4. VENDA DE BENS APENHADOS E HIPOTECADOS CEDULARMENTE
O art. 59 do Decreto-Lei nº 167/67 reza:
“Art 59. A venda dos bens apenhados ou hipotecados pela cédula de crédito rural depende de prévia anuência do credor, por escrito”.
A lei trouxe um requisito para a concretização da transferência de bens apenhados ou hipotecados cedularmente. A anuência do credor é essencial para que o negócio jurídico goze de todos os efeitos naturais da avença.
Ocorre que a regra acima dispõe sobre a venda dos bens. Interessa saber aqui a extensão desta previsão.
Entende-se que a anuência deve ser dada no ato de transferência inter partes, ou seja, na própria escritura pública ou no instrumento particular. E a anuência deve ser expressa, por escrito. Não basta a inércia do credor para provar a sua concordância.
A jurisprudência administrativa do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:
“APELAÇÃO CÍVEL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL GRAVADO COM HIPOTECA CEDULAR (CÉDULA DE CRÉDITO INDUSTRIAL). NECESSIDADE DE ANUÊNCIA DO CREDOR HIPOTECÁRIO. EXEGESE DO ART. 51 DO DECRETO-LEI N. 413/69. DECISUM MANTIDO. APELO DESPROVIDO. Estando o imóvel objeto da escritura pública de compra e venda gravado com hipoteca cedular (cédula de crédito industrial), faz-se necessária a aquiescência prévia e por escrito do credor para a sua alienação, a teor do disposto no art. 51 do Decreto-Lei n. 413/69”. (Apelação Cível nº 2011.045917-3, TJSC, Relator Des. João Henrique Blasi, publicado no DJ 16/11/2012).
O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. REGISTRO DE IMÓVEIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. BEM GRAVADO COM HIPOTECA CEDULAR. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL. NECESSIDADE DE PRÉVIA ANUÊNCIA DO CREDOR. DL 167/67, ART. 59. LEI ESPECIAL. PREVALÊNCIA.
1. É necessária a prévia anuência do credor hipotecário, por escrito, para a venda de bens gravados por hipoteca cedular, nos termos do art. 59 do DL 167/67.
2. A regra geral do Código Civil não prevalece sobre a norma especial do art. 59 do DL 167/67, que disciplina o financiamento concedido para o implemento de atividade rural.
3. Recurso especial desprovido.
(REsp 908.752/MG, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 16/10/2012, DJe 26/10/2012)
Existem dois momentos na transferência de bens imóveis: o do consentimento, que é externado perante o Tabelião de Notas, na hipótese do art. 108 do Código Civil; e do registro, que é feito perante o Oficial do Registro de Imóveis. Conforme reza o art. 1.227 do Código Civil, os direitos reais sobre bens imóveis só se adquirem com o registro perante o Cartório de Registro de Imóveis. O consentimento deve ser levantado no primeiro momento.
A pena para o descumprimento da prévia anuência do credor é a ineficácia. Tal afirmação pode parecer confrontar com a previsão do inciso IV do art. 166 do Código Civil, o qual determina a nulidade dos atos que não revistam a forma prescrita em lei. No caso, falta a anuência do credor. Poderíamos afirmar, ainda, que o inciso VI do mencionado artigo é mais enfático ao prever a nulidade da venda sem anuência do credor, posto que o art. 59 do Decreto nº 167/67 proibiu a prática mas não cominou sanção.
No entanto, a simples ausência da anuência do credor não pode ter o condão de afastar a validade do negócio jurídico. A sanção seria irremediável. A nulidade não pode se restabelecer.
A sanção mais adequada é a ineficácia. A nulidade acarretaria a invalidade de todas as disposições do negócio jurídico, o que não parece prudente. O adquirente está ciente da existência da hipoteca, ou do penhor, visto a publicidade conferia via certidão. Não pode ele alegar desconhecimento, sob pena de, possivelmente, estar agindo de má-fé.
