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A ocupação das propriedades rurais improdutivas:

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18/09/2013 às 14:14
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3.CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO DE RESISTÊNCIA E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Discussões acerca de temas como direito de resistência e desobediência civil são de suma importância para a correta compreensão do trabalho, por trazerem os fundamentos jurídico-filosóficos que irão lastrear-se no bojo do mesmo. Assim, neste capítulo será analisada a evolução do conceito de direito de resistência e as limitações ao seu exercício, além de apontar exemplos históricos de sua manifestação. Com relação à desobediência civil, será estudado o seu conceito e as condições que a justificam, procurando relacioná-la com a moralidade política dos indivíduos. Por fim, será mostrado como a desobediência civil se compatibiliza com o Estado Democrático de Direito.

3.1Direito de resistência

O tema direito de resistência é bastante complexo e pouco explorado na produção jurídica nacional. É um assunto que requer cuidados, haja vista a ausência de consenso terminológico, bem como a existência de discordância acerca de sua natureza. Dessarte, o presente trabalho, com o fim de não perder a sua clareza e objetividade, abordará a matéria a partir da concepção de alguns pensadores, como, por exemplo, Santo Tomás de Aquino, John Locke, Rudolf Von Ihering, Maria Garcia, dentre outros, mantendo, contudo, a coerência em suas proposições.

Inicia-se o estudo buscando as raízes históricas do direito de resistência. O Código de Hamurabi, datado de 1700 a. C. já autorizava a rebelião como forma de oposição ao mau governante que não respeitasse os mandamentos e as leis. Na Grécia Antiga encontra-se igualmente o registro desse direito na obra de Sófocles, Antígona. Nela é reconhecida a existência de leis naturais de origem divina, superiores, portanto, que as leis dos homens, como justificativa para desobedecer às ordens do governante[39].

No entanto, somente ao longo do período medieval foi que o direito do povo de resistir a um governante tirano ganhou maior importância. Durante esse momento da história, o poder estava concentrado na figura do Papa, que era quem definia os princípios a serem seguidos por todos os cristãos. Sob essa ótica, o direito de resistência entrou na órbita de influência da Igreja Católica, sendo posto como um direito natural de concepção divina e se tornando, por conseguinte, no único limitador do poder do monarca, pois nem mesmo ele poderia deixar de se curvar às leis da natureza.

O grande pensador da época que teorizou o direito de resistência foi Santo Tomás de Aquino. Para ele, o tema é visto à luz da reciprocidade de direitos e deveres que deve existir entre governantes e governados. Explicando a questão, afirma Celso Lafer que “se o legislador pode reivindicar o direito a ser obedecido, o cidadão pode igualmente reivindicar o direito a ser governado sabiamente e por leis justas[40]

A reciprocidade é invocada pelo Tomismo como o modo de manutenção da ordem. Revoltar-se era, inclusive, considerado um pecado. A despeito disso, Machado Paupério, lembrado por Maria Garcia, assevera que Santo Tomás de Aquino “reconhecia o direito de resistência, partindo do pressuposto de que o levante contra o tirano não chegava a constituir sedição, mas resistência ou a repressão da sedição[41]”.

As leis naturais de origem divina eram colocadas, nesse contexto, como um instrumento de subordinação do governante à ordem natural de justiça e justificavam a mudança de regime pelo povo quando esse se tornava tirânico.

Na Modernidade, o paradigma do direito natural vinculado a uma compreensão divina se desfaz, dando origem a uma nova percepção atrelada a razão humana. A doutrina jusnaturalista apresenta o direito natural como inerente ao indivíduo e preexistente ao próprio Estado, servindo, desse modo, de inspiração ao direito positivo e reforçando a sua idéia de superioridade.

É a partir do jusnaturalismo moderno que nasce o contratualismo, um conjunto de teorias que visualiza, no contrato social, o elemento que deu origem ao Estado político. O pacto extingue o estado de natureza e marca a formação da sociedade. Nesse sentido, conclui Ana Maria Marques Ribeiro[42]:

No pensamento jusnaturalista, a noção de contrato social se coloca como a única saída do estado de natureza para a sociedade política. De acordo com a teoria contratualista, a origem da sociedade e o fundamento do poder político estão prescritos num contrato, um acordo tácito ou expresso entre a maioria dos indivíduos. Este acordo assinalaria o fim do estado natural e início do estado político.

Dentre os pensadores contratualistas, destaca-se John Locke. Para ele, os homens viviam, inicialmente, em um estado de perfeita liberdade e igualdade, chamado de estado de natureza. Todos podiam regular suas ações e dispor de seus bens sem depender de qualquer outro homem, além de possuírem as mesmas vantagens e faculdades sem a existência de relação de subordinação entre si, sendo apenas obrigados pelas leis da natureza. Contudo, esse estado apresentava algumas inconveniências, conforme relata[43]:

No estado de natureza todos têm o poder executivo da lei da natureza, não duvido que se objetará que não é razoável que os homens sejam juízes em causa própria, que o amor-próprio os fará agir com parcialidade em favor de si mesmos e de seus amigos. E, por outro lado, a natureza vil, a paixão e a vingança os levarão longe demais na punição dos demais, da qual nada resultará além de confusão e desordem.

Da desordem no estado de natureza, entende Locke, surgiria o estado de guerra, um ambiente caracterizado pela inimizade, onde a ausência de proteção à vida, à liberdade e aos bens levaria todos à destruição. Desse modo, é com o fim de evitar que isso aconteça que os homens, segundo ele, se reúnem em sociedade.

Evitar esse estado de guerra (no qual não há apelo senão aos céus, e para o qual pode conduzir a menor das diferenças, se não houver juiz para decidir entre os litigantes) é a grande razão pela qual os homens se unem em sociedade e abandonam os estado de natureza. Ali onde existe autoridade, um poder sobre a Terra, do qual se possa obter amparo por meio do apelo, a continuação do estado de guerra se vê excluída e a controvérsia é decidida por esse poder[44]

Entretanto, para Locke, o Estado nascente, originado do contrato social, não deve eliminar a condição natural do homem. As leis criadas devem ser a positivação das leis naturais, nas quais se fundamentam os direitos dos indivíduos[45], ainda mais que a sociedade política estaria baseada na relação de confiança entre governantes e governados[46].

