Resumo: Partindo de breve explanação quanto à acepção tradicional do direito à privacidade, insculpido no art. 5º, inc. X, da Constituição Federal, o presente artigo procura demonstrar um conceito mais amplo desse direito, construído jurisprudencialmente pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que o tem como uma verdadeira esfera de liberdade do indivíduo, intangível ao poder regulamentar do Estado. Para tal, far-se-á a análise de três casos julgados por esse tribunal constitucional, nos quais a existência do direito à privacidade é deduzida da concisa Constituição norteamericana, traçando-se, ainda, limites para sua aplicação. Busca-se demonstrar, por fim, que tal noção não somente é aplicável ao ordenamento jurídico pátrio, como não é estranha à doutrina brasileira.
Palavras-chave: Direito à privacidade. Conceituação. Suprema Corte dos Estados Unidos. Limites de aplicação.
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1 A acepção tradicional do Direito à Intimidade . 2.2. O direito à intimidade como esfera de autodeterminação do indivíduo . 2.2.1 O Right to Privacy na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos . 2.2.1.1 Griswold v. Connecticut . 2.2.1.2 Roe v. Wade . 2.2.1.3 Lawrence v. Texas . 2.3. Adequação e Aplicação da Noção ao Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2.3.1 A Adequação . 2.3.2 A Aplicação: os Limites . 3. Conclusão. Referências
1. Introdução
O constitucionalismo contemporâneo tem, como um de seus principais movimentos, senão o principal, o chamado neoconstitucionalismo. Dentre as facetas que pode assumir essa tendência vanguardista, a mais adequada talvez seja a que destaca o reconhecimento da normatividade dos preceitos constitucionais, aptos a criar verdadeiros direitos subjetivos ao jurisdicionado, sem falar na nova hermenêutica.[1]
Nesse contexto, sobressai, também o chamado princípio da interpretação efetiva das normas constitucionais, sobretudo daquelas que veiculam direitos e garantias fundamentais, de acordo com o qual a melhor interpretação dos preceitos constitucionais é aquela apta a dar-lhes maior efetividade.[2]
Destaca-se, assim, a necessidade de construção efetiva da significação, do alcance e da abrangência das normas constitucionais. Este estudo, tendo em vista que o Direito brasileiro não pode ignorar a existência de outros ordenamentos jurídicos, tem como grande fonte de ideias o direito comparado.
Por óbvio, não se trata de simplesmente importar institutos do direito estrangeiro e aplicá-los no Direito brasileiro, mas sim proceder à análise de sua adequação e aplicabilidade ou não ao direito pátrio.
Sob tais premissas, ora se passa ao exame da acepção do direito fundamental à intimidade no Direito brasileiro, tendo-se por base a definição que lhe foi atribuída pela jurisprudência norte-americana.
2. Desenvolvimento
2.1. A acepção tradicional do Direito à Intimidade
A Constituição Federal de 1988, fruto do processo de redemocratização do Brasil e que representa a ruptura com o Estado autoritário, trouxe extenso rol de direitos e garantias individuais, positivados como cláusulas constitucionais pétreas (CF/1988, art. 60, § 4º, IV), dentre os quais a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, inc. X).
Certamente, não é coincidência o fato de estarem tais direitos assegurados no mesmo inciso em que se protege a honra e a imagem das pessoas, bem como se proclama o direito à indenização decorrente de dano moral e material por violação daquelas. Da correlação entre todos esses institutos, nasceu a acepção prevalente na doutrina e na jurisprudência pátrias acerca do direito à intimidade.