As outras disposições do negócio, como preço, prazos, condições, etc., merecem ser respeitadas. O credor hipotecário não será prejudicado com a alteração na titularidade do imóvel. O vencimento antecipado da dívida é um dos benefícios do credor, que pode utilizá-lo ou não, a seu critério. O que mais interessa ao credor é o adimplemento da obrigação. E o adquirente não poderá se eximir disso. Na praxe, corriqueiramente o que se vê é que o adquirente, normalmente, goza de melhores condições financeiras para honrar o compromisso.
Ainda, o credor hipotecário pode concordar com a venda, ratificando-a em todos os seus termos. Qualquer disposição que lhe prejudique, de outro modo, será considerada ineficaz, por descumprimento da previsão do art. 59.
Na hipótese de se considerar nulo o negócio jurídico, o credor não gozaria do benefício de ratificar o negócio, mesmo se lhe fosse favorável.
O que acontece é a demora das instituições financeiras em conferir a anuência à transação. Na interpretação pela nulidade, as partes não poderiam celebrar o negócio, mesmo que em benefício do credor. Há situações em que o negócio é celebrado justamente no intuito de evitar o inadimplemento por parte do devedor originário.
Ademais, nenhum prejuízo sofrerá o credor com a ineficácia. Todos os poderes inerentes à hipoteca ou ao penhor serão conservados.
A despeito disso, mostra-se recomendável, quando da lavratura do instrumento público de alienação, o estabelecimento de condição, de que o negócio somente terá acesso ao fólio real com a anuência do credor. Trata-se, assim, de uma condição suspensiva. O registro, com a aquisição dos direitos reais, somente ocorrerá com a anuência do credor, mesmo que em documento separado. O intuito é o de garantir o perfazimento do negócio jurídico, e o de cumprir o art. 59 do Decreto nº 167/67.
A finalidade dos serviços de notas é o de conferir segurança, eficácia, publicidade e autenticidade aos atos jurídicos. Esses princípios não podem ser utilizados como escusa para a negativa desarrazoada do exercício da atividade notarial e de registro. Por certo, temos que não é possível a confecção de atos nulos. Já a ineficácia reside também no núcleo da autonomia privada, com as suas consequências. Evitar prejuízos a terceiros constitui um dos pilares da atuação preventiva do Notário. No caso, a venda de bens hipotecados não será eficaz em relação ao credor.
Desta feita, chegamos ao tema principal deste trabalho, que passo a expor.
5. IMPENHORABILIDADE E AS CÉDULAS RURAIS
As Cédulas Rurais são títulos de crédito instituídos com o fito de estimular a produção rural, como já foi dito. As condições financeiras do negócio normalmente são mais atrativas para o ruralista. As instituições financeiras concedem crédito aos produtores com respaldo na emissão das Cédulas rurais, por diversos motivos, dentre eles, a proibição de venda de imóveis hipotecados sem a anuência do credor (art. 59 do Decreto nº 167/67), título de crédito circulável e negociável, título executivo extrajudicial, e a impossibilidade de penhora dos bens ofertados em garantia.
É o estatui o art. 69 do Decreto nº 167/67:
“Art 69. Os bens objeto de penhor ou de hipoteca constituídos pela cédula de crédito rural não serão penhorados, arrestados ou seqüestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro empenhador ou hipotecante, cumprindo ao emitente ou ao terceiro empenhador ou hipotecante denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão”.
A vedação é expressa no sentido de proibir a penhora, arresto e sequestro dos bens sujeitos à penhor ou hipoteca cedular. É uma previsão legal de impenhorabilidade do imóvel dado em garantia em Cédula Rural. Existem outras impenhorabilidades: a do imóvel residencial destinado à única habitação familiar, do imóvel doado com cláusula de impenhorabilidade, os bens descritos no art. 649 e art. 650 do Código de Processo Civil, da poupança (limitada a quarenta salários-mínimos), dentre outras.