Nesses termos, quando essa confiança é quebrada pelo governante, é perdido todo o seu direito à obediência por parte dos membros da sociedade. Locke aduz que “onde termina a lei, começa a tirania” e completa, afirmando que, deixará a sua posição de autoridade, aquele que fizer uso da força para, a despeito da lei, obrigar um súdito a fazer o que ela não permite. Nessa hipótese, poderá ser combatido como qualquer outro homem que interfere em direito alheio[47].

Na visão de Locke, sustenta Celso Lafer, o direito de resistência surgiria como conseqüência de uma crise na sociedade política que torna possível a reversão provisória ao estado de natureza. A regeneração do Estado viria do direito natural dos homens de não se deixarem oprimir pelos governantes. É isso que fazia Locke defender o oprimido contra o opressor com tanta exaltação e afirmar a liberdade e a soberania popular em oposição à ordem injusta[48].

Complementando Celso Lafer e Locke, Maria Garcia acrescenta, afirmando que “o povo é, assim, soberano, pois não abdicou de todos os direitos que lhe são inerentes em favor de nenhuma pessoa ou assembléia. Pelo contrato social, não se despojou do poder, cujo exercício apenas delegou[49]”.

Superada as considerações históricas, a atenção se volta neste momento para o dimensionamento do direito de resistência.

Introdutoriamente, as palavras de Rudolf Von Ihering, em sua clássica obra, “A luta pelo direito”, merecem destaque no bojo deste trabalho[50].

A defesa do direito ofendido no plano internacional, realizada através da guerra, a resistência de um povo contra os atos de despotismo e contra as violações da Constituição praticadas pelo poder estatal, que assume a forma de sublevação, de revolta, de revolução, a realização turbulenta do direito privado através da chamada lei de Lynch, a vingança privada da Idade Média e o vestígio que dela encontramos em nossos dias, o duelo, a legítima defesa admitida pela lei e, finalmente, a regular efetivação do direito através do processo civil – todos esses modos de defesa apesar da diversidade do objeto do litígio e do maior ou menor empenho colocado nelas, bem como dos aspectos e das dimensões diferentes que a luta assume, não passam de formas e cenas de uma mesma luta pelo direito.

Para ele, a resistência contra o desrespeito ao direito que assuma caráter de menosprezo constitui um dever do titular para consigo mesmo e para com a comunidade, pois é somente desse modo que o direito pode realizar-se em sua essência, ou seja, na prática. O indivíduo que defende o seu direito estaria protegendo também o direito em geral, da mesma forma que defendendo o direito em geral fica protegido o seu direito individual. Dessarte, sempre que a arbitrariedade toma forma, restará comprovado que aqueles a quem incube a defesa do direito omitiram-se de seu dever.

Continua Ihering, sustentando que o grau de resistência à agressão é determinado pela intensidade do sentimento de justiça de um povo. Ele é a raiz que sustenta e serve de garantia para a existência do Estado.

Qualquer norma que se torne injusta aos olhos do povo, qualquer instituição que provoque seu ódio, causa prejuízo ao sentimento nacional de justiça, e por isso mesmo solapa as energias da nação; representa um pecado contra a idéia do direito, cujas conseqüências acabam por atingir o próprio Estado[51].

É nas palavras de Ihering, com a relação entre Direito, Estado e sentimento de justiça, que Ronald Fontenele Rocha afirma está o fundamento para o exercício do direito de resistência[52].

Ante o exposto, o direito de resistência, no sentido amplo, pode ser conceituado como sendo aquele que reconhece aos cidadãos, em certas condições, quando houver abuso de poder por parte de autoridade, a oposição às normas injustas, a resistência à opressão e a revolução[53]. Nessa seara, é mister saber quais são as condições que autorizam o exercício do direito de resistência.

 Segundo Celso Lafer, no contexto contemporâneo, o paradigma do direito natural não mais mantém o debate em torno da reciprocidade de direitos e deveres entre governantes e governados, mas, sim, sobre os meios empregados para derrubar a opressão[54]. Assim, as condições referidas no parágrafo anterior, são entendidas como aquelas relacionadas com o modo que o direito é exercido.

Nesse momento, são importantes as lições de Machado Paupério, citado por Geovani de Oliveira Tavares, para o qual o direito de resistência deve ser necessário, útil e proporcional. Para o autor, o direito de resistência só existiria quando forem esgotadas as vias institucionais sem que se tenha obtido resultados concretos, o problema combatido seja reconhecidamente significativo, inclusive pelos órgãos oficiais, e que os meio empregados sejam proporcionais aos fins almejos[55].

No mesmo sentido, posiciona-se J. J. Gomes Canotilho, segundo Geovani de Oliveira Tavares. O constitucionalista português defende que “o direito de resistência é a ultima ratio do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por actos do poder público ou por ações de entidades privadas[56]”.

Considerando o direito de resistência como a ultima ratio, J.J. Gomes Canotilho o coloca na fronteira da legalidade, onde só poderá ser utilizado quando ocorrer flagrante violação de direitos ou lesão de princípios constitucionais.

Outrossim, Ronald Fontenele Rocha argumenta que, em um Estado Democrático de Direito, não é qualquer injustiça que autoriza a resistência, mas somente aquelas que ultrapassam um limite e são capazes de romper com o dever de todos para com as instituições[57].

Locke, um grande defensor do direito de resistência, teceu, também, comentários a respeito do tema[58]:

Quando a parte que sofreu a injúria puder ser compensada e seus prejuízos reparados mediante o apelo à lei, não haverá pretexto para força, que só deve ser usada quando alguém for impedido de recorrer à lei. Pois nenhuma força deverá ser considerada hostil, a menos que não permita o remédio de tal apelo. E é apenas essa força que põe quem a usa em estado de guerra e torna legítimo resistir-lhe.

Assim sendo, uma sociedade que possua meios institucionais insignificantes de controle das leis, dará, com maior frequência, motivos para que os cidadãos utilizem a resistência, diferentemente de uma sociedade onde as vias institucionais de questionamento estão disponíveis aos cidadãos, o que não impede, eventualmente, a existência de arbítrios.

