Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito jurídico de software. 3. Regime legal de proteção do software no Brasil. 3.1. Cadastramento na SEI. 3.2. Registro do software no INPI. 3.3. Programa de computador como obra individual, de colaboração e coletiva. 4. Licença de uso de programa de computador. 4.1. Locação de programa de computador. 4.2. Comercialização de programa de computador pela Internet. 5. Combate ao software ilegal e à pirataria. 5.1. Enquadramento legal por grupos de usuários. 5.1.1. Pessoa física. 5.1.2. Grupo de usuários. 5.1.3. Empresas. 5.1.3.1. Procedimentos preventivos nas empresas contra pirataria. 6. Comercialização de software: direitos e obrigações. 6.1. Cláusulas contratuais. 6.2. Revenda de software ilegal. 7. Medidas judiciais. 7.1. Ação penal pública condicionada e incondicionada. 7.1.1. Diligências e flagrância. 7.2. Ações cíveis. 7.2.1. Ações cíveis de pessoas de direito privado. 7.2.2. Ação civil pública. 8. Segredo de justiça e litigância de má-fé. 9. Considerações finais. 10. Referências bibliográficas.
Palavras-chave: programa de computador; licença de uso; comercialização de software; Internet.
1. INTRODUÇÃO
Nas últimas três décadas, o Brasil consolidou um expressivo parque industrial de bens de informática e um conjunto significativo de empresas prestadoras de serviços, integrando o sexto maior mercado mundial de microcomputadores, impulsionado pela crescente informatização da sociedade 1.
As estratégias políticas para o setor, bem como as instituições e órgãos que contribuíram para sua implantação e desenvolvimento, resultaram na criação de normas e regulamentos que culminaram com a edição das primeiras leis de informática no país.
Contudo, a efetiva tutela jurídica do programa de computador, enquanto bem protegido pelo Direito Autoral, requer do operador jurídico uma percepção conceitual do software em sua integralidade, isto é, como elemento indissociável da revolução tecnológica. Assim, o presente artigo, através de uma ampla abordagem do regime jurídico do software no Brasil, propicia um questionamento das possibilidades e limites do atual ordenamento jurídico, visando à plena proteção da propriedade intelectual intrínseca ao software.
Delinear o programa de computador como uma criação passível de tutela jurídica e conceituá-lo como objeto de propriedade intelectual significa entendê-lo enquanto atividade-meio, que, envolta na sociedade da informação, adquire múltiplos contornos e formas de comercialização, ora requerendo proteção pelas esferas do Direito Civil e do Direito Penal 2.
2. Conceito jurídico de software.
O programa de computador (também chamado de software) é definido como todo escrito destinado ao processamento de dados, compreendendo o conjunto de instruções voltadas a esse fim (textos, manuais, codificações). Não há, pois, como confundir o software com o respectivo suporte ou hardware (disquete, fita ou chip), que se constitui em seu corpo físico ou mecânico — assim como o disco é o suporte da música 3.
A Organização Mundial da Propriedade Intelectual fixou o conceito de software em três categorias, a saber:
Programa de computador: é o conjunto de instruções capaz, quando incorporado a um veículo legível pela máquina, de fazer com que esta disponha de capacidade para processar informações, indicar, desempenhar ou executar uma determinada função, tarefa ou resultado.
Descrição de programa: é uma apresentação completa de um processo, expressa por palavras, esquemas ou de outro modo, suficientemente pormenorizada para determinar o conjunto de instruções que constitui o programa de computador correspondente.
Material de apoio: é qualquer material, além do programa de computador e da descrição do programa, preparado para auxiliar na compreensão ou na aplicação de um programa de computador, como, por exemplo, as descrições de programas e as instruções para usuários.
Na Diretiva do Conselho n.º 91/250/CEE, de 14 de maio de 1991, a expressão “programa de computador” inclui também o material de concepção (artigo 1º, in fine). Assim, há que se ter claro que o programa de computador não está preso a um meio físico determinado, guardando a sua identidade para além das diversas corporificações que pode revestir. O software, situando-se entre as “coisas incorpóreas”, na categoria dos “bens intelectuais”, é, consequentemente, suscetível de tutela pelo Direito Autoral.
