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A proteção jurídica da pessoa com deficiência

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3 – DIREITO AO TRABALHO

Foi a partir dos anos 70 que a legislação de vários países começou a tutelar o direito ao trabalho das pessoas com deficiência. Essas leis, por vezes, estabeleciam a equiparação entre os salários, mas, quase sempre, a intenção do legislador era, de fato, instituir a obrigatoriedade do acesso à vaga de trabalho.

A OIT, desde meados dos anos 50, tem atuado a favor do tema, preocupando-se com a grave questão do trabalho das pessoas com deficiências. Já aprovou uma Convenção (nº 159, de 1983) e três Recomendações (nº 99, de 1955; nº 168, de 1983; e nº 169, de 1984), que tratam do assunto.

A Carta Magna, protegendo os interesses da pessoa com deficiência, estabeleceu, em seu art. 7º, XXXI, a “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.   

Para uma melhor discussão acerca dos direitos relacionados às vagas, aos cargos e ao ambiente de trabalho, faz-se necessária a compreensão de alguns conceitos estabelecidos no Decreto Federal nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamentou a Lei Federal nº 7.853, de 24 de outubro de 1989 (que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e dá outras providências), quais sejam:

“Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I – deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II – deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III – incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.”

Já a Convenção sobre os direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), entendendo que esse conceito ainda está em evolução, estabeleceu, em seu art 1º, a seguinte definição de deficiência: “Art. 1º. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.”

Assim, visualiza-se claramente a intenção de responsabilizar a sociedade pela descontrução dos possíveis obstáculos que impeçam a livre e constante participação de todos.

Outro conceito imprescindível, quando da análise das relações de trabalho e seus efeitos, está no art 2º da CDPD, é o que se observa:

“Art. 2º. "Comunicação" abrange as línguas, a visualização de textos, o braile, a comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos de multimídia acessível, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizada e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, inclusive a tecnologia da informação e comunicação;

“Língua” abrange as línguas faladas e de sinais e outras formas de comunicação não-falada; 

"Discriminação por motivo de deficiência" significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural, civil ou qualquer outra. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;

"Ajustamento razoável" significa a modificação necessária e adequada e os ajustes que não acarretem um ônus desproporcional ou indevido, quando necessários em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam desfrutar ou exercitar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais;

“Desenho universal” significa o projeto de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem que seja necessário um projeto especializado ou ajustamento. O “desenho universal” não deverá excluir as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias.”

Estes dispositivos acima transcritos demonstram a preocupação em concretizar os mandamentos referentes aos princípios da dignidade humana e da igualdade, concedendo-se iguais oportunidades de trabalho e emprego e observando-se as habilidades, a potencialidade e as limitações de todos os indivíduos, inclusive daqueles que apresentam alguma deficiência. Nesse sentido, o art. 461 da CLT dispõe:

“Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.

§ 1º Trabalho de igual valor, para os ?ns deste capítulo, será o que for feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço não for superior a dois anos.

§ 2º Os dispositivos deste artigo não prevalecerão quando o empregador tiver pessoal organizado em quadro de carreira, hipótese em que as promoções deverão obedecer aos critérios de antigüidade e merecimento.

§ 3º No caso do parágrafo anterior, as promoções deverão ser feitas alternadamente por merecimento e por antigüidade, dentro de cada categoria pro?ssional.

§ 4º O trabalhador readaptado em nova função por motivo de de?ciência física ou mental atestada pelo órgão competente da Previdência Social não servirá de paradigma para ?ns de equiparação salarial.”

É lógico pensar que para cada vaga disponível, existe uma infinidade de pessoas que, de acordo com suas possibilidades, podem se encaixar e desempenhar um bom papel. Igualmente, existem pessoas que, por motivos diversos, não estão capacitadas para aquele exercício de profissão ou por não terem a instrução necessária ou por já haver alguém mais preparado. Apesar disto, a avaliação que deve ser feita, deve estar relacionada às exigências da função e à potencialidade do indivíduo avaliado, oferecendo-se iguais chances para todos, sem distinção por qualquer motivo, inclusive deficiência. As diferenças devem ser respeitadas e os “excessos” combatidos, daí a ilegalidade em impedir a investidura em um determinado cargo por razão de deficiência. A respeito deste assunto, o art. 35 do Decreto 3.298/99 assim dispõe:

“Art. 35. São modalidades de inserção laboral da pessoa portadora de deficiência:

I – colocação competitiva: processe de contratação regular, nos termos da legislação trabalhista e previdenciária, que independe de adoção de procedimentos especiais para a sua concretização, não sendo excluída a possibilidade de utilização de apoios especiais;

II – colocação seletiva: processo de contratação regular, nos termos da legislação trabalhista e previdenciária, que depende de adoção de procedimentos e apoios especiais para a sua concretização; e

III – promoção do trabalho por conta própria: processo de fomento da ação de uma ou mais pessoas, mediante trabalho autônomo, cooperativado ou em regime de economia familiar, com vista à emancipação econômica e pessoal.”

Importa ressaltar que a proteção não é somente dispensada àqueles que ainda estão em busca de um emprego, também deve estar voltada aos que, em razão do exercício da função, passaram a apresentar alguma deficiência. Assim, defende-se que além do direito ao processo de habilitação, há, igualmente, ao processo de reabilitação. Os arts. 31 e 32 do Decreto 3.298/99 são esclarecedores sobre o tema.

“Art. 31.  Entende-se por habilitação e reabilitação profissional o processo orientado a possibilitar que a pessoa portadora de deficiência, a partir da identificação de suas potencialidades laborativas, adquira o nível suficiente de desenvolvimento profissional para ingresso e reingresso no mercado de trabalho e participar da vida comunitária.