A despeito da posição exarada acima, existe uma grande dificuldade enfrentada pelo direito de resistência nesse cenário, a sua positivação na ordem jurídica. Não obstante, há consagrações legislativas históricas que fazem referência a esse direito.  

A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América de 1776, de forte inspiração no paradigma do direito natural, deixou expresso o direito de resistência contra o poder arbitrário dos governantes. Diz seu texto:

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.

Essa declaração influenciou movimentos de independência em vários países, inclusive no Brasil, consoante relato de Thomas Jefferson, feito por meio de carta, a John Jay[59], em 1787, o qual menciona o teor de uma carta recebida de um brasileiro[60]:

Eu nasci no Brasil. Vós não ignorais a terrível escravidão que faz gemer nossa pátria. Cada dia se torna mais insuportável nosso estado, depois da vossa gloriosa independência, porque os bárbaros portugueses, receosos de que o exemplo seja abraçado, nada omitem que possa fazer-nos mais infelizes. A convicção de que estes usurpadores só meditam novas opressões contra as leis da natureza e contra a humanidade tem-nos resolvido a seguir o farol que nos mostrais, a quebrar os grilhões, a renunciar à nossa moribunda liberdade, quase de todo acabrunhada pela força, único esteio da autoridade dos europeus nas regiões da América.

Por sua vez, o texto da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, acompanhando o momento histórico, estabelece, em seu art. 2º, que “a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.

Entretanto, posteriormente a esse período, o direito de resistência sofreu um processo de desaparecimento dos textos legislativos. Celso Lafer, explica esse acontecimento no processo de positivação de importantes instrumentos de controle destinados a evitar os abusos de poder do Estado absolutista, citando as declarações de direitos, a separação dos poderes, a legitimação constitucional das oposições, a crescente investidura popular dos governantes através de extensão do sufrágio e o controle dos atos administrativos pelo Judiciário[61].

Conclusão semelhante chegou Burdeau, menciona Maria Garcia. O desaparecimento do direito de resistência do campo jurídico positivo apresentaria duas explicações. A primeira diz respeito à dificuldade de admitir a possibilidade da opressão num regime democrático, onde teoricamente não haveria tal espaço. Em segundo lugar “as ideologias modernas começaram a não admitir a resistência como atitude de reserva do cidadão tanto em relação ao poder quanto em relação ao grupo: para elas existe apenas uma tirania, a das ameaças que vêem na recusa dos sacrifícios individuais, aos valores que representam[62]”.

Ademais, correntes jusfilosóficas suscitam que a positivação do direito de resistência implicaria a impossibilidade de distinção entre o lícito e o ilícito. Por esse motivo, defendem a fidelidade ao ordenamento como modo de garantir a unidade e a coerência no momento de comprovar, interpretar e conciliar as normas de direito positivo[63].

Não obstante a força dos argumentos supramencionados, a questão urge algumas considerações. Primeiramente, é mister esclarecer que em Estados autoritários é perfeitamente compreensiva a inexistência de positivação do direito de resistência, visto que há uma tendência irresistível de afastar o povo das discussões políticas. A mesma alegação não pode ser utilizada em um Estado Democrático de Direito, onde a participação popular é sua característica precípua.

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Outro ponto é que a opressão não é própria de um regime político específico, podendo existir em qualquer de suas formas, inclusive nos regimes democráticos. Ainda que os cidadãos possuam meios institucionais de questionamento, tais mecanismos podem sofrer distorções e não serem efetivados, fato que transforma o regime em opressor.

Por fim, é necessário indagar quais os fins buscados pelo direito de resistência. Em um ordenamento jurídico jamais será admitido uma disposição que possibilite a sua própria destruição. Desse modo, as invocações do direito de resistência com o objetivo de provocar um colapso na ordem vigente, como fazem movimentos revolucionários, nunca terão refugio no campo jurídico-positivo. A sua aceitação criaria, inevitavelmente, uma ordem legal autofágica, o que é ilógico do ponto de vista jurídico.

Todavia, o exercício do direito de resistência com a finalidade de reafirmação da obrigação jurídica e defesa da ordem constitucional é perfeitamente compatível com o ideal democrático.  Consiste em “um último recurso para manter a estabilidade de uma constituição justa[64]”. Nesse cenário, a resistência se transforma em um instrumento de participação popular nas políticas públicas governamentais sob a forma de pressão social.

Ademais, é imperativo lembrar que a resistência não pode ser usada de maneira desarrazoada, conforme mencionado anteriormente, sob pena de se tornar abusivo e ferir os próprios valores democráticos. Assim, pode-se concluir que, na hipótese de aperfeiçoamento da ordem jurídica, ou seja, o exercício de um direito de resistência social, a sua positivação é perfeitamente coerente com um regime tolerante, onde mesmo quando não expressamente previsto de forma genérica, está implicitamente albergado na Constituição[65]

Como exemplo de textos constitucionais que consagram expressamente o direito de resistência, existe a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949, que dispõe, no seu art. 20, item 4: “ Não havendo outra alternativa, todos as alemães têm o direito de resistir”. No mesmo sentido, expressa a Constituição portuguesa de 1982, em seu art. 21º: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.

O direito de resistência possui varias formas de manifestação, muitas delas ficaram famosas no mundo inteiro como exemplos de luta e perseverança. São elas: o não pagamento de imposto por Henry David Thoreau como protesto pela política escravista do estado de Massachusetts e contra a guerra dos Estados Unidos com o México; a luta de Mahatma Gandhi contra o imposto do sal, levando centenas de hindus ao mar, culminando, posteriormente, nas campanhas para a libertação da Índia do domínio britânico; a campanha pelos direitos civis da população negra norte-americana, tendo como líder o pastor Martin Luther King; o não alistamento militar obrigatório nos Estados Unidos durante a guerra do Vietnã; a luta pelo fim do apartheid na África do Sul, tendo em Nelson Mandela o seu personagem principal e, mais próximo da realidade brasileira e do objeto deste trabalho, as ocupações de propriedades rurais improdutivas pelo MST.