Nessa perspectiva, esse direito é tido como protetor da vida íntima do indivíduo, impedindo que sejam revelados aspectos de sua vida privada, de forma a proteger sua honra objetiva, sendo garantida indenização por danos materiais ou morais em caso de violação. É essa a lição de EDSON FERREIRA DA SILVA:
O direito à intimidade consiste no poder jurídico de subtrair do conhecimento alheio e de impedir qualquer forma de divulgação de aspectos da nossa existência que de acordo com os valores sociais vigentes interessa manter sob reserva.[3] Grifamos
Nessa dimensão, discute-se se o direito à intimidade seria decorrência do direito à inviolabilidade do domicílio (man’s home in his castle) ou do direito à honra. Nada obstante, o direito em comento ganhou, verdadeiramente, espaço e autonomia quando da afirmação dos direitos da personalidade, corolários do princípio da dignidade humana.[4]
Assim, alcança grande relevância o direito à intimidade quando se fala na horizontalização dos direitos humanos ou na constitucionalização do direito civil. Destaque-se, nesse prisma, que o Código Civil de 2002, além de dedicar capítulo específico aos “direitos da personalidade”[5], dentre os quais está a inviolabilidade da vida privada (art. 21), reconheceu, formal e expressamente, a reparabilidade dos danos morais, corroborando sobremaneira para a defesa da privacidade, já elevada à condição de direito fundamental.
Ademais, SILVIO ROMERO BELTRÃO enumera uma série de outros dispositivos legais nos quais estaria consubstanciada a proteção à intimidade, na acepção tradicional de que ora se trata. Dentre estes, estão o artigo 573 do Código Civil de 1916 (sem correspondente no novo código), que facultava ao proprietário embargar a construção de prédio quando a menos de metro e meio do seu, se abra janela, ou se faça eirado, terraço ou varanda; o art. 155 do Código de Processo Civil, que dispõe sobre segredo de justiça; os crimes contra a honra (Capítulo V do Título I da Parte Especial do Código Penal) e as disposições constitucionais sobre a inviolabilidade do domicílio (CF/88, art. 5º, XI), da correspondência e das comunicações (CF/88, art. 5º, XII), bem como sobre a inadmissibilidade de provas ilícitas no processo (CF/88, art. 5º, LVI).[6]
2.2 O direito à intimidade como esfera de autodeterminação do indivíduo
Muito embora não se negue a importância do direito à intimidade em sua acepção tradicional, acima descrita, esse direito também pode assumir uma faceta bem mais ampla, funcionando como verdadeiro limite constitucional à ação legislativa do Estado. Tal caracterização deriva da jurisprudência norteamericana e, como se procurará demonstrar, é plenamente aplicável à realidade constitucional brasileira, não sendo, inclusive, estranha à doutrina nacional.
2.2.1 O Right to Privacy na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos
Diferentemente da Constituição brasileira de 1988, a Constituição dos Estados Unidos da América, que data de 1787 (com substancial adição de novos direitos fundamentais pelas chamadas emendas pós-guerra civil), é tida como um documento conciso. Dentre as vantagens de um texto constitucional sucinto, está, exatamente, sua maior flexibilidade e a possibilidade de adequação aos novos tempos. Nas palavras de PAULO BONAVIDES:
As Constituições concisas ou breves resultam numa maior estabilidade do arcabouço constitucional, bem como numa flexibilidade que permite adaptar a Constituição a situações novas e imprevistas no desenvolvimento institucional de um povo, a suas variações mais sentidas de ordem política, econômica, financeira, a necessidades, sobretudo de improvisar soluções que poderiam, contudo, esbarrar na rigidez de obstáculos constitucionais.[7]
Nesse contexto, a Suprema Corte dos Estados Unidos desempenha papel fundamental no processo de adequação do texto constitucional às novas situações que têm surgido desde a promulgação do documento, no século XVIII. Nesse sentido, THURGOOD MARSHALL, um dos mais respeitados justices[8] da Suprema Corte americana, tendo servido até o início da década de noventa, afirma:
Quando americanos contemporâneos citam ‘A Constituição’, eles invocam um conceito que é vastamente diferente do que os Framers[9] malmente começaram a construir há dois séculos.[10]
E arremata:
Os homens que se reuniram na Filadélfia em 1787 não poderiam ter previsto essas mudanças. Eles não poderiam ter imaginado, nem teriam aceitado, que o documento que estavam escrevendo seria um dia construído por uma Suprema Corte para a qual tinham sido nomeados uma mulher e um descendente de escravos africanos[11]
Assim, dentre as várias interpretações da Constituição americana realizadas pela Suprema Corte, destaca-se a declaração da existência do direito à privacidade (right to privacy), que não se encontra expressamente positivado na Lei Maior dos EUA, mas que tem substancial importância na jurisprudência do tribunal constitucional norteamericano, conforme pode ser observado da análise dos três importantes precedentes a cujo relato se passa.
