I - Introdução
A legislação federal impõe o preenchimento de diversos requisitos para a investidura em função pública, como por exemplo, a idade mínima, o gozo de direitos políticos e a aptidão física e mental (art. 5º, da Lei nº. 8.112/90). Da mesma forma, também a lei determina a existência de causas que conduzem à demissão da função pública, conforme previsto no art. 132 da Lei nº. 8.112/90. Para algumas hipóteses de demissão, o legislador determinou, ainda, a proibição de retorno ao serviço público, conforme dispõe o art. 137, parágrafo único, da Lei nº. 8.112/90:
Art. 137. A demissão ou a destituição de cargo em comissão, por infringência do art. 117, incisos IX e XI, incompatibiliza o ex-servidor para nova investidura em cargo público federal, pelo prazo de 5 (cinco) anos.
Parágrafo único. Não poderá retornar ao serviço público federal o servidor que for demitido ou destituído do cargo em comissão por infringência do art. 132, incisos I, IV, VIII, X e XI.
Percebe-se, pois, que o legislador definiu que o agente afastado de suas funções carece de um essencial requisito moral para eventual reassunção, por meio de nova investidura, da função pública.
II – A aptidão moral como requisito para investidura no cargo público
Prestigiando a literalidade do preceito e realçando a aptidão moral do agente para reassumir a função pública, sustenta Marlon Alberto Weichert[1] que: i) o art. 137, parágrafo único da Lei nº. 8.112/90, preenchendo o espaço de conformação deixado pelo art. 37, inciso I, da Constituição da República de 1988 (cabe à lei fixar requisitos para o acesso a cargos, empregos e funções públicas), fixa apenas mais um requisito para investidura na função pública; ii) é possível a perda de um direito fundamental (v.g.: brasileiro que opta por nacionalidade estrangeira perde a brasileira – art. 12, § 4º, da CR/88 -; e a recusa no cumprimento de obrigação alternativa pode ensejar a perda de direitos políticos – art. 5º, inciso VIII, c/c art. 15, inciso IV, da CR/88); iii) não se aplica ao caso a vedação constitucional de imposição de penas perpétuas, pois não se trata de pena, mas de mera “causa específica de inaptidão”.
Vale dizer, o que ocorre é a fixação – em lei – de mais um requisito para a investidura em função pública, ao lado da aptidão física e mental: a aptidão moral. E, desde logo, a legislação definiu que o agente condenado por improbidade não reveste esta qualidade. Não se trata, pois, de presumir a incompatibilidade do indivíduo com a função pública, mas sim de reconhecer que ele praticou um ato concreto de lesão aos interesses que deveria resguardar. Há a perda do direito de acesso a cargos públicos, por decorrência de conduta do próprio agente em oportunidade anterior[2].
Ademais, o legislador constituinte elegeu ao status de princípios constitucionais a moralidade e a probidade administrativa no art. 37 da Constituição da República de 1988, sendo certo que o ato de improbidade administrativa consiste em forma qualificada de ofenda ao princípio da moralidade[3].
Não se olvide da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2975-4/DF proposta pelo então Procurador-Geral da República, ainda não julgada, por meio da qual se requer a declaração de inconstitucionalidade do art. 137, parágrafo único da Lei nº. 8.112/90.
Sem querer discutir a constitucionalidade do art. 137, parágrafo único da Lei nº. 8.112/90, o fato é que o mesmo permanece em plena vigência, produzindo efeitos no âmbito da administração pública federal, razão pela qual sua aplicação não deve ser afastada. Ademais, a administração pública deve obediência ao princípio da estrita legalidade, devendo fazer o que determina a lei.
III – A vedação de retorno do art. 137, parágrafo único da Lei nº. 8.112/90 e permanência do servidor público demitido em outro cargo
Restaria dúvida quanto a redação do art. 137, parágrafo único da Lei nº. 8.112/90, que veda o “retorno” ao serviço público do servidor demitido pela prática de ato de improbidade administrativa, já que há casos em que o servidor “permanece” no serviço público, em razão de vacância em razão de posse em outro cargo inacumulável, apenas vinculado a outra instituição,.