Com exceção da luta contra o apartheid, que teve uma característica violenta em um primeiro momento, todos os outros exemplos de resistência citados acima tinham características de luta pacífica. Essa espécie de manifestação do direito de resistência é chamada de desobediência civil e será tratada mais detidamente no próximo tópico.

3.2Desobediência civil

O ato de desobedecer em si sempre foi colocado, dentro de uma organização social, como algo condenável por possuir um enorme potencial de abalar às suas estruturas vigentes. Essa característica torna o estudo da desobediência civil uma tarefa difícil, pois urge afastá-la de todas as formas de violações de direitos que poderiam distorcer seu conceito e finalidade. Diante disso, a matéria será debatida, abordando problemas de natureza jurídico-filosófica de forma que as conclusões alcançadas permitam clarear as dúvidas que a discussão, possivelmente, trará.

A desobediência civil, nas palavras de Maria Helena Diniz, pode ser entendida como “uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça, a ilegitimidade e a invalidade da lei e com o fim mediato de induzir o poder a mudá-la[66]”. Entretanto, esse conceito deve ser estendido, considerando que os objetivos da desobediência civil podem ir além da simples mudança de uma lei.

Para Maria Garcia, esse tipo de resistência pode ser tanto contrária à lei como ao ato de uma autoridade[67]. Já John Rawls vai mais longe ao sustentar que a desobediência civil tem por objetivo mudar até mesmo políticas de governo[68]. Compartilha da mesma opinião Ronald Dworkin. Para ele, são igualmente desobedientes civis, aqueles que se opõem a uma política que consideram injusta com o fim de alterá-la, “uma política de opressão de uma minoria pela maioria[69]”.

Assim, este trabalho não limitará a compreensão acerca da desobediência civil apenas aos atos que buscam a mudança de lei, mas, também, aqueles que visam alterar atos de autoridades instituídas e políticas de governo por ser, nesse sentido, mais coerente com o fim último a que se propõem os praticantes de ações dessa natureza, o combate à injustiça.

De posse desse entendimento, passa-se a busca das origens do tema no pensamento de Henry David Thoreau.

Sob o argumento de que os impostos arrecadados estavam sendo usados, à época, para sustentar um Estado escravista e financiar a guerra de conquista do território mexicano pelos Estados Unidos, Thoreau decidiu negar-se a cumprir suas obrigações tributárias. Essa atitude de desobediência às leis tinha o objetivo de expor, perante o governo, o seu posicionamento contrário às ações estava sendo adotada[70].

Quando um sexto da população de uma nação que se comprometeu a ser o abrigo da liberdade é formado por escravos, e um país inteiro é injustamente invadido e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei militar, penso que não é demasiado cedo para os homens honestos se rebelarem[71].

Em sua obra, Thoreau faz uma dura crítica ao conformismo da população que, na visão dele, omite-se diante dos abusos cometidos e, por conseguinte, ajuda a fortalecer o próprio governo repressor. Nesse seara, relata expressamente: “aqueles que, embora desaprovando o caráter e as medidas do governo, dão a ele sua lealdade e seu apoio, são indubitavelmente seus defensores mais conscienciosos[72]”.

Nesses termos, conclui que o indivíduo deve obedecer, primeiramente, a sua consciência, cabendo aos governantes apenas respeitar a sua livre escolha. A desobediência civil, tal como foi cunhada por Thoreau, está, portanto, diretamente relacionada ao direito de liberdade de não se submeter às instituições e leis injustas do Estado.

Se a injustiça faz parte do atrito necessário à máquina do governo, deixemos que assim seja: talvez amacie com o passar do tempo, e certamente a máquina irá se desgastar. Se a injustiça tem uma mola, polia, cabo, ou manivela exclusivamente para si, talvez possamos questionar se o remédio não será pior que mal. Mas se ela for de natureza tal que exija que nos tornemos agentes de injustiça para com os outros, então proponho que violemos a lei[73].

A partir da análise da obra de Thoreau, é certo que o autor não faz uma distinção clara entre a desobediência civil e a objeção de consciência. Essas expressões merecem o devido cuidado, pois podem facilmente serem vistas como sinônimas. Desse modo, algumas considerações se fazem necessárias.

A objeção de consciência é a desobediência a uma lei ou ordem considerada moralmente injusta assim como a desobediência civil. Contudo, de acordo com John Rawls, a primeira diferencia-se da segunda por não ser uma ação praticada publicamente com o objetivo de recorrer ao senso de justiça da comunidade. Ademais, continua o autor, os objetores de consciência não são movidos necessariamente por princípios políticos, como ocorre com os desobedientes civis, podendo fundamenta-se em outros de natureza divergente como, por exemplo, fizeram os primeiros cristãos quando se recusaram a obedecer algumas leis do império romano, por serem contrárias as suas convicções religiosas[74].

Sobre o assunto, assevera Celso Lafer que a tendência de confundir desobediência civil com objeção de consciência tem sua explicação no paradigma do direito natural tanto de inspiração na filosofia cristã quanto na razão humana, pois ambos os conceitos se sustentam na crença de que a consciência é o lumen naturale que revelaria aos homens a existência de uma lei superior à lei positiva, a qual devem se submeter[75].

Feitos esses esclarecimentos, é oportuno reconhecer a importância, para o estudo da desobediência civil, das bases que foram lançadas no século XIX, por Thoreau, e que são conservadas até hoje. Todavia, no processo natural de evolução da sua compreensão ao longo dos anos, observam-se o surgimento de opiniões conflitantes entre os estudiosos da matéria acerca de suas características e justificativas.

Contrariamente a Thoreau, para quem a desobediência civil possui como característica marcante a individualidade quanto ao modo de exercício e quanto à titularidade[76], Hannah Arendt defende que o desobediente civil só pode existir mediante ação de grupo. Segundo a filósofa alemã, os “argumentos levantados em prol da consciência individual ou de atos individuais, ou seja, os imperativos morais e os apelos a mais alta lei, seja ela secular ou transcendente, são inadequados quando aplicados à desobediência civil[77]”.