A impenhorabilidade é uma garantia do titular do imóvel. O imóvel não poderá mais ser objeto de penhora. Significa dizer que as dívidas assumidas pelo proprietário não poderão recair, em qualquer momento, em regra, sobre o imóvel ofertado em garantia.
Não é possível confundir a impenhorabilidade com a inalienabilidade. A inalienabilidade é a impossibilidade de alienar, voluntariamente, um bem. Os imóveis dados em garantia cedular podem ser alienados, mas dependem da anuência do credor hipotecário. Não se fala em inalienabilidade, portanto. Existe o requisito da anuência. Como dito acima, entendemos que não é caso de nulidade, mas sim de ineficácia frente ao credor.
A impenhorabilidade, de outro lado, não diz respeito ao poder de dispor. Afeta o poder geral conferido aos magistrados. É uma limitação legal às medidas judiciais postas à disposição do magistrado e aos credores do proprietário, ou do emitente.
A discussão que existe é a seguinte: a vedação de penhora recai sobre todas as espécies de dívidas? a impenhorabilidade é absoluta? Passaremos à elucidação das questões.
Inicialmente, temos que considerar que o Decreto nº 167 foi editado em 1967. A restrição imposta à penhorabilidade do imóvel foi estabelecida como garantia ao desenvolvimento da política agrícola. Obviamente, o Decreto continua em vigência. A questão é a de reconhecer que a realidade era outra. Mas isso não é suficiente para afastar a irrestrita impenhorabilidade do imóvel dado em garantia em Cédula Rural.
Entendo que a impenhorabilidade cedular não é irrestrita. Cede em algumas situações, em virtude de disposições legais e da interpretação do art. 69 do Decreto nº 167/67. Esse é o entendimento consolidado na jurisprudência e na doutrina.
A meu ver, a impenhorabilidade cedular deve ser, em regra, respeitada, de modo a favorecer o sistema de estímulos ao setor bancário, que concede créditos com juros mais favoráveis ao ruralista. O credor cedular deve ser privilegiado frente a outros credores.
O sistema de benefícios financeiros ao meio rural é instituído com o intuito de estabelecer forma de desenvolver sem prejudicar ou onerar demais o ruralista. O prazo de carência, a forma de pagamento, a taxa de juros, e outras situações que favorecem o ruralista.
Ocorre que a impenhorabilidade cedular não prevalece a duas especificas categorias de credores: trabalhistas e falimentares. Parte da jurisprudência entende ainda haver a queda da impenhorabilidade frente aos créditos tributários.
Vejamos o julgamento de Apelação Cível por parte do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:
EMBARGOS DE TERCEIRO. EXECUÇÃO FISCAL ESTADUAL. PENHORA. CÉDULA DE CRÉDITO INDUSTRIAL. PREVALÊNCIA DO CRÉDITO FISCAL. PRECEDENTES DO STJ. ARREMATAÇÃO DO MESMO BEM EM OUTRO PROCESSO, OBJETO DE RECURSO JUNTO AO EXTINTO E. TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS. AUSÊNCIA DE CARTA DE ARREMATAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.
1. O crédito tributário prevalece sobre a impenhorabilidade estabelecida no Decreto-Lei nº 413/69. Precedentes do STJ.413
2. Embora alegue haver arrematado o imóvel objeto da controvérsia nos autos de outro processo, não foi expedida a competente carta de arrematação, em face de recurso interposto e recebido em ambos os efeitos, enviado ao extinto E. Tribunal Federal de Recursos, não se revelando, assim, até o momento, a legítima posse ou propriedade da embargante, a afastar a penhora realizada no executivo fiscal.