Note-se que constitui requisito para a posse, a declaração de que o candidato não tenha sido demitido a bem do serviço público ou condenado por crime doloso contra a vida. O servidor, que teve o pedido de vacância concedido em razão de posse em outro cargo inacumulável e no curso de processo administrativo disciplinar, não apresentava nenhum impedimento à época, razão pela qual o ato de investidura no novo cargo público não estaria maculado.
Ocorre, entretanto, que a ulterior conversão de vacância em demissão, com fundamento no art. 132, inciso IV, da Lei nº. 8.112/90 constitui causa superveniente que impede a permanência do servidor no serviço público, por lhe faltar o requisito da aptidão moral.
Tal conclusão (de não permanência do servidor) se dá pela leitura conjunta do art. 132, inciso IV c/c art. 137, parágrafo único, ambos da Lei nº. 8.112/90. É que se o servidor não poderá retornar ao serviço público mesmo mediante novo concurso público, não poderá também permanecer no novo cargo.
Fazendo outra interpretação, cumpre destacar que apesar dos efeitos da penalidade de demissão serem ex nunc[4], a conversão da vacância em demissão a bem do serviço público implica em causa impeditiva de investidura no novo cargo o que, por consequência, impede o servidor de permanecer no serviço público, por ausência de aptidão moral.
Assim, a anulação do ato de investidura se faz necessária, pois o servidor interessado deixou de cumprir condição essencial à sua nomeação, qual seja, a idoneidade moral, caso tal requisito esteja elencado na lei de ingresso naquela carreira.
Cumpre trazer à baila os ensinamentos de Antônio Carlos Alencar Carvalho:
Em todo caso, na hipótese de admissão da investidura no segundo cargo, deve ser mantida a possibilidade de posterior julgamento condenatório no Processo administrativo disciplinar originário, ainda pendente de conclusão, resultado que também implica a demissão e perda do primeiro posto público, em cujo exercício foi consumada ilegalidade na conduta funcional, além de permitir a perda do segundo cargo, anulando-se a nomeação, porque não houve o atendimento a um dos pressupostos legais para o provimento: a aprovação na investigação social ou idoneidade moral para o preenchimento do posto, se previstos na lei reguladora do acesso na carreira (art. 5º, § 1º, c.c. art. 10, parágrafo único da Lei nº. 8.112/90, com redação determinada pela Lei nº. 9.527/97) o que permite a revisão do ato administrativo de investidura no prazo de cinco anos, contados de sua prática, salvo em caso de má-fé, como na falsa declaração do servidor de que não respondia a Processo Administrativo Disciplinar ou sindicância, ou se a malícia se manifesta de outra forma, quando não haverá incidência do prazo quinquenal para anulação da nomeação (art. 54, Lei Federal nº. 9.784/99). (CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 457/458).
Observe-se que não se poderia tolerar que a investidura em novo cargo público, na mesma esfera administrativa, servisse como meio de o servidor acusar tornar inócuo o direito da Administração Pública de puni-lo, mediante a exoneração do primeiro posto. Senão bastaria ao corrupto enriquecer-se com a sua desonestidade, causando prejuízos à Administração Pública, e, depois, exonerar-se voluntariamente do cargo para, por absurdo, em seguida obter uma segunda investidura em posto efetivo na mesma estrutura administrativa, quiçá para repetir e prosseguir na escalada de improbidade administrativa, mediante aprovação em novo concurso público, o que se revela inaceitável[5].
Seria um paradoxo que o Estado, o Distrito Federal, o Município ou a União, depois de sofrer lesão patrimonial pelos atos de improbidade cometidos pelo servidor acusado no processo administrativo disciplinar originário, ainda tenha que suportar a permanência do agente público corrupto nos mesmos quadros administrativos, sob o risco de novas irregularidades serem consumadas pelo infrator[6].