2.2.1.1Griswold v. Connecticut[12]
Nesse caso emblemático, a Suprema Corte dos Estados Unidos expressamente reconheceu a existência do direito à privacidade, em uma acepção geral, como verdadeiro limite constitucional à intromissão do Estado em certos aspectos da vida privada dos indivíduos.
Em Griswold v. Connecticut, os apelantes buscavam a declaração de inconstitucionalidade de um estatuto do estado de Connecticut, com base no qual haviam sido condenados. A lei criminalizava a utilização de qualquer droga ou artefato para prevenir a concepção.
Reformando o julgamento do tribunal a quo, a Suprema Corte julgou, por maioria, procedentes os argumentos dos apelantes e declarou inconstitucional o estatuto estadual, enquanto aplicado ao caso.
O acórdão da corte suprema consignou que a lei em análise interferia, diretamente, na relação íntima entre marido e mulher e o papel de seu médico em um dos aspectos desta relação.[13] Ademais, relembrou haver diversos precedentes daquele tribunal a reconhecer “direitos periféricos”, não positivados expressamente, mas sem cuja existência os direitos expressos aos quais se filiam estariam menos seguros.[14]
Por fim, a Corte, para declarar a inconstitucionalidade da lei de Connecticut, exarou demonstração sistemática da existência implícita de um direito à privacidade na Constituição dos Estados Unidos, como corolário obrigatório dos demais direitos por ela assegurados, litteris:
Vários casos criam zonas de privacidade. O direito de associação contido na penumbra da Primeira Emenda é uma, como vimos. A Terceira Emenda, em sua proibição contra o aquartelamento de soldados em qualquer casa sem o consentimento do dono, em tempo de paz, é outra faceta de tal privacidade. A Quarta Emenda explicitamente afirma o ‘direito das pessoas de estar seguro em sua pessoa, casa, papéis e efeitos, contra buscas e apreensões não razoáveis’. A Quinta Emenda em sua Cláusula de Auto-Incriminação autoriza ao cidadão que crie um zona de privacidade da qual o governo não pode obrigá-lo a abrir mão em seu detrimento. A Nona Emenda dispõe: ‘A enumeração na Constituição de certos direitos não deve ser interpretada de modo a negar ou depreciar outros detidos pelos indivíduos’[15]
Assim, a Suprema Corte reconheceu existir o direito à privacidade, em que pese não estar expressamente consignado na Constituição e tratou-o, desde então, como barreira à intromissão do Estado na vida dos indivíduos, reconhecendo a inconstitucionalidade de uma lei estadual por violação à privacidade, tendo em vista que permitia ao governo que interferisse na vida privada dos indivíduos, ao proibir que fosse utilizado qualquer meio de contracepção.
2.2.1.2Roe v. Wade[16]
Nesse famosíssimo caso, Roe, uma mulher solteira e grávida, buscava a declaração de inconstitucionalidade de uma lei do estado do Texas que criminalizava o aborto, exceto se decorresse de aconselhamento médico e para salvar a vida da mãe. Em que pese a longa digressão quanto ao histórico de leis que trataram sobre o aborto e sobre o início da vida, o acórdão exarado pela Suprema Corte, neste caso, em mais uma decisão por maioria de votos, tem o direito à privacidade como ponto central.