3. Recurso improvido.(70888 SP 94.03.070888-3, Relator: JUIZ CONVOCADO JAIRO PINTO, Data de Julgamento: 10/02/2010, TURMA SUPLEMENTAR DA PRIMEIRA SEÇÃO)
O que a jurisprudência entende em relação ao crédito trabalhista é que a impenhorabilidade cedular não é absoluta. O rol previsto no art. 649 no Código de Processo Civil não elenca o crédito cedular como absolutamente impenhorável. Desta feita, existem outros créditos com privilégios maiores.
A regra da impenhorabilidade deve distinguir, portanto, os bens absolutamente impenhoráveis e os relativamente impenhoráveis. O mencionado art. 649 do CPC expõe a solução. No caso, a impenhorabilidade cedular não consta do mencionado rol.
O art. 449, § 1º da Consolidação das Leis do Trabalho impõe o privilégio crédito trabalhista em situação de falência:
“Art. 449 - Os direitos oriundos da existência do contrato de trabalho subsistirão em caso de falência, concordata ou dissolução da empresa.
§ 1º - Na falência constituirão créditos privilegiados a totalidade dos salários devidos ao empregado e a totalidade das indenizações a que tiver direito”. (Redação dada pela Lei nº 6.449, de 14.10.1977)
A solução do problema reside em considerar o fator da falência ou da insolvência do devedor. Nessas hipóteses, o crédito trabalhista não segue apenas essa regra, mas também a contida no art. 83 da Lei nº 11.101/2005, que reza o seguinte:
“Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:
I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho;
II - créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado;
III – créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias;
IV – créditos com privilégio especial, a saber:
a) os previstos no art. 964 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;
b) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;
c) aqueles a cujos titulares a lei confira o direito de retenção sobre a coisa dada em garantia;
V – créditos com privilégio geral, a saber:
a) os previstos no art. 965 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;
b) os previstos no parágrafo único do art. 67 desta Lei;
c) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;
VI – créditos quirografários, a saber:
a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;
b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento;
c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;
VII – as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, inclusive as multas tributárias;
VIII – créditos subordinados, a saber:
a) os assim previstos em lei ou em contrato;
b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício.
§ 1o Para os fins do inciso II do caput deste artigo, será considerado como valor do bem objeto de garantia real a importância efetivamente arrecadada com sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado.
§ 2o Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade.
§ 3o As cláusulas penais dos contratos unilaterais não serão atendidas se as obrigações neles estipuladas se vencerem em virtude da falência.
§ 4o Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários”.
A ordem dos créditos na falência obedece está ordem. O crédito trabalhista, com a limitação contida no inciso I (150 salários-mínimos), possui privilégio concursal.
Entendo, assim, que o privilégio do crédito trabalhista não existe na hipótese de solvência do devedor. Isso porque não há regra que estabelece prioridade ou privilégio ao crédito trabalhista nesta circunstância. Além disso, presume-se que com a solvabilidade do devedor, todos os credores serão honrados e os débitos satisfeitos. Não há porque impor que o bem hipotecado ou empenhadocedularmente responda, de pronto, pela dívida trabalhista. Deve-se buscar o patrimônio do devedor, e caso não existam outros bens ou créditos penhoráveis, aí sim pode haver a penhora do bem hipotecado ou empenhado cedularmente.
Evidentemente que temos duas posições neste trabalho: a defendida por parte da jurisprudência, pela derrubada da impenhorabilidade cedular, em certas situações; e a tese da irrestrita impenhorabilidade cedular.
Entendo que a impenhorabilidade cedular não pode ser afastada em nenhuma hipótese, desde que presentes dois requisitos: a) solvência do devedor; b) inexistência de vícios na constituição do gravame cedular. Digo isso porque a impenhorabilidade cedular deve ser afastada quando constituída apenas com o intuído de prejudica terceiros, seja sob o manto da simulação, seja sob qualquer outra circunstância nesse sentido.