Esse também é o entendimento da jurisprudência pátria:
Estando o servidor respondendo a processo administrativo disciplinar não há empeço legal à assunção em novo cargo, decorrente de nomeação em virtude de aprovação em concurso público. Todavia, a superveniente decisão do processo disciplinar, cominando a aplicação da penalidade de demissão do anterior cargo ocupado, não pode deixar de ser considerada, para fins de afirmação do seu direito liquido e certo à posse e exercício no novo cargo, em face do disposto no art. 137 da Lei nº. 8.112/90, que dispõe sobre a incompatibilização do ex-servidor para nova investidura em cargo público federal, pelo prazo de 5 (cinco) anos. (TRF 4ª Região. MS – Processo nº. 2003.04.01033594-01/RS. Rel. Des. Federal Valdemar Capeletti. 4ª Turma. DJU 06.10.2004).
CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO ANTERIORMENTE DEMITIDO DO SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL. NEGATIVA DE NOMEAÇÃO EM OUTRO CARGO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.
O cerne da controvérsia cinge-se à interpretação e aplicação dos princípios da moralidade e da legalidade insculpidos no art. 37, caput, da CF. No caso, o impetrante foi aprovado em concurso público para os cargos de analista fiscal de contas públicas e de analista administrativo do TC estadual, mas teve sua nomeação recusada em virtude de anterior demissão dos quadros da PRF por ato de improbidade administrativa. A Min. Relatora observou que, estando ambos os princípios ladeados entre os regentes da Administração Pública, a discussão ganha relevância na hipótese em que o administrador edita ato em obséquio ao imperativo constitucional da moralidade, mas sem previsão legal específica. A Turma entendeu que, por força do disposto nos arts. 5º, II, 37, caput, e 84, IV, da CF, a legalidade na Administração Pública é estrita, não podendo o gestor atuar senão em virtude de lei, extraindo dela o fundamento jurídico de validade dos seus atos. Assim, incorre em abuso de poder a negativa de nomeação de candidato aprovado em concurso para o exercício de cargo no serviço público estadual em virtude de anterior demissão no âmbito do Poder Público Federal se inexistente qualquer previsão em lei ou no edital de regência do certame. (STJ. RMS 30.518-RR, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/6/2012). Grifei.
Verifica-se, destarte, que caso o servidor tenha a vacância em outro cargo convertida em demissão a bem do serviço público, deve a administração pública anular o ato de investidura no cargo porque não houve o atendimento a um dos pressupostos legais para o seu provimento: a aprovação na investigação social ou idoneidade moral para o preenchimento do cargo, desde que previsto em lei ou no edital de regência do certame, independente da esfera de governo.
IV – Os efeitos financeiros da anulação do ato de investidura do servidor e a vedação ao enriquecimento sem causa.
Cumpre discutir, ainda, os efeitos financeiros da anulação do ato de investidura do servidor. A matéria passa pela teoria das nulidades dos atos administrativos e o poder de autotutela da administração pública. Logo, é o interesse público que rege os atos administrativos, e tais interesses são indisponíveis como regra[7].
O fundamento básico para a anulação do ato administrativo é a falta de conformação com a ordem jurídica, ou seja, não apenas a ilegalidade, mas a ilegitimidade do ato. A violação de dispositivo legal ou de princípio da Administração Pública deve importar em anulação do ato[8].
São circunstâncias que podem resultar em anulação do ato, entre outras, a violação de preceito legal ou de princípio da Administração Pública. Lucas da Rocha Furtado explica que:
É possível que o ato seja praticado com a observância de todos os pressupostos à sua validade (autoridade competente, sem qualquer desvio de finalidade, revestido das formalidades legais, e sem qualquer vício em relação ao motivo ou objeto) e, no entanto, seja nulo. Esta situação pode ocorrer se for verificada violação de princípio da Administração Pública. O ato que observe todas as exigências legais, mas que atente contra a moralidade administrativa ou contra a economicidade não é ato inconveniente, mas sim ato nulo[9].
Ressalte-se que a Lei nº. 9.784/99, em seu art. 54, fixa em cinco anos o prazo para que a administração anule os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, salvo nos casos de má-fé, constituindo um dever de a administração fazê-lo, e não uma mera obrigação.
Importa, ainda, verificar que os princípios da segurança jurídica e da boa-fé interferem no exame da invalidação do ato, permitindo que, não obstante o ato seja anulado, posto que praticado dentro do prazo de cinco anos, determinados efeitos dele decorrentes possam ser preservados.
