José Saramago disse: “eu não escrevo para agradar nem desagradar, escrevo para dessassogar”.
A cidade de Detroit, nos Estados Unidos, pode ser considerada como a cidade símbolo do capitalismo moderno, pois foi lá que a indústria de automóveis ganhou a famosa fábrica da Ford Motor Company, de Henry Ford, que desenvolveu a linha de produção dos modelos Ford A e T, por exemplo[1]. Outras tantas montadoras se estabeleceram no local, como a Chrysler e a General Motors, e o local foi sinônimo de “cidade de desenvolvimento no âmbito industrial” e que produziu boa parte das armas e bens que alimentaram a 2ª Guerra Mundial.
Mas na década de 70 (e início de 80) Detroit começou o seu declínio, pois a produção de bens industriais, sobre tudo da indústria automobilística, começou a se pulverizar para outros estados da federação americana e para outros países, como Alemanha e Japão.
Luis Nassif traduz que[2]:
“Nessa época, os bons tempos já tinham terminado para esta festejada metrópole da modernidade. Em meio século, Detroit perdeu quase um milhão de pessoas, ou metade de sua população. Muitos prédios do centro, inclusive o United Artists Theater e a estação de trem majestosa, foram abandonados. Quando os últimos locatários deixavam os prédios de apartamentos, o aquecimento era simplesmente desligado e a eletricidade desconectada. A água vazava para os prédios vazios, o gelo rachava as paredes e colunas, e as janelas se estilhaçavam. O resultado foi uma visão quase gótica de declínio” Ora, o panorama de uma das principais cidades da revolução industrial americana é este: o de completa mudança e deterioração[3].
Mas o que Detroit tem haver com a data primeiro de maio se o movimento foi em maio de 1886 e com foco em Chicago?
Pois bem. Os movimentos operários americanos pelos idos de 1886 não estavam apenas concentrados em Chicago. Outras cidades norte-americanas possuíam o mesmo movimento industrial e “revolucionário” trabalhista que pugnava por melhores condições de trabalho, como o caso de Detroit, e estas reivindicações possuíam como bandeira a redução da jornada de trabalho, com o slogan: “8 horas de trabalho, 8 horas de descanso e 8 horas de lazer”.
E mais. Esta bandeira empunhada pelos trabalhadores norte-americanos teve seu levante muito antes na Europa, e foi encampada pela “Associação Internacional dos Trabalhadores” (AIT) ou a “Primeira Internacional” já nos anos de 1864 em Londres que advogava que os trabalhadores deveriam possuir melhores condições de trabalho, com redução de jornadas, melhores salários e outros direitos básicos (por curiosidade a “Segunda Internacional”, ocorreu apenas em 1889).
Porém Detroit diferentemente de Chicago regrediu social e industrialmente, sofrendo uma drástica redução nos níveis sociais devido à perda das vagas de trabalho e do êxodo urbano de diversas classes sociais. E a razão foi simples: a globalização industrial.
Se é certo que desde meados do século XIX a luta da classe operária foi crescente para melhorar suas condições de trabalho, de vida e do meio ambiente de trabalho, é mais certo que as últimas crises economias e as instabilidades financeiras globais desde o fim da década de 70 do último século e a mais recente “crise” econômica global de 2008, foram palcos para a acentuação e a ruptura definitiva da economia com as propostas trabalhistas emancipatórias.
Assim é possível constatar desde então:
a) que parte dos postos de trabalhos ainda mantidos pelas empresas globais e financeiras são precários e tendem a se extinguir em breve;
b) que o mercado econômico global aproveitou a oportunidade de 2008 para suprimir definitivamente diversos postos de trabalho e assim “enxugar custos e despesas”;
c) que o pretexto da “crise de 2008” (e das anteriores) foi bem empregado pelos investidores e pela classe rica já que ao término do período de turbulências se viram ainda mais “ricos” devido a elevada concentração de riquezas e alternâncias nos investimentos;
d) que boa parte dos trabalhadores dispensados na ocasião ou foram para a economia informal ou se sujeitaram a ganhos menores e reduzidos, tudo para manter os postos de trabalho;
e) que as grandes empresas e corporações, decorridos menos de 04 anos da “famigerada crise” (de 2008, apenas para ilustrar) já operam com lucros exorbitantes e isso devido a pulverização de ganhos e produção, ou seja, polos industriais e fabris de robusta estrutura são hoje desnecessários no mundo globalizado e se for necessária uma produção maior, é fácil terceirizar a produção para a China e demais países do Oriente em que as condições de trabalho são ainda precárias e com leis mínimas de proteção ao trabalhador inexistentes;
f) que muitas empresas e corporações tomaram dinheiro publico para superar os momentos de “crise” mas não ofereceram como contrapartida a manutenção ou a abertura de novas vagas de trabalho, sendo que o capital que circulou serviu para honrar dívidas fiscais, societárias e com fornecedores, e mais, mesmo após a “crise” e a recuperação de boa parte das empresas e corporações elas não retomaram as contratações de pessoal, optando sim pela informatização e mecanização de setores.