 Art. 32.  Os serviços de habilitação e reabilitação profissional deverão estar dotados dos recursos necessários para atender toda pessoa portadora de deficiência, independentemente da origem de sua deficiência, desde que possa ser preparada para trabalho que lhe seja adequado e tenha perspectivas de obter, conservar e nele progredir.”

 O que se busca com a edição de normas que viabilizem a participação de pessoas deficientes em instituições privadas ou públicas é a garantia de que iguais oportunidades serão concedidas a todos, sem discriminação. Busca-se salvaguardar o acesso e a permanência em um trabalho escolhido, aberto e inclusivo.

“A legislação brasileira, particularmente em relação ao trabalho e emprego, está em harmonia com o texto da CDPD, pois já adota o modelo de ação afirmativa de reserva de cargos. O sistema atual é o da reserva de cargos no âmbito das relações pública (art. 37, VIII, da Constituição da República; Lei 8.112/90, art. 5º, § 2º) e privada de emprego e trabalho (Lei 8.213/91, art. 93). No entanto, as normas infraconstitucionais que regem referido sistema estão a merecer ajustes, de modo a se harmonizarem perfeitamente à Convenção.” (GUGEL, MARIA APARECIDA, 2012, pág. 417)

Em relação à reserva de cargos no setor privado, o art. 93 da Lei nº 8.213/90 assim dispôs sobre o tema:

“Art 93. Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I - até 200 empregados..................................................................................2%;

II - de 201 a 500.............................................................................................3%;

III - de 501 a 1.000.........................................................................................4%;

IV - de 1.001 em diante. ...............................................................................5%.”

Já em relação ao setor público, o art. 37, VIII, da Constituição de 88 dispõe que “A lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. Assim, como ação afirmativa, o legislador estabeleceu a obrigatoriedade de estipulação de uma quantidade mínima de vagas a serem reservadas às pessoas com deficiência.

A Lei nº 8.112/90, no art. 5º, § 2º, estabeleceu que:

“Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que sejam portadoras: para tais pessoas serão reservadas até 20 por cento das vagas oferecidas no concurso.”

Nota-se, neste caso, que, obedecendo aos mandamentos da Magna Carla, o legislador infraconstitucional estipulou duas ações a serem perseguidas: o direito à inscrição em concursos e a reserva de vagas, impedindo, assim, a discriminação em qualquer de suas formas.

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Importante ressaltar que a chance de participação do candidato com deficiência no concurso deve possibilitar um real acesso, ou seja, deve estar adequada às suas possibilidades, adaptando-se toda a estrutura e aplicando-se provas acessíveis de acordo com a natureza da deficiência e necessidade do trabalho.

Portanto, como desdobramento do princípio da isonomia, estabeleceu-se que aquelas pessoas marginalizadas ao longo da história deveriam ter a chance de participar, em igualdade de oportunidades, de seleções para cargos e empregos públicos, reconhecendo-se, portanto, sua capacidade para o desempenho de variadas funções no serviço público.

Desta forma, este mandamento foi direcionado não apenas às instituições que, porventura, disponham de vagas e que realizem processo de seleção, mas, também, ao próprio legislador infraconstitucional, para que, respeitando o princípio da igualdade, estabelecesse distinções que protejam e favoreçam os direitos da pessoa com deficiência.

Como uma medida afirmativa que é, a garantia de acesso e permanência no trabalho resguarda não só aquelas pessoas que apresentam alguma deficiência antes mesmo de buscar o mercado de trabalho, mas, também, aquelas que a adquiriram no próprio emprego.

De acordo com a CDPD, em seu art. 27, a vedação à discriminação se dá em várias etapas desse processo, quais sejam:

“[...]condições de recrutamento, contratação e admissão, permanência no emprego, ascensão profissional e condições seguras e salubres de trabalho, condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo iguais oportunidades e igual remuneração por trabalho de igual valor, condições seguras e salubres de trabalho, além de reparação de injustiças e contra o assédio no trabalho.”

À definição de “ajustamento razoável” conceituado anteriormente, relaciona-se a ideia de acessibilidade defendida, também, nas linhas anteriores deste trabalho. Assim, entende-se que é obrigação do empregador promover alterações no ambiente de trabalho, tendo em vista a melhor eficiência e bem estar do empregado com deficiência.

Seguindo este raciocínio, chega-se à conclusão de que há uma inversão de obrigações, ou seja, o empregado, achando que está em desvantagem e que, por bondade do empregador, tem a chance de trabalhar e se “sustentar”, enfrenta, sozinho, todas as consequências e transtornos advindas daquela situação. O ciclo se prolonga e poucas pessoas deficientes continuam tendo acesso ao mercado de trabalho e um meio ambiente laboral adequado a sua presença. O papel do Estado, neste caso, é promover mais e mais ações afirmativas no sentido de conscientizar e estabelecer sanções para aqueles empregadores que não observarem as regras de estruturação do ambiente de trabalho para a recepção daquelas pessoas.

No que tange à competência para fixação de normas que versem sobre os direitos das pessoas deficientes, o art. 24, XIV e §2º da CRFB/88 estabelece que é concorrente, ou seja, à União foi dada a função de legislar sobre normas gerais e aos Estados-membros e ao Distrito Federal especificar e detalhar sobre o tema.

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Sobre as autoras
Rebeca Napoleão de Araújo Lima

Advogada em Juazeiro do Norte (CE).

Marina Torres

Advogada. Mestranda em Serviço Social, na linha de Gênero, Diversidade e Relações de Poder. Especialista em Direito Administrativo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Rebeca Napoleão Araújo ; TORRES, Marina. A proteção jurídica da pessoa com deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3656, 5 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24884. Acesso em: 19 abr. 2024.

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