Dessa forma, no caso em debate, o ato de investidura em outro cargo público do servidor que teve a vacância convertida em demissão pela prática de ato de improbidade administrativa reveste-se de ilegalidade, pois violou o princípio da moralidade administrativa, conforme acima explicitado. Ou, sob outra ótica, deixou de cumprir requisito essencial para a investidura no cargo, é dizer, declaração de que não tenha sido demitido a bem do serviço público.
Não obstante a demonstração inequívoca da ilegalidade da situação jurídico-funcional do servidor na situação narrada é preciso analisar se o mesmo tem ou não direito de perceber a remuneração correspondente ao período em que laborou indevidamente no segundo cargo público.
Nesse sentido, apesar da ilegitimidade do provimento que designou o servidor para o exercício das atribuições do novo cargo, a administração pública deve ressarci-lo pelo dispêndio de força de trabalho que efetuou em favor do serviço público.
Em verdade, não se pode olvidar que o servidor atuou como “agente público de fato”. É o que preleciona Celso Antônio Bandeira de Mello:
De passagem, anote-se que o defeito invalidante da investidura de um agente não acarreta, só por só, a invalidade dos atos que este praticou. É a conhecida teoria do “funcionário de fato” (ou “agente público de fato”). “Funcionário de fato” é aquele cuja investidura foi irregular, mas cuja situação tem a aparência de legalidade. Em nome do princípio da aparência, da boa fé dos administrados, da segurança jurídica e do princípio da presunção de legalidade dos atos administrativos reputam-se válidos os atos por ele praticados, se por outra razão não forem viciados.
Por outro lado, uma vez invalidada a investidura do funcionário de fato, nem por isso ficará ele obrigado a repor aos cofres públicos aquilo que percebeu até então. Isto porque, havendo trabalhado para o Poder Público, se lhe fosse exigida a devolução dos vencimentos auferidos haveria um enriquecimento sem causa do Estado, o qual, dessarte, se locupletaria com trabalho gratuito[10].
Portanto, devem ser mantidos os efeitos financeiros e o tempo de serviço do servidor, bem como ratificados os atos praticados no exercício da nova função com fundamento na teoria do agente público de fato e na vedação de enriquecimento sem causa por parte da administração pública.
V – Conclusão
Por todo o exposto, conclui-se que caso o servidor tenha a vacância em outro cargo convertida em demissão a bem do serviço público, cumpre a administração pública o dever de anular o ato de investidura no novo cargo por falta de aptidão moral, desde que tal exigência esteja prevista em lei ou no edital de regência do certame, independentemente da esfera de governo, o que revela a importância da investigação social como fase do concurso público.
Ademais, os efeitos financeiros e o tempo de serviço do servidor devem ser mantidos e os seus atos funcionais ratificados, com fundamento na teoria do agente público de fato e na vedação de enriquecimento sem causa por parte da administração pública.
Notas
[1] WEICHERT, Marlon Alberto. A sentença condenatória na ação de improbidade administrativa. Profundidade e extensão das sanções. Brasília: Revista de Informação Legislativa v. 43, n. 170, p. 57-73, abr./jun. 2006.
[2] WEICHERT, Marlon Alberto. Op. cit., 2006.
[3] Manual de Processo Administrativo Disciplinar. Controladoria Geral da União. Brasília, 2012, p. 312.
[4] Nesse sentido: MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. Demissão a bem do serviço público. Apelada foi impedida de tomar posse em novo cargo com fundamento no art. 307 da Lei 10.261/68, com redação da Lei Complementar Estadual nº 942/2003. Os efeitos da penalidade somente podem ser contados a partir da aplicação da pena. Direito líquido e certo não demonstrado. Segurança concedida. Reforma. Recurso provido. (TJSP. APL 9105433592008826 SP 9105433-59.2008.8.26.0000. Relator(a): Paulo Galizia. Julgamento: 30/07/2012. Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Público. Publicação: 01/08/2012). Grifei.
[5] CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Op. cit., p. 457/458.
[6] CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Op. cit., p. 457/458.
[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit., p. 131.
[8] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Forum, 2007, p. 302.
[9] FURTADO, Lucas Rocha. Op. cit., p. 303.
[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 227-8.