Desta vez, oito anos após a decisão em Griswold v. Connecticut, a Suprema Corte embasou a existência do direito à privacidade nos conceitos de liberdade individual e nas restrições à ação do Estado, constantes da Décima Quarta Emenda à Constituição, bem como na Nona Emenda, além de precedentes do próprio tribunal. Ademais, julgou a Corte que o right to privacy seria amplo o suficiente para abranger o direito de uma mulher de decidir se interromperá ou não sua gravidez, tendo em vista os danos que a inexistência de tal faculdade poderia trazer-lhe.[17]
A contribuição mais importante do caso sob análise, contudo, é a fundamentação constante da parte final do acórdão, que delineia o direito à privacidade, o qual, como esfera de autodeterminação do indivíduo, livre de qualquer intromissão estatal, não pode ser um direito absoluto. Assim, a Corte reconheceu que suas decisões anteriores, em que se fizera menção ao direito à privacidade, também haviam reconhecido a possibilidade de que o Estado regulasse, legitimamente, algumas áreas protegidas por referido direito.[18]
Os casos, entretanto, em que seria legítima a regulamentação estatal, agindo sobre áreas da vida privada do indivíduo, seriam somente aqueles em que o Estado tivesse algum interesse a defender que, além de legítimo e importante, fosse coercivo (compelling) e que exigisse algum nível de intromissão na vida privada do jurisdicionado.
Partindo dessa última premissa e do fato científico demonstrado na dilação probatória de que, somente em abortos realizados até o final do primeiro trimestre de gravidez, a mortalidade da gestante é menor que aquela verificada durante o parto normal, a Suprema Corte fixou o marco trimestral para a existência ou não de um interesse estatal coercitivo. Desse modo, nos três primeiros meses de gravidez, como o risco de um aborto, para a vida da mãe, é inferior àquele de um parto normal, o Estado não tem interesse coercivo em regular tal prática, sendo inconstitucional qualquer lei nesse sentido. Após o primeiro trimestre, contudo, pode o Estado limitar o direito ao aborto, com vistas ao bem-estar da gestante, cuja proteção justificaria o interesse estatal coercivo.[19]
Ademais, a Suprema Corte fixou um segundo marco: a “viabilidade” do feto, que ocorreria após cerca de sete meses de gravidez,[20] quando surgiria um interesse estatal coercivo na proteção da vida em potencial, a partir do qual seria legítima a legislação estatal, ainda que proibisse o aborto, salvo casos de manifesto risco para a vida ou a saúde da mãe.[21]
2.2.1.3Lawrence v. Texas[22]
Nesse caso mais recente (2003), questionava-se a validade, perante a Constituição Federal, de um estatuto texano que tornava crime a prática de certas condutas sexuais entre duas pessoas do mesmo sexo.[23] A Suprema Corte, no acórdão subscrito pela maioria dos seus membros (seis dos nove magistrados), deixou de lado possível violação do princípio da isonomia e se concentrou na discussão quanto à violação do direito à liberdade, positivado na Décima Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos, em seu aspecto substantivo, suscitado em Griswold v. Connecticut e em outros precedentes: o right to privacy.
O tribunal reconheceu, então, que a ação criminalizada pela lei do Texas dizia respeito à mais íntima conduta humana, regulando um tipo de relacionamento, o homossexual, que, seja ou não reconhecido pelo direito, está dentro do leque de escolhas pessoais, às quais são intitulados os indivíduos, por força do direito à liberdade, especialmente no que tange à vida privada.[24]
Assim, fazendo referência a uma esfera de liberdade no interior da qual a conduta privada do indivíduo é protegida da ação legislativa estatal, decidiu a maioria, in verbis:
O caso envolve dois adultos que, com completo e mútuo consentimento do outro, realizaram práticas sexuais comuns a um estilo de vida homossexual. Os apelantes têm direito que sua vida privada seja respeitada. O Estado não pode humilhá-los ou controlar seu destino, tornando crime sua conduta sexual privada. Seu direito à liberdade sob a égide do Devido Processo Legal lhes concede completo direito de adotar tal conduta sem intervenção governamental. ‘É promessa da Constituição que exista uma esfera de liberdade pessoal onde o governo não pode entrar.’ Casey, supra at 847. O estatuto texano não protege nenhum interesse estatal legítimo que possa justificar intrusão na vida pessoal e privada do indivíduo.[25]- grifos apostos
Desse modo, a Suprema Corte, no presente caso, seguiu a mesma linha verificada nos casos Griswold e Roe, declarando o direito à privacidade como corolário fundamental do direito à liberdade, delineando a esfera de autodeterminação do indivíduo que não pode ser regulada por legislação estatal, sob pena de inconstitucionalidade. Não obstante, o excerto acima transcrito também faz a mesma ressalva verificada em Roe: a possibilidade de intrusão legítima do Estado na vida pessoal do jurisdicionado quando exista um interesse estatal legítimo e coercivo, que, in casu, não se verificou.