A consciência, afirma Hannah Arendt, tem a faculdade de colocar o homem diante de si próprio, mas não tem o capacidade de persuadir os outros. Dessarte, a objeção de consciência só seria politicamente relevante quando determinado número de indivíduos resolve ir a público. Nesse momento, os desobedientes civis já não contam apenas com suas consciências, mas com a força de uma opinião que está associada ao número de pessoas que a compartilha[78]. Ademais, a desobediência civil, por ser uma ação política, encontra-se na esfera de interesse público, não podendo ser ato de um indivíduo isoladamente.

Assim sendo, a objeção de consciência pode até levar o indivíduo a juntar-se a um grupo de opinião comum, mas são as ações combinadas de minorias organizadas que darão credibilidade às suas convicções e onde se encontra o verdadeiro poder da desobediência civil.

Diante de pontos de vista tão divergentes, não seria desarrazoado admitir um meio-termo, onde o exercício da desobediência civil possa assumir tanto a forma individual quanto a coletiva, mas sempre com fundamento de caráter estritamente público. Compartilha dessa opinião, Ronald Fontenele Rocha[79].

Superadas essas questões, este trabalho volta sua atenção para as circunstâncias que justificariam as ações de desobediência civil.

Nessa tarefa, são valiosos ensinamentos de John Rawls. O autor trabalha a questão da desobediência civil em um contexto que ele convencionou chamar de estado de quase-justiça. Trata-se de “um estado em que a estrutura básica da sociedade é quase justa, fazendo-se as devidas concessões ao que se pode razoavelmente esperar dessas circunstâncias[80]”. Nesse cenário, John Rawls acredita no dever de obediência as leis e as instituições, ainda que injustas.

Segundo ele, no momento em que se busca uma Constituição justa, o objetivo é encontrar aquela que possui a maior probabilidade de conduzir a uma legislação razoável e eficaz. Entretanto, uma Constituição com essa qualidade não garante que as leis originadas a partir dela apresentem a mesma característica, tendo em vista que nenhum processo político é infalível.

Assim, conclui John Rawls[81]:

O dever de civilidade impõe a devida aceitação dos defeitos de instituições e uma certa moderação em beneficiar-se delas. Sem algum tipo de reconhecimento desse dever natural, a crença, e a confiança mútuas tendem a fracassar. Assim, pelo menos num estado de quase-justiça, há normalmente um dever (e para alguns uma obrigação) de obedecer a leis injustas.

Contudo, o autor faz uma ressalva. Quando o ônus decorrente das falhas do processo político não for distribuído de modo mais ou menos uniforme entre os vários grupos da sociedade, e as duras conseqüências de políticas equivocadas pesarem demais em algum caso específico, a obediência pode tornar-se problemática para uma minoria que tenha que suportar uma situação de injustiça por muitos anos[82].

Nessa seara, o John Rawls, elenca três circunstâncias que a desobediência civil seria razoável. A primeira diz respeito à violação do que denominou de princípio da liberdade igual. Entende o autor que, por definir “o status comum da cidadania igual dentro de um regime constitucional e está na base da ordem política[83]”, o seu desrespeito permitiria concluir que as injustiças existentes fugiram ao controle público. A outra condição é que as vias normais de apelo contra a injustiça se mostrem inúteis. Nessa hipótese, como a desobediência civil é o último recurso, o seu exercício se faria necessário. A terceira e última condição se refere aos limites das ações. A adoção da desobediência civil, diz ele, não pode provocar o colapso da lei e da Constituição, pois, caso contrário, atrairia um mal ainda maior para todos[84].

É bem verdade que John Rawls trouxe, com suas palavras, a preocupação constante de evitar desordens e divisões da sociedade nas lutas contra injustiças. No entanto, essa possibilidade somente se vislumbra quando os verdadeiros propósitos da desobediência civil são distorcidos. O que ela almeja é o aperfeiçoamento do sistema vigente, qualquer tentativa de ruptura não pode possuir essa denominação.

Hannah Arendt diverge de John Rawls em alguns pontos. Para a filósofa alemã, a grave dúvida sobre a legalidade e a constitucionalidade das ações governamentais já justificaria a desobediência civil. Nesse sentido, expõe[85]:

A desobediência civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para a mudança já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.

A justificativa para a desobediência civil pode ser, ainda, aperfeiçoada com a utilização de estratégias que possibilitem o combate à injustiça de maneira digna. Nesse caso, pode-se citar o uso da publicidade e o repúdio à violência.

Com efeito, sendo os atos de desobediência civil uma forma de apelo público, nunca são praticados sorrateiramente. A diferença entre a violação clandestina e a violação aberta da lei, executada em público, é enorme.

O transgressor comum, mesmo que pertença a uma organização criminosa, age exclusivamente em seu próprio benefício; recusa-se a ser dominado pelo consentimento dos outros e só cederá ante a violência das entidades mantenedoras da lei. Já o contestador civil, ainda que seja normalmente um dissidente da maioria, age em nome e para o bem de um grupo; ele desafia a lei e as autoridades estabelecidas no terreno da dissensão básica, e não porque, como indivíduo, queria algum privilégio para si, para fugir com ele[86].

Ademais, lembra José Carlos Garcia, a publicidade dos atos serve para manter os canais de negociação com as autoridades, fato que não seria possível caso as ações não fossem públicas[87].

 Nessa esteira, a desobediência civil não pode ser violenta. O dissidente, por acreditar que a violência origina muito mais problemas, impõe-se o permanente exercício da renúncia, ou seja, abandona voluntariamente o uso da força[88]. Complementando a questão, José Carlos Garcia assevera que essa estratégia visa expor o vigor moral dos que estão sendo oprimidos, com vistas a demonstrar que são merecedores de respeito e dignidade, bem como de mobilizar a opinião pública favoravelmente aos desobedientes civis[89].

Com base nessas informações, John Rawls sustenta que, não obstante a violação da lei, o desobediente civil é, paradoxalmente, movido por um grande sentimento de fidelidade à lei, conforme explica[90]:

A lei é violada, mas a fidelidade à lei é expressa pela natureza pública e não violenta do ato, pela disposição de aceitar as conseqüências jurídicas da própria conduta. Essa fidelidade à lei ajuda a provar para a maioria que o ato é de fato politicamente consciente e sincero, e que intencionalmente se dirige ao senso de justiça do público. Ser completamente aberto e não violento significa empenhar a própria sinceridade, pois não é fácil convencer um ou outro de que nossos próprios atos são conscientes, nem é fácil nós próprios termos certeza disso.