Todo o Direito Autoral representa a proteção, no plano jurídico, da evolução dos meios técnicos. Com a invenção da imprensa, surgiu a possibilidade de multiplicação fácil dos exemplares de uma obra, e só então se colocou o problema de uma tutela jurídica do criador intelectual.
No caso da informática, o programa de computador está protegido, posto que é obra intelectual — obra literária —, mas sua ideia-base não o está. Essa poderá inspirar outros programadores a desenvolverem suas próprias criações. Assim como o arquiteto que descobre uma solução arquitetônica revolucionária: a obra que realizou está protegida pelo Direito Autoral, mas a solução se torna patrimônio comum.
O programa de computador inclui-se entre as obras intelectuais de expressão linguística, na medida em que todo software exige, antes de mais nada, uma notação que se constitui na linguagem de computação, a qual permitirá um procedimento do qual se obterão resultados. O programa de computador é, por natureza, um esquema para a ação 4.
A obra literária ou artística (livros, quadros) é uma obra intelectual final. Nesse ponto, difere o programa de computador, que é uma obra intelectual para a ação, e não visa à criação de uma obra final (literária ou artística).
O Direito Autoral protegerá o programa de computador por ter expressão mediante notação (linguagem), e não pelos resultados que possa produzir. Exemplo: se um programa de computador é idealizado para fazer composições musicais aleatórias, a música produzida por combinações realizadas pelo computador não terá proteção do Direito Autoral. Contudo, o programa estará protegido contra terceiros que, porventura, realizem transposição ou conversão de linguagem (Pascal, Fortran etc.).
A transposição do programa assemelha-se à tradução de um livro (italiano, francês, inglês). A transposição, tal qual a tradução, é uma versão da obra de uma linguagem para outra, o que é vedado pelo Direito Autoral.
A Lei n.º 9.609/98, nesse mesmo sentido, ao definir software, enfatizou a noção de conjunto organizado de instruções em linguagem própria, distinto de seu corpo material, em seu artigo 1º, in verbis:
“Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.”
3. O REGIME LEGAL INSTITUÍDO PARA PROTEÇÃO DO SOFTWARE NO PLANO DOS DIREITOS AUTORAIS.
A proteção jurídica dos programas de computador começou a se delinear com a Convenção de Concessão de Patentes Europeias, celebrada em Munique, em 1973, na qual se consagrou a impossibilidade de atribuição de patentes a programas de computador.
Os demais países europeus, paulatinamente, adotaram em suas legislações internas tal orientação. Alemanha e França, em 1985, regulamentaram o software como bem tutelado pelo Direito Autoral.
No Brasil, na década de 1980, desenvolveram-se pesquisas acerca da possibilidade de patente do programa de computador. Contudo, a Secretaria Especial de Informática (SEI) detectou que cerca de 99% dos programas de computador existentes no mundo não seriam patenteáveis, por lhes faltar o requisito de originalidade absoluta. Assim, apenas 1% poderiam ser objeto de patente 5. Dessa forma, o Brasil alinhou-se ao rol de países que adotam a tutela do Direito Autoral para a proteção do software, com a introdução, em seu ordenamento jurídico, da Lei n.º 7.646/87.
Em nível global, a proteção dos programas de computador consolidou-se com a conclusão da Rodada Uruguai (Uruguay Round), no âmbito do GATT, em 1994, que deu origem ao TRIPS Agreement (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights). O referido acordo dispôs, em seu artigo 10, n.º 1, que “os programas de computador, em código fonte ou objeto, serão protegidos como obras literárias segundo a Convenção de Berna (1971)”.
Posteriormente, em Genebra, no ano de 1996, foi concluído o Tratado de Direito do Autor (WIPO Copyright Treaty), confirmando a tendência generalizada de proteção autoral aos programas de computador.
3.1. Aspectos históricos do cadastramento na SEI - Secretaria Especial de Informática
No Brasil, a proteção dos direitos autorais do titular de programa de computador foi regulamentada por legislação especial, que estabeleceu diretrizes para a política nacional do setor de informática.
No sistema jurídico brasileiro, foram instituídos dois tipos de registro para a proteção dos programas de computador: um voltado à comercialização e outro à criação, destinado à proteção dos direitos autorais.