Tais constatações nos remetem a certeza de que o fato de Detroit ter se definhado nos últimos anos é apenas a consolidação de uma tendência global, que dispensa os trabalhadores organizados, quer sob a égide de sindicatos, quer com direitos mínimos e reivindicações constantes.
Neste ponto, cumpre salientar, que qualquer país com uma estrutura trabalhista mínima se torna alvo da “economia global predatória” contra os trabalhadores, tudo em troca da exacerbada informatização e mecanização de setores, ou pior, da supressão de vagas qualificadas de trabalho para a abertura de outras precárias, como ocorre com o mercado Chinês e Indiano.
Com efeito, pouco será relevante ao mercado global que cidades inteiras sumam do mapa, pois o norte econômico-financeiro buscará outros horizontes cambiantes e sem estacas ou amarras prevalecendo a máxima para o mercado capitalista: “vá-se onde o dinheiro está” mesmo que hoje aqui e amanhã acolá (e que isto importe em mudanças de continentes) já que este é o sentido mais puro de “globalização” com seu sistema de produção “neo-toyotista” se é que ainda podemos rotular qualquer sistema, haja vista as recorrentes práticas de dumping social.
Em um paralelo e na realidade bem próxima, todos estes pontos nos remetem ao crescente debate entre sindicatos de empregados e o setor empresarial nos últimos anos no Brasil. Coincidentemente ou não, desde a adoção de uma política neoliberal escancarada após 1998 e com acento na “crise de 2008”, qual seja, da impossibilidade de concessão de direitos trabalhistas acima do mínimo previsto na lei, sob pena de “fechar e suprimir” postos de trabalho (vide por exemplo o debate atual em torno da regulamentação dos direitos das empregadas domésticas). E, por incrível que pareça, o próprio trabalhador já introspectou esta ideia, pois, quando o Sindicato elabora uma pauta de reivindicações pelo interesse dos trabalhadores e propõe em assembleia o debate que sempre aparece é o debate antagônico da necessidade de crescimento da empresa e é quase certo que esta será rejeitada já que o que interessa hoje são: a) a manutenção do posto de trabalho; e por um menor custo; versus b) o aumento de salário, mesmo que este seja apenas o repasse da correção da inflação.
Ora, hoje mais do que antes há uma necessidade dos sindicatos, as associações que defendem os trabalhadores, a massa operária em geral, se voltar contra a classe dominante e que detém os postos de trabalho.
Sim, a proposta é volver-se contra a classe dominante que detém os postos de trabalho (como os grande conglomerados e corporações) e que detém o monopólio financeiro e econômico (especulativo) para cobrar e reivindicar não apenas o mínimo (emprego e correção de salários) mas sim condições mínimas e melhorias de uma vida (laboral) digna, pois a máxima ainda é verdadeira: “trabalho não é mercadoria”.
Esta proposta se mostra factível uma vez que todo e qualquer governo antes de modificar sua política econômica dialoga abertamente com os grandes grupos empresariais, nacionais e multinacionais, para só então propor modificações econômicas e que não se preocupam com os direitos mínimos da classe trabalhadora. Então, porque não dialogar com a classe trabalhadora ou pelo menos considerar efetivamente as suas reivindicações?
É certo que a passividade da população obreira que se submete a qualquer forma e condição de trabalho remete o operário moderno àquele dos tempos dos movimentos de trabalhadores de Detroit, Chicago, Paris, Londres, e outras cidades. Ou seja, o trabalhador moderno é submisso a toda e qualquer forma de trabalho apenas para manter seu emprego, tem a percepção de que as condições de trabalho não são boas e não atingem o mínimo esperado – basta constatar a quantidade de ações envolvendo o tema “assédio moral”- porém, é certo que diferentemente de outrora a massa dos trabalhadores não possui capacidade de mobilização e reação. A massa trabalhadora atual está sim alienada, e boa parte deste processo de alienação se dá pelo uso do marketing interno das empresas, em rotular o trabalhador como colaborador e incutir em suas ações diárias a ideia de que “ele faz parte da empresa e que deve vestir a camisa da empresa”.