 Dessarte, com a prática da desobediência civil, recorre-se ao senso de justiça da sociedade para que seja reconhecida a existência de uma grave violação dos direitos de uma minoria.  Esse apelo ao desejo de justiça tende a convencer a maioria a abandonar as suas vantagens injustas e a reconhecer o pleito dos dissidentes. Nessa tarefa, a violação da lei de forma pública e não violenta torna-se um instrumento de persuasão eficaz.

Todavia, Ronald Dworkin admite a possibilidade dos dissidentes utilizarem métodos não persuasivos.  Alega o autor que os desobedientes civis têm uma relação complexa com o governo da maioria, pois não o rejeitam, mas exigem a presença de algum tipo de restrição. Eles acreditariam, com isso, que a maioria, agindo contra a sua vontade, poderia aceitar as suas reivindicações[91].

Desse modo, a minoria procuraria elevar o preço do programa que tem a preferência da maioria a fim de esperar que ela ache o novo custo elevado demais para levar adiante. São os casos de ocupações de propriedade públicas e privadas, interrupção do tráfego, bloqueio de importações, dentre outras.

Por não pretender mudar a opinião da maioria é que, em uma democracia, métodos não persuasivos são, naturalmente, inferiores do ponto de vista moral. Entretanto, Ronald Dworkin faz uma observação[92]:

Às vezes, porém, estratégias persuasivas não oferecem nenhuma grande perspectiva de sucesso, pois as condições estão longe de ser favoráveis, como é o caso talvez na África do sul. Quando as estratégias não persuasivas são justificadas, se é que o são, na desobediência civil baseada na justiça? É ir muito longe, penso eu, dizer que nunca. A afirmação seguinte, cuidadosamente circunspecta, parece melhor. Se alguém acredita que um determinado programa oficial é profundamente injusto, se o processo político não oferece nenhuma esperança realista de reverter o programa em breve, se não existe nenhuma possibilidade de desobediência civil persuasiva eficaz, se estão disponíveis técnicas não persuasivas não violentas com razoável chance de sucesso, se essas técnicas não ameaçarem ser contraproducentes, então, essa pessoa faz a coisa certa.

Nesses termos, o autor admite que algumas condições tornam aceitáveis métodos não persuasivos de desobediência civil que excepcionem o princípio do governo da maioria. No entanto, é mister destacar que a utilização desses meios merece o devido cuidado para que não sejam entendidos como uma forma de chantagem e, por conseguinte, trazerem um efeito inverso ao pretendido. Nesse sentido, a maioria, ao invés de ceder, pode reforçar ainda mais as suas convicções em prejuízo da minoria. Logo, somente o caso concreto é que vai determinar se é plausível, ou não, utilizar métodos não persuasivos em ações de desobediência civil.

Contrariamente a tudo que já foi exposto, existem aqueles que suscitam argumentos avessos à desobediência civil. Eles acreditam que a sociedade desmoronaria caso todos passassem a desobedecer às leis que acham injustas sem assumirem os encargos de suas ações. Ademais, dizem que a igualdade entre os cidadãos estaria comprometida, uma vez que a minoria desobediente se beneficiaria dos que respeitassem a lei.

Contudo, essa visão oculta uma falha, pois parte do pressuposto de que os dissidentes sabem que estão infringindo uma lei válida. Isso ignora totalmente a possibilidade dos desobedientes civis, por questões morais, divergirem da opinião das autoridades e dos juízes, ou seja, os dissidentes, seguindo seus postulados morais, podem desrespeitar a lei por terem a plena convicção de que ela é inválida[93].

Segundo Ronald Dworkin, a relevância dessas questões morais estaria na Constituição. Assim sendo, diz ele: “qualquer lei que pareça comprometer essa moral levanta questões constitucionais, e se esse comprometimento for grave, as dúvidas constitucionais também serão graves[94]”.

Esclarecendo a ligação entre questões morais e jurídicas para Ronald Dworkin, José Carlos Garcia  aduz[95]:

Dworkin sustenta critérios de moralidade positiva, argumentando que a Constituição dos Estados Unidos, e boa parte das constituições hoje existentes, acolhem certos postulados morais relativos à sociedade em que foram promulgadas, fazendo com que esses critérios de moralidade, que são em última instância critérios de moralidade da própria cidadania, assumam o caráter de determinações constitucionais, em face das quais a legislação em sentido diverso não poderia prevalecer.

O que ocorre é que, quando se trata de Estado Democrático de Direito “a moral não paira mais sobre direito, como era sugerido pela construção do direito racional, tido como uma série de normas suprapositivas: ela emigra para o direito positivo sem perder sua identidade[96]”.

Com isso, a ilegalidade da desobediência civil é, na verdade, relativa. O seu exercício pode ser um instrumento do cidadão para participar do controle de constitucionalidade da norma jurídica, sem que seja pelas formas previstas expressamente[97], ou uma discordância quanto à legalidade do modo como ela está sendo aplicada[98].

Os atos de desobediência civil, portanto, podem funcionar, em uma democracia, como um importante mecanismo de controle popular, desde que respeitadas as condições já mencionadas. Ante a importância do assunto, o tópico seguinte estudará o tema de forma mais aprofundada.

3.3Democracia e desobediência civil

A Democracia é um regime político onde o poder encontra-se nas mãos do povo. Em outras palavras, democracy is the government of the people, by the people, for the people[99]. Nesse ambiente, as leis são aprovadas por um parlamento formado por representantes eleitos pelo povo, direitos e garantias constitucionais ficam à disposição dos cidadãos, as vias institucionais de questionamento são acessíveis, dentre outras características.

Considerando que, a partir disso, é possível suscitar inúmeros argumentos contrários a legitimidade da desobediência civil em Estados democráticos modernos, o presente trabalho reservará este momento para interligar duas expressões que, prima facie, seriam incompatíveis, democracia e desobediência civil.