O primeiro texto legal a tratar do cadastramento de programas de computador foi a Lei n.º 7.232/84, com as modificações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 2.203/84. Esses diplomas cuidaram não apenas da proteção da criação intelectual (software), mas também da comercialização no país, tanto de produtos nacionais quanto estrangeiros, criando regimes diferenciados, em consonância com a então vigente política de reserva de mercado.
O registro de programas de computador foi, posteriormente, instituído por lei específica (Lei n.º 7.646/87, art. 8º) e realizava-se perante o CONIN – Conselho Nacional de Informática, órgão vinculado à SEI, composto por 12 membros do governo e 12 representantes da sociedade civil, sob a presidência do Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia.
O cadastramento prévio de programas de computador junto a esse órgão era condição essencial para a comercialização. Em outras palavras, para a validade e eficácia de qualquer negócio jurídico relacionado ao programa de computador, era imprescindível o registro na SEI — tanto na esfera cambial (emissão de duplicatas, créditos, pagamentos) quanto para fins fiscais, permitindo a dedutibilidade conforme as normas previstas em legislação específica.
Frise-se que, quanto à abrangência, somente os programas de computador comercializados no país eram passíveis de cadastramento na SEI. A documentação apresentada no registro destinava-se ao exame de similaridade, podendo a SEI solicitar informações sobre as funções do programa, desempenho em termos de memória principal e secundária, tempo e capacidade de processamento, número de arquivos, manuais, lista de preços e valor unitário por cópia. Daí por que o cadastramento junto à SEI possuía validade limitada a três anos, condicionada à inexistência de programa similar.
Com o advento da nova Lei de Software (Lei n.º 9.609/98), a obrigatoriedade do registro do programa de computador junto à SEI foi extinta, conforme se depreende do artigo 2º, § 3º, in verbis:
“§ 3º A proteção aos direitos de que trata esta Lei independe de registro.”
À primeira vista, poderia parecer que o legislador teria deixado de prever qualquer tipo de registro para a proteção dos direitos autorais relativos à criação de programas de computador.
3.2. Aspectos do registro do software junto ao INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial
O tema da proteção da criação intelectual merece análise mais cuidadosa, na medida em que a própria Lei nº 9.609/98, de 19 de fevereiro de 1998, deixou ao critério do titular dos direitos autorais sobre o software efetuar ou não o registro deste junto ao INPI, conforme dispõe:
Art. 3º. Os programas de computador poderão, a critério do titular, ser registrados em órgão ou entidade a ser designado por ato do Poder Executivo, por iniciativa do Ministério responsável pela política de ciência e tecnologia.
Dessa forma, o Governo Federal, por meio do Decreto nº 2.556, de 20 de abril de 1998, regulamentou o disposto no artigo 3º da referida Lei, dispondo sobre a proteção da propriedade intelectual de programas de computador e sua comercialização no país, nos seguintes termos:
Art. 1º. Os programas de computador poderão, a critério do titular dos respectivos direitos, ser registrados no Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI.
§ 1º. O pedido de registro estabelecido neste artigo deverá conter, pelo menos, as seguintes informações:
I – os dados referentes ao autor do programa de computador e ao titular, se distinto do autor, sejam pessoas físicas ou jurídicas;
II – a identificação e descrição funcional do programa de computador; e
III – os trechos do programa e outros dados que se considerarem suficientes para identificá-lo e caracterizar sua originalidade, ressalvando-se os direitos de terceiros e a responsabilidade do Governo.
§ 2º. As informações referidas no inciso III do parágrafo anterior são de caráter sigiloso, não podendo ser reveladas, salvo por ordem judicial ou a requerimento do próprio titular.
É, pois, pacífico que a nova lei deixou a critério do interessado o registro junto ao INPI. Contudo, é imprescindível ter em mente que a própria lei, ao tratar da proteção efetiva dos direitos autorais, criou duas condicionantes ao exercício desses direitos, conforme o § 2º do artigo 2º, in verbis:
§ 2º. Fica assegurada a tutela dos direitos relativos a programa de computador pelo prazo de cinquenta anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao da sua publicação ou, na ausência desta, da sua criação.