2.3 Adequação e Aplicação da Noção ao Ordenamento Jurídico Brasileiro
Além dos casos supramencionados, em diversos outros, a Suprema Corte dos Estados Unidos pronunciou-se quanto ao direito à privacidade. Nada obstante, da análise dos três casos aqui citados, pode depreender-se dois aspectos basilares desse direito, aos quais se deve dar especial atenção quando da análise da adequação da noção ao ordenamento jurídico brasileiro.
a) O tribunal constitucional norteamericano, apesar de apontar diversas cláusulas da Constituição que dão subsídio à tese da existência do direito à privacidade (Griswold v. Connecticut), pauta-o, principalmente, nos casos mais recentes, no direito fundamental ao devido processo legal, em sua acepção substantiva, especialmente no que respeita à liberdade.
b) Ao reconhecer o direito fundamental à privacidade, a Suprema Corte dos EUA também fixou limites para a sua aplicação. Tal barreira, na jurisprudência norteamericana, consubstancia-se na existência ou não de um interesse estatal legítimo e coercivo (compelling) que justifique a intromissão estatal na vida privada dos cidadãos.
Assim, a partir desses dois pontos fundamentais, proceder-se-á à análise da adequação da noção do direito à privacidade, como uma esfera de liberdade individual, ao Direito brasileiro, bem como ao exame da maneira como deveria ser feita sua aplicação.
2.3.1 A Adequação
Quando se fala no right to privacy enquanto corolário do direito à liberdade, no contexto do devido processo legal substantivo, destaca-se sua qualidade de legítimo direito individual. Nesse sentido, deve-se atentar para o fato de que a Constituição da República Federativa de 1988 tem, como subsídio fático, a ruptura com o Estado autoritário vigente antes de sua promulgação, razão pela qual inicia com o capítulo referente aos direitos individuais, dotando-os de absoluta rigidez, consubstanciada na impossibilidade de modificação mesmo por meio de emenda à Constituição, ao que a doutrina nacional chamou de caráter pétreo.
Assim, o espírito da Constituição é exatamente a ruptura com o estado policialesco e autoritário anteriormente vigente, quando se legitimou, sob a égide da Emenda Constitucional nº 1/1969, a censura, a violenta perseguição à oposição, a tortura e a proscrição da atividade política, entre outras condutas estatais atentatórias à mínima liberdade individual que um Estado precisa permitir aos seus cidadãos para intitular-se democrático.
Desse modo, nada mais condizente com o espírito do texto promulgado em 1988 do que a noção de privacidade sobre a qual se discorre. É bem verdade que a Carta de 1988 procurou ser analítica, descrevendo, detalhadamente, os direitos individuais, dentre os quais se encontram a vedação à tortura (art. 5º, III) e à censura (art. 5º, IX). Ainda assim, não se pode esperar que texto legislativo algum, quanto menos a Constituição, dotada que é de tamanha rigidez, regule satisfatoriamente todas as situações que possam acontecer, de modo que a acepção ampla do direito à privacidade, aqui defendida, tem, sim, grande relevância.