É esse o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, fixado no julgamento do Recurso Especial nº 122.316/MG, com decisão publicada no Diário do dia 16 de agosto de 2001, de Relatoria do Min Cesar Asfor Rocha, conforme segue:
"Decisão. Execução. Impossibilidade da penhora sobre bens gravados com hipoteca cedular. Art. 69 do DL n° 167/67. Precedentes. Recurso especial a que se nega seguimento.
1. O Eg. Tribunal de origem decidiu pela procedência dos embargos à execução, entendendo serem impenhoráveis os imóveis rurais hipotecados através de cédula de crédito rural, por aresto, na parte que aqui interessa, assim ementado:
Execução. Bens gravados com cédula rural hipotecária. Impenhorabilidade. Nulidade da penhora. Extinção dos embargos. Sucumbência.
Bens gravados com cédula rural hipotecária são impenhoráveis por disposição expressa de lei, independentemente da data da constituição da obrigação.
Daí o recurso especial, fundamentado na alínea 'a' do permissivo constitucional, alegando que a impenhorabilidade prescrita no art. 69 do DL n° 167/67 não é absoluta, sendo viável a penhora sobre bens sujeitos à hipoteca cedular.
Sem contra-razões, o recurso foi admitido na origem.
2. O entendimento consolidado nesta Corte é o de que 'são impenhoráveis os bens dados em garantia hipotecária de cédula de crédito rural e industrial' (por decisão monocrática, o REsp 309.881/GO, Rel. Min. Ari Pargendler, no DJ de 04/05/01). E no mesmo sentido os seguintes precedentes: REsp n° 170.582/G0 - 20/11/00 - Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior; REsp n° 35.643/MG - DJ 10/11/97 - Rel. Min. Barros Monteiro; REsp n° 116.743/MG - DJ 01/12/97 - Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito; REsp n° 120.007/MG - DJ 17/11/97 - Rel. Min. Costa Leite, os dois últimos assim ementados:
'Penhora. Del 167/1967, art. 69. Precedentes da Corte e do STF.
1. Na linha dos precedentes desta Corte e do STF, não são penhoráveis os bens já onerados com penhor ou hipoteca constituídos por cédula rural.
2. Recurso especial não conhecido”.
No entanto, a jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça é no sentido contrário, admitindo a penhora dos bens dados em hipoteca cedular. Vejamos:
“TÍTULOS DE CRÉDITO. CÉDULA DE CRÉDITO RURAL HIPOTECÁRIA. PENHORA DO BEM DADO EM GARANTIA. ART. 69 DO DECRETO-LEI N. 167/67.IMPENHORABILIDADE RELATIVA. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.
1. A jurisprudência desta Corte Superior tem assegurado que a impenhorabilidade prevista no art. 69 do Decreto-lei n. 167/67, não é absoluta, porquanto cede a eventuais circunstâncias, tais quais: a) em face de execução fiscal, em razão da preferência dos créditos tributários; b) após a vigência do contrato de financiamento; e c) quando houver anuência do credor.
2. O Pretório Excelso, analisando a questão, já se posicionou no sentido de relativizar a aplicabilidade do art. 69 do Decreto-lei n.167/67, porquanto o instituto não pode exceder as suas finalidades.
3. Inexistência de risco ao crédito cedular garantido por hipoteca.Despicienda a proteção inserta no art. 69 do Decreto-lei n. 167/67, pois a impenhorabilidade visa a garantir recursos suficientes para a satisfação do crédito agrícola, situação que, pelo contexto dos autos, não requer tal providência, uma vez que o crédito objeto da penhora, tão-somente, irá ser satisfeito, se sobejarem recursos quando do adimplemento do valor dado em garantia.
4. Recurso a que se nega provimento.
(REsp 220.179/MG, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 06/04/2010, DJe 14/04/2010)”
O Decreto nº 167/67 estabeleceu a impenhorabilidade cedular justamente para que sejam impenhoráveis. A diferenciação entre absolutamente e relativamente impenhoráveis estabelecida na Lei processual deve respeitar o previsto na legislação especial. É o que fez o art. 648 da lei instrumental:
“Art. 648. Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”.