Segundo Norberto Bobbio, uma definição mínima de democracia se assenta em três bases. A primeira é a existência de um grande número de cidadãos com direito de participar direta ou indiretamente das decisões coletivas. A segunda é a presença de sua regra fundamental, a regra da maioria. De acordo com os seus preceitos, as decisões aprovadas pela maioria daqueles que tem o direito de participação política vinculam a todo o grupo. Uma ressalva que se faz a essa regra é que suas decisões não são absolutas, uma vez que ela não pode ferir elementos intrínsecos à democracia. Está se referindo, aqui, aos direitos fundamentais. Ora, “sendo os direitos fundamentais imprescindíveis à democracia, quando se agride tais direitos fere-se a própria democracia[100]”. Desse modo, a regra da maioria só é válida quando resguarda, em suas decisões, os direitos mais essenciais do ser humano. Por fim, afirma o mestre de Turim, é indispensável que os cidadãos chamados a decidir ou eleger seus representantes possam ter alternativas reais de escolha[101].

No entanto, a noção de democracia não pode estar mais adstrita às condições mencionadas no parágrafo anterior, pois avanços nesse sentido já foram conquistados em muitos países o que torna imperativo buscar outros campos para o seu desenvolvimento. Ante a questão, esclarece Norberto Bobbio[102]:

Uma vez conquistada a democracia política, nos damos conta que a esfera política está incluída em uma esfera muito mais ampla que é a esfera da sociedade no seu todo e que não existe decisão política que não seja condicionada ou até mesmo determinada por aquilo que acontece na sociedade civil. Percebemos que uma coisa é a democratização do Estado, outra coisa é a democratização da sociedade, donde ser perfeitamente possível existir um Estado democrático numa sociedade em que a maior parte das instituições – família à escola, da empresa à gestão dos serviços públicos – não são governadas democraticamente.

Com efeito, o processo de evolução da democracia impõe a diminuição da distância que separa o povo das decisões políticas. Reduzir o cidadão à condição de mero eleitor é restringir, em demasia, o conceito de democracia, cuja participação da coletividade na gerência do Estado é um componente essencial. Assim sendo, a democratização da sociedade só pode ser atingida quando forem criados instrumentos que possibilitem, de fato, o controle social sobre as instituições oficiais.

Nesse sentido, é imprescindível o reconhecimento da proximidade entre democracia e sociedade pluralista. Onde existe essa forma de sociedade, são encontrados diversos grupos formadores de centros de poder não identificados com o Estado. São eles, os sindicatos, partidos políticos de diferentes ideologias, associações e organizações das mais diversas naturezas. A concorrência entre eles é que permite a atração de cada vez mais indivíduos dispostos a participar das decisões políticas, fazendo com que o poder seja, além de partilhado, também controlado[103].

Em defesa de uma democracia participativa, Ronald Fontenele Rocha aduz[104]:

A dialética travada entre governantes e governados deve-se dar por meio de input (pressões sociais centrípetas) e outputs (decisões políticas centrífugas). Essa interface entre o político e o social é fundamental para a oxigenação do governo, e consequente legitimidade da práxis estatal. Devem os governos e parlamentos recrudescer os processos de auscultação social, a fim de sintonizar as decisões públicas com os anseios sociais.

Somente por meio dessa realidade é que possível entender uma característica fundamental da democracia, o dissenso. Não se quer, aqui, dizer que o regime político se apóia no dissenso, mas que a existência do consenso da maioria implica a presença de uma minoria que dissente. Sendo o consenso unânime algo irreal, um regime só pode ser chamado de democrático quando houver liberdade para dissentir.

Refazendo o percurso em sentido contrário, a liberdade para dissentir necessita de uma sociedade pluralista, uma sociedade pluralista permite uma maior distribuição do poder, uma maior distribuição do poder abre as portas para a democratização da sociedade civil e finalmente a democratização da sociedade civil alarga e integra a democracia política[105].

Se em uma democracia o dissenso é um direito, ele só faz sentido se for capaz de inserir temas para discussão em sociedade e influenciar na tomada de decisão políticas. Jürgen Habermas denomina de modelo de iniciativa externa os casos em que um grupo, não pertencente à estrutura governamental, mobiliza-se para atrair a atenção da opinião pública e impor pressões sobre os que têm poder de decisão com o fim de ver suas demandas postas na agenda política do governo[106]. Trata-se de um fluxo de poder originado na periferia social que parte em direção ao centro de decisões.

Contudo, o que se observa é que, dentro do sistema político, essas movimentações ocorrem, normalmente, em sentido diverso, pois os temas são introduzidos pelo governo em direção centrífuga sem a participação da sociedade civil sobre a sua iniciativa. Criticando essa situação, assevera Jürgen Habermas[107]:

Em nosso contexto, não há necessidade de fundamentar uma análise empírica convincente acerca das influências que a política exerce sobre o público e vice-versa. Basta tornar plausível que os atores da sociedade civil até agora negligenciados, podem assumir um papel surpreendentemente ativo e pleno de conseqüências, quando tomam consciência da situação de crise. Com efeito, apesar da diminuta complexidade organizacional, da fraca capacidade de ação e das desvantagens estruturais eles têm a chance de inverter a direção do fluxo convencional da comunicação na esfera pública e no sistema político, transformando destarte o modo de solucionar problemas de todo o sistema político.

O certo é que os atores sociais, por si sós, não podem superar as desvantagens que sua posição lhes condiciona ao tentarem inverter o fluxo de poder para terem seus temas discutidos. Nessa tarefa, é forçoso a presença de um elemento determinante, os veículos de comunicação de massas. Recorrendo a Jürgen Habermas novamente[108]:

Para atingir o grande público e a “agenda política”, tais temas têm que passar pela abordagem controversa da mídia. Às vezes é necessário o apoio de ações espetaculares, de protestos em massa e de longas campanhas para que os temas consigam ser escolhidos e tratados formalmente, atingindo o núcleo do sistema político e superando os programas cautelosos dos “velhos partidos”.