Para caracterizar a mudança de discurso ou mesmo a tentativa das empresas de “enganar” a massa trabalhadora, é comum que o controle social e econômico se dê pela plataforma: “as empresas não contratam porque não há pessoas qualificadas”! Esta é a maior anedota que se poderia ouvir, pois se não há pessoas preparadas para o que se espera e almeja numa função específica na empresa de duas uma: ou não se precisam destas pessoas para trabalhar já que qualificá-las e treiná-las sempre foi o objetivo social da empresa, ou a empresa/mercado não deseja o trabalhador naquele momento e impõe-lhe um discurso de ausência de qualificação para manter um exército de reserva muito bem qualificado e barato (é a teoria da mais-valia potencializada por um exército de reserva qualificado e sedento por emprego)!
O mercado neoliberalismo (para ser redundante) encontrou a fórmula para a obtenção do lucro máximo e sem reduzir direitos trabalhistas, basta não abrir postos de trabalho, pois se a máquina e o computador conseguem fazer tudo pelo trabalhador a empresa não precisa deste elemento (que enseja custos e prejuízo sob a ótica empresarial) para compor sua estrutura, logo, a mais valia hoje é mais perversa e devastadora que outrora, já que não se tem a vaga de trabalho e quando a tem é composta por um posto considerado como subemprego (advindo da terceirização ou quarteirização e assim por diante).
Viver e participar do “Primeiro de Maio” em grandes eventos ou festas populares e por meio de um feriado nacional como ocorre em todo o Brasil é um retrocesso social.
A mídia consegue o controle da massa (trabalhadora) que também é vítima e acaba por ser controlada por uma elite política desinteressada nas reais condições da vida humana, pois nestes grandes eventos populares não se reivindicam melhores condições de salários ou reforma política-econômia que enseje crescimento constante (como aconteceu em maio de 1886), atualmente, só se espera a presença do deputado, do senador, do governador ou do prefeito para sortear um carro, uma casa ou mesmo uma geladeira, compondo assim um verdadeiro show de “pão e circo”. Precisando o termo: o “Primeiro de Maio popular com festas e shows” corresponde a um verdadeiro “Show de horrores bancado por aqueles que encampam a filosofia de “Wall Street” e adjacências!”
Logo, se considerarmos que a economia global está em aceleração e retomada de uma estagnação (para alguns designada por “crise”) e que novos horizontes econômicos e sociais estão aparecendo, é certo que este é o momento histórico e social de se retomar os movimentos operários de 150 anos que reivindicavam o reconhecimento do trabalhador como ser humano e mostrar que: ou o país muda seu eixo político-social-econômico para repensar a figura do humano-trabalhador-cidadão como o norte a ser perseguido de forma urgente ou em breve teremos um sombrio horizonte como aquele que recobre toda a classe operária europeia nos últimos 12 meses, desde os problemas com a Grécia, com a Itália e recentemente com a Espanha (qual seja, ausência de empregos para quase 1/3 (um terço) da população), ou ainda pior, teremos inúmeras cidades fantasmas como Detroit.
E fica o recado: não adianta quebrar as máquinas, pois a culpa não é delas e sim da política econômica global e adotada pelo país.
Por fim, propomos um slogan para o povo no feriado do dia primeiro de maio que ao invés de gritar o nome do ídolo que cantará no “mega show”, poderia sim gritar: “Mudanças de consciência já!”, sob pena da próxima Detroit Americana ser aqui, amanhã!
É necessário romper a alienação da massa trabalhadora e por que não consumerista (consumidor), pois ambos os grupos são manipulados pelo capital e pelos poucos que o dominam e hoje os trabalhadores vivem para consumir e vice-versa.
Enfim, e para encerrar, novamente de José Saramago: “Não é que seja pessimista é que o mundo é péssimo”.
Notas
[1] http://www.ford.com.br/centenario.asp, acesso em 24/04/2012, às 20h
[2] http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/albert-kahn-e-o-declinio-de-detroit
[3] As imagens da cidade deserta são impressionantes, vide em: http://avieladoocio.blogspot.com.br/2012/03/detroit-em-ruinas-por-yves.html