacção da crescente adopção da cultura cívica do moçambicanos.

Os cidadãos sabem, doravante, que têm na Constituição a sua carta de direitos e liberdades. E os tribunais e os órgãos administrativos sabem que a devem conhecer e aplicar.

Naturalmente, uma Constituição, como lei, pode ser aperfeiçoada e deve-se evitar o imobilismo. E, de resto, ainda que não haja revisões formais, uma Constituição evolui por força da interpretação, da prática e das decisões dos tribunais. Tudo está em que as revisões sejam realizadas na base da experiência, em tempo razoável à luz do dia, com equilíbrio e procurando aumentar, e não diminuir, os consensos inerentes às soluções constitucionais. Tudo depende ainda da destrinça entre aquilo que é permanente e aquilo que é conjuntural, entre aquilo que deve constar da lei fundamental e aquilo que deve pertencer às leis ordinárias, entre aquilo que dá identidade à Constituição e ao regime e aquilo que é acessório.

As revisões constitucionais devem ocorrer sim mas desde que as mesmas sejam realizadas com equilíbrio e não de forma global. De resto nenhuma Constituição é perfeita, pode ser sempre melhorada ou actualizada, pode ser mais ou menos aproximada da última expressão da vontade popular.

Em síntese, constata-se que as Constituições devem ser alteradas e aperfeiçoadas de modo a se adaptarem às novas exigências sociais, económicas e políticas. Todavia, essas modificações devem ser pautadas pelos princípios constitucionais e realizadas com equilíbrio, consensos e com olhos postos no futuro.

Em qualquer reforma, sejam modificados dezenas e dezenas de artigos, formais ou reais, de outros, devem permanecer os princípios cardeais de identidade da Constituição - os sintetizados da ideia de Estado de Direito democrático (declarado no preâmbulo e, também, no artigo 3.º). Os limites devem pois ser sempre respeitados.


6. Bibliografia

BONAVIDES, Paulo, Direito Constitucional, 17ª Edição, Malheiros, Rio de Janeiro, 2005.

CANOTILHO, José, Direito Constitucional, 6ª Edição, Almedina, Lisboa, 1993.

CARRILHO, José e NHAMISSITANE, Emídio Ricardo, Alguns Aspectos da Constituição, Departamento da Investigação e Legislação, Edicil, Ministério da Justiça, Maputo, 1991.

CARRILHO, José, Colectânea de Legislação Constitucional, CFJJ, Ministério da Justiça, Maputo, 2009.

CISTAC, Gilles, A Evolução Constitucional da Pátria Amada, GDI, Maputo, 2009.

LACERDA, Francisco de Melo, O Poder Constituinte e o Processo de Revisão Constitucional, in www.scrib.com/doc/17197161/ acessado em 30 de Maio de 2011.

LANGA, Jeremias, A Propósito da Revisão Constitucional, in www.opais.co.mz/index.php/ acessado em 29 de Maio de 2011.

MIRANDA, Jorge, Constituição e Cidadania, Coimbra Editora, Coimbra, 2003.

MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, II, 3ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1996.


Notas

([1]) O jornal diário O Pais, de 26 de Agosto de 2010, publicou um extenso artigo no qual o SG do Partido Frelimo indica não corresponder a verdade que o actual Presidente da República tenha intenção de se candidatar a um terceiro mandato.

([2]) V. o jornal Zambeze, de 26 de Maio de 2011.

([3]) In www.canalmoz.co.mz/hoje/19290-revisao-constitucional-visa-reforcar-hegemonia-machangana.html, acessado em 26 de Maio de 2011.

([4]) V. neste sentido, o boletim Wordpress, edição de 18 de Abril de 2011 e o estudo  conjunto do Instituto do Apoio à Governação e Desenvolvimento (GDI) e da Liga dos Direitos Humanos (LDH) que propõem ainda a redução de poderes do Presidente da República.

([5]) Nem bem assim, porquanto extraordinariamente, pode a revisão ocorrer a qualquer momento desde que aprovada por maioria de pelo menos três quartos dos deputados da Assembleia da República. 

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Sobre o autor
Carlos Pedro Mondlane

- Juiz de Direito em Maputo (Moçambique);- Formador no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ); - Membro do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ);- Membro da Associação Moçambicana de Juízes (AMJ); - Promotor de Direitos Humanos;- Mestre em Direito Empresarial pela Universidade Católica de Moçambique - Licenciado em Direito pela Universidade Eduardo MondlaneAutor de:- Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança, Anotada e Comentada- Código de Processo Civil, Anotado e Comentado- Colectânea dos 15 Anos da Lei de Terras: Venda de Terra em Moçambique: Mito ou Realidade?- Manual Prático dos Direitos Humanos (no prelo)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONDLANE, Carlos Pedro. Os limites na revisão constitucional em Moçambique. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3644, 23 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24761. Acesso em: 25 abr. 2024.

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