Do ponto de vista habermasiano, os atores sociais utilizam a mídia como caixa de ressonância de seus argumentos para atingir o grande público, tendo como última medida para conferir maior audiência, os atos de desobediência civil. Nessa hipótese, procuram demonstrar a insatisfação com os governantes ao mesmo tempo que se colocam sob o julgamento da sociedade. Essas ações, portanto, dependem da “concepção pública da justiça que caracteriza a sociedade democrática[109]” para produzirem resultados.

Os dissidentes procuram fazer com que, dentro da estrutura constitucional, as deliberações políticas não se dissociem da sociedade civil. Seus atos, usados com equilíbrio, contribuem para restaurar as instituições quando desviadas dos interesses sociais. Assim sendo, o argumento a favor da legitimidade da desobediência civil encontra-se em “sua própria origem na sociedade civil, a qual, quando entra em crise, serve-se da opinião pública para atualizar os conteúdos normativos do Estado democrático de direito, e para contrapô-los à inércia sistêmica da política institucional[110]”.

Acredita-se, com isso, que esses modos de protesto se coadunam com os objetivos de uma Constituição democrática ao funcionarem como um suplemento à sua concepção puramente legal[111]. Em outras palavras, a Constituição, quando democrática, pode sancionar atos considerados como violações da lei.

Sob outro aspecto, a desobediência civil encontra sua razão de ser no próprio direito democrático de dissentir sobre o que é justo e bom para o conjunto da sociedade. A partir disso, adentra-se num ponto importante, a divergência entre a interpretação oficial da norma jurídica e a interpretação dos dissidentes no Estado Democrático de Direito.

Conforme mencionado no item anterior, a desobediência civil não é, necessariamente, ilegal. A questão sempre depende do observador. À luz da interpretação oficial, essas ações, normalmente, serão vistas como contrárias às leis, pois existe, por parte das autoridades democraticamente constituídas, o forte interesse político de manutenção do status quo.

Importantes filósofos do direito como Ronald Dworkin, John Rawls e Jürgen Habermas se posicionaram no sentido de reconhecer que não existe apenas uma interpretação da norma jurídica, tampouco que essa fica adstrita aos tribunais.

Ronald Dworkin entende que “a lealdade do cidadão é para com a lei e não para com nenhum ponto de vista particular que alguém tenha sobre a natureza do direito[112]”.  De acordo com essa afirmação, ninguém se comporta injustamente quando se deixa guiar por sua própria concepção, desde que esteja agindo de forma ponderada e razoável, sobre o que a lei requer. Desse modo, se a matéria ferir direitos fundamentais, o cidadão não extrapolará seus direitos ao se recusar a aceitar, como definitiva, uma decisão judicial.

Nesse mesmo sentido, pensa John Rawls[113]:

Numa sociedade democrática, portanto, sabe-se reconhecer que cada cidadão é responsável por sua interpretação dos princípios da justiça e pela conduta que assume à luz deles. Não pode haver nenhuma interpretação legal ou socialmente aprovada desses princípios que moralmente tenhamos sempre de aceitar, nem mesmo quando a interpretação é da corte suprema de justiça ou legislativo. De fato, cada função constitucional, o legislativo, o executivo e o judiciário, apresenta a sua interpretação da constituição e dos ideais políticos que a informam. Embora o judiciário possa ter a última palavra na solução de qualquer caso particular, ele não está imune a poderosas influências políticas que podem forçar a revisão de sua interpretação da constituição.

Deveras, os tribunais não podem ser os únicos capazes de dizer o que é direito, de tal modo que a interpretação correta da norma jurídica seja somente aquela oriunda de suas decisões. Esse modo juspositivista de ver a questão corrompe o que se entende por Estado Democrático de Direito.

Para se harmonizar aos anseios populares, ao invés de impor uma interpretação, os tribunais devem usar argumentações para persuadir a maior parte dos cidadãos acerca de suas concepções. Nessa seara, John Rawls defende que “o tribunal de última instância não é o Judiciário, nem o executivo, nem o legislativo, mas, sim, o eleitorado como um todo[114]

É mister lembrar, ainda, que a Constituição democrática merece uma compreensão dinâmica, o que requer a constante revisão de sua configuração com o intuito de interpretá-la apropriadamente. Nessas atualizações, as expectativas da sociedade é que devem ditar os rumos para o novo momento.

Nesta ótica de longo alcance, o Estado democrático de direito não se apresenta como uma configuração pronta, e sim, como um empreendimento arriscado, delicado e, especialmente, falível e carente de revisão, o qual tende a reatualizar, em circunstâncias precárias, o sistema dos direitos, o que equivale a interpretá-los melhor e a institucionalizá-los de modo mais apropriado e a esgotar de modo mais radical o seu conteúdo[115].

Portanto, a possibilidade de existir divergências quanto à interpretação da norma jurídica torna ainda mais compreensiva a desobediência civil.

Por outro lado, não obstante os dissidentes se apoiarem na crença de que o direito está com eles, a palavra final é do Judiciário. Em função disso, os desobedientes civis procuram utilizar a mobilização popular para forçar os tribunais a revisarem a interpretação da norma jurídica. Isso somente é possível em um ambiente democrático, onde existe liberdade para discordar da interpretação oficial a ponto de adequá-la às pretensões sociais.

Por todo o exposto, um Estado não pode ser considerado democrático apenas por possuir instituições que caracterizam esse regime político. A essência da democracia está no estreitamento das relações entre a sociedade civil e as autoridades políticas. A desobediência civil, nesse contexto, funciona como um estimulante do sistema, fazendo com que as novas demandas alcancem o centro da política.

Torna-se claro que a desobediência civil não é incompatível com a democracia. Ao contrário, são os preceitos desse regime político que dão apóio aos dissidentes. Quando a sociedade entra em crise, a desobediência civil, sob a forma de pressão social, torna-se o único meio de correção das instituições viciadas. Ela é um ato em defesa da democracia contra as deformidades ocasionadas pela tentativa de limitar a participação popular nas decisões políticas.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARANHA, Hialey Carvalho. A ocupação das propriedades rurais improdutivas:: análise das ações de ocupação dos trabalhadores rurais sem terra e a questão agrária no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3731, 18 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25323. Acesso em: 18 abr. 2024.

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