Assim, à luz da nova Lei de Software e de seu decreto regulamentador, para que se assegure a titularidade do programa de computador, é necessário que haja comprovação de autoria, seja por meio de publicação ou de prova de criação, sempre, contudo, passível de questionamento na esfera judicial.
Ressalte-se, quanto à abrangência, que o registro do programa no INPI, diferentemente dos casos de marcas e patentes, possui reconhecimento internacional (Lei nº 7.646/87, art. 3º, § 2º). Do mesmo modo, programas estrangeiros, desde que procedentes de países que concedam reciprocidade aos autores brasileiros, não precisam ser registrados no Brasil, salvo nos casos de cessão de direitos.
A documentação constante do registro é de inteira responsabilidade do criador que busca a proteção de sua obra.
Entretanto, é importante frisar que tais documentos são fundamentais nas questões relativas à pirataria de programas, pois é com base nessa documentação que se realiza o exame de mérito por peritos, em procedimentos necessários às decisões judiciais.
Por essa razão, é crescente o entendimento de que devem ser apresentadas, no registro, as partes principais do código-fonte. As informações que fundamentam o registro são de caráter sigiloso: os documentos são acondicionados em envelopes especiais e arquivados em instalações de segurança do INPI, sem que seu teor seja acessível, sequer, aos funcionários responsáveis pelo setor de registros. A revelação de tais informações somente pode ocorrer a requerimento do titular ou por ordem judicial 6.
3.3. Do Programa de Computador enquanto obra individual, de colaboração e coletiva
Neste ponto, é importante distinguir o programa de computador enquanto obra individual, obra de colaboração e obra coletiva.
A obra individual é fruto do esforço intelectual de um único indivíduo, que terá atribuição plena de seus direitos autorais. É o caso do programador isolado.
A obra de colaboração ocorre quando a criação do programa resulta do esforço conjunto de várias pessoas, configurando situação jurídica de coautoria, na qual a titularidade dos direitos autorais é compartilhada.
A obra coletiva, por sua vez, é aquela realizada por diversas pessoas, mas organizada por uma pessoa singular ou jurídica, que coordena, dirige e integra as contribuições individuais no resultado final.
Nesse particular, a legislação é específica, conforme já previa o artigo 5º da Lei nº 7.646/87, e agora aperfeiçoada pela Lei nº 9.609/98, que dispõe:
Art. 4º. Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público os direitos relativos ao programa de computador desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado, contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos.
§ 1º. Ressalvado ajuste em contrário, a compensação do trabalho ou serviço prestado limitar-se-á à remuneração ou ao salário convencionado.
§ 2º. Pertencerão, com exclusividade, ao empregado, contratado de serviço ou servidor, os direitos concernentes a programa de computador gerado sem relação com o contrato de trabalho, prestação de serviços ou vínculo estatutário, e sem a utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador, da empresa ou entidade com a qual o empregador mantenha contrato de prestação de serviços ou assemelhados, do contratante de serviços ou órgão público.
§ 3º. O tratamento previsto neste artigo será aplicado nos casos em que o programa de computador for desenvolvido por bolsistas, estagiários e assemelhados.
Art. 5º. Os direitos sobre as derivações autorizadas pelo titular dos direitos de programa de computador, inclusive sua exploração econômica, pertencerão à pessoa autorizada que as fizer, salvo estipulação contratual em contrário.
Contudo, é necessário que o empregado possua contrato expressamente destinado à pesquisa e ao desenvolvimento, ou que nele conste a atividade do empregado, servidor ou prestador de serviços, ou ainda que o desenvolvimento do programa decorra da própria natureza dos encargos contratados.
A lém disso, é imprescindível que o desenvolvimento e a elaboração do software ocorram durante a vigência do contrato ou do vínculo estatutário. Fora desses casos, o empregador não terá direito à autoria do programa.
O prazo de validade dos direitos autorais, que pela lei anterior era de 25 anos contados da data de lançamento — isto é, da data em que o autor utiliza o programa ou o coloca à disposição de terceiros —, passou a ser de 50 (cinquenta) anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao da publicação, ou, na ausência desta, da sua criação 7.
Vencidas as questões básicas relativas aos direitos do autor e à comercialização do software, depara-se com um conjunto de limitações quanto à sua utilização, seja em termos contratuais ou legais, seja quanto à reprodução.