O art. 69 do Decreto nº 167/67 não é lacônico. Taxativamente, os bens dados em garantia cedular são impenhoráveis. Assim, não podem estar sujeitos à penhora. Exceção feita se insolvente o devedor. Nesta situação, a regra que prevalece é a da Lei nº 11.101/2005, e desde que presentes os requisitos para a concorrência falimentar.
A jurisprudência administrativa do Tribunal de Justiça paulista é a mesma. No julgamento do processo nº 2008/66450, da Corregedoria Geral da Justiça, foi decidido o seguinte:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Penhora – Impossibilidade de averbação – Existência de hipoteca cedular já registrada – Cédula de crédito rural – Precedentes do Conselho Superior da Magistratura – Inteligência do art. 69 do Dec.-lei nº 167/67.”
O Código Tributário Nacional prevê a prioridade do crédito tributário, no art. 184. Vejamos:
“Art. 184. Sem prejuízo dos privilégios especiais sobre determinados bens, que sejam previstos em lei, responde pelo pagamento do crédito tributário a totalidade dos bens e das rendas, de qualquer origem ou natureza, do sujeito passivo, seu espólio ou sua massa falida, inclusive os gravados por ônus real ou cláusula de inalienabilidade ou impenhorabilidade, seja qual for a data da constituição do ônus ou da cláusula, excetuados unicamente os bens e rendas que a lei declare absolutamente impenhoráveis”.
Em verdade, o crédito tributário goza de privilégios concursais. No entendo, essa prioridade não pode ser oposta ao credor cedular. O próprio art. 184 é claro ao excetuar os privilégios especiais previstos em lei.
Aqueles que não aceitam tal argumento como suficiente para afastar a prioridade do crédito tributário frente ao crédito cedular, podemos afirmar que tal previsão do CTN não pode ser levantada para afastar a prioridade cedular. Isso porque o CTN foi sancionado em 25 de outubro de 1966. Antes, portanto, do Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967.
O nosso entendimento é o mesmo defendido por Rubia Carneiro Neves. Segue a lição da doutrinadora:
“Deve-se, portanto, respeitar a impenhorabilidade do bem cedular em detrimento de qualquer outro. O credor cedular é o beneficiário da garantia real instituída na cédula de crédito, bem como da cláusula de impenhorabilidade criada por lei, o que representa para ele o direito de se pagar prioritariamente com o produto da venda judicial do bem objeto da garantia. Os demais credores do devedor, emitente da cédula, devem concorrer ao eventual excesso da venda.
Não se trata de discriminação dos demais credores, já que o credor cedualr está respaldado pela existência da garantia real que reveste o crédito privilegiado.
A impenhorabilidade é a qualidade daquilo que não pode ser penhorado, e pode resultar da lei ou da vontade. Caso resulte da vontade, obviamente, deve-se estendê-la como inoperante em relação ao crédito tributário; se decorre da lei, há que ser respeitada. E a impenhorabilidade do bem cedular decorre da lei, que fala amplamente de outras dívidas, quaisquer que sejam, inclusive as dívidas trabalhista e fiscal.
O que se pretende com a prevalência do crédito tributário é justamente evitara cláusula de impenhorabilidade voluntária; ou seja, que simples atos de vontade retirem seus bens do alcance do credor tributário. Mas não se pode negar a impenhorabilidade instituída por lei, que esteve formalmente capacitada para criá-la, e o fez em relação a qualquer bem”.
(NEVES, Rubia Carneiro. Cédula de crédito: doutrina e jurisprudência. – Belo Horizonte : Del Rey, 2002, página 84 e 85).
Nesse sentido, entendo ser a impenhorabilidade cedular uma regra que deve ser respeitada sob qualquer condição, desde que presentes os requisitos de que o devedor não esteja sob processo falimentar e de que o crédito cedular tenha origem sem vícios.