Nesse sentido, e demonstrando que a doutrina nacional alberga o conceito da privacidade como verdadeira esfera individual intangível à regulação estatal, destacam-se opiniões doutrinárias em dois campos diametralmente opostos do direito: o direito penal e o comercial. No primeiro, GUILHERME DE SOUZA NUCCI defende terem sido a contravenção denominada de vadiagem (art. 59 do Decreto-Lei nº 3.688 de 1941[26]), bem como a prisão cautelar em decorrência desta conduta, tacitamente revogadas pela Constituição de 1988, já que esta protege o direto à intimidade, in verbis:
“(...) vadiagem – resulta de uma época em que se dava muita atenção aos bons costumes, onde estaria inserido o ‘dever’ de manter trabalho honesto. Não mais estamos em época de persistir nessa linha, até porque a Constituição de 1988 privilegiou, sobremaneira, os direitos individuais, dentre os quais está a intimidade, não devendo o Estado imiscuir-se nesse âmbito. Logo, trabalhar ou não é um problema de cada um (...)”[27] – grifos acrescidos ao original
De outra banda, no direito empresarial, FÁBIO ULHOA COELHO, ao comentar o art. 51, inc. VI, da Lei nº 11.101/2005, que elenca, como requisito essencial à petição inicial do pedido de recuperação judicial de uma empresa ou sociedade empresária, a relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor, opina ser a única interpretação condizente com a Constituição da República, aquela que legitima a recusa em apresentar tal lista, em razão do direito à privacidade. Afirma o autor, litteris:
“Questão interessante a analisar diz respeito à recusa do sócio, acionista controlador ou administrador em apresentar relação de seus bens. Como a Constituição Federal garante a inviolabilidade da vida privada (art. 5º, X), é plenamente válida a negativa de fornecimento da relação de bens.”[28]
Assim, não só o direito à privacidade, como esfera de autodeterminação individual intangível ao ímpeto regulatório estatal, é aplicável ao Direito brasileiro, como a noção não é estranha à doutrina pátria, nas mais distintas áreas.
2.3.2 A Aplicação: os Limites
Ao aplicar o right to privacy aos casos concretos, ensejando, inclusive, a declaração de inconstitucionalidade de algumas leis estaduais em face daquele, a Suprema Corte dos Estados Unidos nunca o considerou um direito absoluto, mas sempre realizou juízo de ponderação quanto à existência ou não de um interesse estatal coercivo (compelling), que justificasse a intromissão do Estado na vida privada do indivíduo.
Tal noção de ponderação entre dois valores, o direito à privacidade, de um lado, e um dever coercivo do Estado, do outro, ficou bem clara na decisão de outro famoso case da jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, Planned Parenthood v. Casey, que mudou o parâmetro quanto à constitucionalidade de leis que versem sobre o aborto instituído em Roe v. Wade, sem, contudo, revogar os seus principais pontos. Afirmou a corte constitucional em Casey:
“O julgamento de requerimentos pautados no devido processo legal substantivo requer que esta Corte exercite julgamento racional determinando as fronteiras entre a liberdade individual e as demandas da sociedade organizada”[29]
O fundamento utilizado no Direito norteamericano, relativo à existência de um interesse estatal coercivo que justifique a intromissão do Estado na vida privada dos indivíduos, no Direito brasileiro, resume-se à existência ou não de um outro direito fundamental, que a norma supostamente violadora do direito à privacidade vise a proteger. Assim, uma vez consignada a existência desse outro direito fundamental que poderia justificar uma intromissão na vida privada dos cidadãos, proceder-se-á à já conhecida ponderação de princípios, somente realizável mediante o caso concreto.[30]
Nesse ponto, importantíssima a lição de RONALD DWORKIN, segundo o qual os princípios, diferentemente das regras, não são aplicáveis de uma maneira “tudo-ou-nada”, devendo o hermeneuta, quando dois deles colidirem em um caso concreto, sopesar o peso relativo de cada um na situação fática sob análise.[31]
Sendo assim, fosse a julgamento, no Brasil, um recurso extraordinário em que se questionasse a validade, perante a Constituição, do Decreto-Lei que elenca a vadiagem como contravenção, deveriam os ministros do Supremo Tribunal Federal proceder à ponderação entre o direito à privacidade, supostamente violado por tal lei, e possíveis outros direitos que o Estado poderia alegar que a norma protegesse, como, por exemplo, a segurança dos demais indivíduos (CF/88, art. 5º, caput) ou o valor social do trabalho (CF/88, art. 1º, inc. IV).
Tal sopesamento de princípios, que conduziria à conclusão de precedência condicionada, no caso concreto, de um princípio sobre o outro, poderia ser efetivado seguindo-se a fórmula proposta por ROBERT ALEXY, referente à máxima da proporcionalidade, seguida de suas três máximas parciais: da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.[32] Sendo assim, partindo-se da relação entre princípios, meios e fins, analisar-se-ia a constitucionalidade da lei que proíbe a vadiagem, no caso concreto.